2 TEORIA DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
2.1 PRINCÍPIO DA CONSTITUCIONALIDADE
Primeiramente temos que princípio é uma proposição essencial e fundamental que estrutura e dá forma a qualquer ordenamento jurídico. Nos dias atuais ocorre no ambiente da ciência jurídica uma festejada valoração dos princípios em detrimento às regras. Assim considerados os princípios adquirem na dogmática jurídica algo que nunca deixaram de ter que é normatividade. Essa transformação de paradigma tem força preponderante na lição de Ronald Dworkin de que regras são aplicáveis na forma do tudo ou nada, isto é, desde que um fato se subsuma à regra a aplicação é instantânea. [41] Já a aplicação dos princípios como elemento orientador e normogenético do Direito se dá sob a égide de valores, pois funcionam como fundamento ético determinando um caminho a seguir que possui eficácia e aplicabilidade.
Luis Roberto Barroso expõe a mudança interpretativa lecionando que
... os princípios constitucionais, portanto, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isto, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete.
Na trajetória que os conduziu ao centro do sistema, os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. Normalmente, as regras contêm relato mais objetivo, com incidência restrita às situações específicas à quais se dirigem. Já os princípios têm maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada no sistema. Inexiste hierarquia entre ambas as categorias, à vista do princípio da unidade da Constituição. Isto não impede que princípios e regras desempenhem funções distintas dentro do ordenamento. [42]
A palavra constituição em sentido amplo significa do que algo é feito. É a estrutura, a organização, o conteúdo de algo. Óbvio que no Direito, notadamente o constitucional, esta palavra não tem este sentido, tem um significado mais específico.
A relação de poder existe em qualquer sociedade humana. Se uma sociedade é juridicamente organizada este poder também é juridicamente organizado. Quando nós temos uma sociedade onde o poder é juridicamente organizado podemos dizer que se formou um Estado. A pergunta que se faz é o que deu organicidade àquele poder? Nada mais do que um conjunto de regras e princípios chamado de Constituição. Desta forma, podemos definir Constituição como sendo o conjunto de normas jurídicas que organizam o Estado tratando de sua organização fundamental.
Noutro ponto, o poder do povo no Estado de Direito é soberano. Soberania é um supremo poder do Estado que se funda em não aceitar um poder superior ou igual a ele internamente e externamente cada Estado respeitando o poder soberano do outro não admitindo intervenções. Isto é válido para entendermos quão importante é a Constituição de um Estado e quanto deve ser venerada e respeitada.
No Estado de Direito o princípio chave era o da legalidade. O particular, em tese, pode fazer tudo que a lei não proíbe e o Poder Público só pode fazer o que a lei expressamente autoriza. Existe uma regra geral de liberdade no Estado de Direito: a princípio eu sou livre (a não ser que a lei proíba) e o Estado limitado.
Interessante comentar que nos países da common law o princípio da legalidade é mitigado, isto porque o Poder Legislativo, nesses lugares, não é o principal poder responsável pela criação da maior parte do Direito. É o Poder Judiciário que cria a maior parte do Direito.
O Direito brasileiro é um conjunto de normas jurídicas hierarquicamente superpostas. No primeiro escalão, estão as normas constitucionais. No segundo, as normas legais, inclusive as constantes de medidas provisórias, que têm "força de lei". No terceiro, estