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O Brasil é uma Federação?

Alguns subsídios conceituais para a construção de um novo modelo do pacto federativo

13/08/2005 às 00:00
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É sabido que todas as nossas Constituições Republicanas, a começar pela Constituição de 1891, consagram a tese político-jurídica de que o Brasil é uma Federação.

Entretanto, será mesmo que o Brasil é uma Federação, na plena acepção jurídica e política da expressão, ou será que as normas constitucionais pátrias que tratam, ou trataram, acerca do tema são, ou foram, meras ficções jurídicas sem qualquer amparo na realidade política e histórica do nosso Brasil?

Para respondermos a questão ora formulada, faz-se necessário ter uma noção acerca do que seja Federação, tanto sob o aspecto jurídico stricto sensu, quanto sob o ponto de vista da Ciência Política, ainda que tal noção seja aproximada, ou seja, uma concepção que não envolva maiores elaborações teórico-metodológicas.

Em termos estritamente jurídicos, e conforme o magistério do jurista Pedro Nunes, Federação é a "união de várias províncias, Estados particulares ou unidades federadas, independentes entre si, mas apenas autônomas quanto aos seus interesses privados, que formam um só corpo político ou Estado coletivo, onde reside a soberania, e a cujo poder ou governo eles se submetem, nas relações recíprocas de uns e outros." (1)

Em função da definição supra de Federação, importa lembrar que, no Estado Federado, "os Estados-Membros não são Estados na medida em que se considerar a soberania elemento indispensável ao Estado. De fato, o Estado-Membro está subordinado ao Estado federal (sic), visto este como um todo. Quer dizer, a existência e a organização do Estado-Membro estão sujeitas às normas da Constituição do Estado federal (sic)." (2)

A Ciência Política, por sua vez, encara a Federação como sendo o Estado cujas entidades políticas federadas (que recebem denominações diversas conforme o país) gozam de considerável grau de autonomia política e econômica, ainda que submetidas a uma autoridade política central que detém a soberania política.

Nesta medida, para a Ciência Política, a distribuição eqüitativa de poder político e o grau de autonomia econômica e social das unidades políticas federadas, independentemente de sua extensão geográfica e da sua população, são os cernes da Federação e não a mera distribuição de competência decorrente da estrutura jurídica definidora dos laços e obrigações dos entes federativos. Conjugue-se a isto, o fato de que o Estado, enquanto detentor da coercibilidade política e o único produtor formal de leis é o ente responsável, por excelência, pela preservação da integridade sociopolítica, cultural e econômica da Nação como um todo e não dessa ou daquela parcela territorial da Nação. Daí decorre que o conceito de Federação, no âmbito da Ciência Política, não exclui, em nenhuma hipótese, o conceito de preservação da unidade nacional e da integridade territorial do Estado Federal mediante a adoção não só de mecanismos de coerção jurídica como também, e sobretudo, mediante a adoção de mecanismos extra-políticos de consenso social e cultural.

Uma vez feitas as considerações supra, julgo que podemos responder a indagação feita no início deste artigo.

Em termos objetivos, e, salvo melhor juízo, a resposta é que o Brasil Republicano não é, e nunca foi, uma Federação stricto sensu.

Historicamente, somos, isto sim, um Estado Unitário de dimensões continentais com um "imaginário constitucional" que sempre atribuiu à União Federal amplos poderes e aos demais entes federados (Estados-Membros, Distrito Federal e Municípios) somente algumas "migalhas" no tocante à competência jurídica nas esferas política, administrativa e sócio-econômica.

A atual Carta Política, em que pese as suas nobres intenções traduzidas, não raro, em altissonantes normas legais, não conseguiu avançar, em termos práticos, na construção de um verdadeiro pacto federativo.

Apenas a título de exemplo do afirmado nos parágrafos anteriores, basta lembrar que, ao contrário dos EUA - onde a liberdade local, leia-se, a autonomia municipal, é a palavra de ordem desde a fundação daquele país em meados do século XVIII -, o Brasil Republicano sempre teve um poder central forte, não só em termos políticos, como em termos econômicos, e os entes políticos locais - leia-se, os municípios -, "vivem com o pires na mão". É importante ressaltar que as graves dificuldades vivenciadas pela imensa maioria das municipalidades brasileiras se deve, via de regra, à constante escassez de recursos financeiros necessários à implementação das políticas públicas voltadas ao atendimento das populações locais, escassez financeira essa que se apresenta conjugada à notória incompetência administrativa das autoridades municipais.

Nestes termos, o ilustre jurista e professor Celso R. Bastos, com o seu habitual cabedal jurídico e social, reconhece que, no Brasil, "o princípio federativo é uma das vigas mestras sobre as quais se eleva o travejamento constitucional. (...) No entanto, a realidade não confirma a significação dada à federação. É muito provável que nenhum princípio tenha sido tão fortemente degradado quanto o federativo.

A autonomia estadual é, sob muitos aspectos, uma irrisão. (...) Por outro lado, a partilha constitucional de competências não aquinhoa, devidamente, Estados e Município, centralizando, ainda, na mão da União a determinação, ao menos nos seus princípios gerais, das diretrizes a prevalecerem em todos os campos legislativos." (3)

Vislumbro que a principal causa para o fato do Brasil Republicano não ser uma Federação genuína é que o Brasil, enquanto Nação, foi moldado a partir dos interesses das elites agro-exportadoras centradas nas atuais regiões Nordeste e Sudeste (em especial aquelas elites dessa última região), elites essas então existentes à época da Independência (1822) e cujos interesses, num primeiro momento, determinaram a articulação da criação e manutenção do regime monárquico (1822-1889) fortemente centralizado em termos administrativos e políticos a fim de preservar e expandir o seu poder político e econômico sobre todo o território brasileiro. Ao longo dos séculos XIX e XX, as elites que conduziram o Movimento de Independência, e seus descendentes, efetivaram sucessivas reformas visando manter o seu poder econômico, social e político (muitas vezes cooptando novas parcelas da coletividade social) sem, contudo, implementar uma verdadeira descentralização do poder político e econômico.

Em outras palavras, "a Independência [em 1822] evoca a nação como conceito, mas não destrava as medidas necessárias, concretas, para o seu amadurecimento, para uma maior igualdade de direitos, a progressiva sedimentação de interesses e aspirações comuns, que são a alma e os pressupostos pelos quais a grande maioria se reconhece e se comporta como uma nação." (4)

Acrescente-se a isto o fenômeno de que o próprio movimento de construção e consolidação da nacionalidade brasileira no decorrer do século XIX d. C. e início do século XX não passou pelo respeito às diferenças políticas e culturais existentes nas diversas regiões do Brasil. O poder local e regional, durante o Período Imperial, foi sempre submisso ao Poder Central, ainda que gozasse de uma considerável autonomia social. Basta lembrar que as várias revoltas ocorridas em várias regiões do Brasil durante o Período Regencial (1831-1840) e início do Segundo Reinado (1840-1889) foram reprimidas violentamente pelo governo monárquico da época com pouquíssimas concessões ou considerações à autonomia política, sócio-econômica e cultural das regiões afetadas pelas revoltas.

A própria Proclamação da República em novembro de 1889 foi consequência de um mero golpe militar e não decorrência de um amplo e espontâneo movimento popular visando instaurar uma nova estrutura política e social. (5) Daí resultar o fato de que as estruturas e práticas políticas vigentes à época da instalação do regime republicano em nosso país não terem sofrido alterações significativas e abrangentes, mas apenas alterações "cosméticas", aí incluídas as mudanças havidas no ordenamento jurídico do período republicano.

Uma característica importante do Período Republicano brasileiro no tocante à marginalização da autonomia política e sócio-econômica das unidades políticas regionais e locais frente ao poder central é a manutenção de um aparelho burocrático hipertrofiado no âmbito da União Federal, aparelho burocrático esse que, não raro, clama para si a responsabilidade de decidir acerca de questões ou problemas que dizem respeito, única e exclusivamente, aos Estados-Membros e/ou aos Municípios.

Tal situação resulta, como não poderia deixar de ser, em: 1º)na abundância e na ineficiência dos diversos programas assistencialistas, programas esses que são periodicamente anunciados como sendo "a solução definitiva" para os agudos problemas sociais brasileiros; 2º)na derrocada dos muitos planos de desenvolvimento regional ou local havidos nas últimas décadas; e 3º)no gritante desperdício de enormes quantidades de dinheiro público em obras faraônicas e nos supracitados planos de desenvolvimento regional ou local, desperdício esse que não traz qualquer benefício prático para a população brasileira como um todo, tanto em termos econômicos, quanto em termos sociais e culturais.

Por outro lado, as nossas elites governantes nunca se preocuparam em construir um pacto ou acordo de consenso, em termos políticos, sociais e culturais, que viabilize uma distribuição mais eqüitativa das riquezas brasileiras, tanto em termos nacionais, quanto em termos regionais. E quando falo em elites, estou falando tanto das elites denominadas "de direita", quanto aquelas elites posicionadas a esquerda do espectro político contemporâneo.

Neste quadro, importa destacar que é inegável o fato de que a exacerbação do poder central no nosso País - leia-se União Federal -, em detrimento dos poderes regionais e locais (Estados-Membros e Municípios), conjugado com o descaso histórico das nossas elites, ajuda não só a manter como a agravar as gritantes diferenças sociais e econômicas existentes entre as várias regiões componentes do Brasil. (6)

A solução para tal situação descrita no parágrafo anterior passa não só pelo urgente (re)ordenamento legal da (re)distribuição de competências jurídicas stricto sensu (fiscal-tributária, administrativa, políticas de desenvolvimento regional, etc.) dentre os entes federados relacionados na atual Carta Política, como também e, sobretudo, pela articulação de um novo projeto político-jurídico, em escala nacional, que re-arranje não só a representação popular no Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal), em função das regiões e entes federados menos favorecidos em termos políticos e sócio-econômicos, e, ainda, permita uma articulação de uma ampla revisão das políticas públicas e privadas de integração política, social e econômica dentre as diversas regiões brasileiras, respeitando, é claro, as peculiaridades étnico-culturais regionais atualmente existentes. Conjugue-se a isto a urgente necessidade de se promover uma reversão não só o modus operandi atualmente existente dos aparelhos burocráticos estaduais e municipais, como também, e principalmente, o reforço qualitativo da estrutura administrativa dos aparelhos burocráticos dos Estados-Membros e dos Municípios, mediante uma capacitação profissional contínua e uma remuneração condigna dos componentes das suas estruturas administrativas, a fim de que os mesmos possam enfrentar, com mais à guisa de fecho deste artigo eficiência, os problemas regionais e/ou municipais.

À guisa de fecho deste artigo, entendo que somente seremos uma Federação, na plena acepção política, jurídica e social da expressão, no dia em que tivermos um projeto consistente e viável de integração política, cultural e socioeconômica de âmbito nacional, projeto este alicerçado na pluralidade social e cultural das várias regiões que integram o Brasil, bem como houver mecanismos jurídicos e meta-jurídicos que garantam, na prática, o efetivo equilíbrio político e sócio-econômico entre os entes federados elencados na Constituição Federal.

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Tal projeto passa necessariamente pela necessidade inadiável de descartamos de uma vez por todas os velhos ideais políticos-ideológicos (tanto de direita, quanto de esquerda) de cunho xenofóbico que encaram a integração do Brasil com o restante do mundo (tanto em termos políticos, quanto em termos econômicos), como um atentado ao bem-estar do nosso povo e um perigo mortal à integridade territorial e à soberania brasileira.

Deveras, entendo que temos que por em prática o quando antes um projeto de integração internacional que leve em consideração os interesses do país como um todo e não somente os interesses dessa ou daquela região, sem descuidarmos, é claro, da soberania nacional e do bem comum.


Notas

(1)NUNES, Pedro: Dicionário de Tecnologia Jurídica. p. 432.

(2)FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. pág. 46.

(3)BASTOS, Celso R.: Curso de Direito Constitucional. pág. 281.

(4)DIÉGUES, Fernando: A Revolução Brasílica: O projeto político e a estratégia da Independência. pág. 267.

(5)Intelectuais da época da instalação do regime republicano, com muita propriedade, constataram que "o povo assistiu bestializado a Proclamação da República". De fato, a República se instalou no Brasil sem qualquer interferência popular significativa e sem estar apoiada num projeto político e socioeconômico explícito no tocante à re-estruturação das relações entre o poder central (União Federal) e os poderes regionais e/ou locais (Estados-Membros e Municípios).

(6)Neste diapasão, entendo que as normas constitucionais do artigo 3º., incisos I, II e III, c/c com a norma do parágrafo primeiro do artigo 165 da atual Lex Fundamentalis são, salvo melhor juízo, normas de eficácia contida e com uma efetividade política e social no mínimo duvidosa.


Referências bibliográficas

I.Legislação

BRASIL: Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05.10.1988.

II.Doutrina

BASTOS, Celso R.: Curso de Direito Constitucional. 18ª. ed. atualizada. São Paulo: Ed. Saraiva, 1997.

BOBBIO, Norberto et all.: Dicionário de Política. 2 volumes. 10ª. ed. Tradução de João Ferreira et all. Brasília: Ed. UNB, 1997.

DIÉGUES, Fernando: A Revolução Brasílica: O projeto político e a estratégia da Independência. Rio de Janeiro: Ed. Objetiva, 2004.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 23ª. ed. atualizada. São Paulo: Ed. Saraiva, 1996.

NUNES, Pedro: Dicionário de Tecnologia Jurídica. 12ª. ed. revista, ampliada e atualizada. 2ª. tiragem. Rio de Janeiro: Ed. Freitas Bastos, 1993.

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Sobre o autor
Ricardo Luiz Alves

licenciado em História pela PUC/RJ, bacharel em Direito pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas (CIESA), servidor da Justiça do Trabalho em Manaus (AM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Ricardo Luiz. O Brasil é uma Federação?: Alguns subsídios conceituais para a construção de um novo modelo do pacto federativo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 771, 13 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7049. Acesso em: 19 nov. 2024.

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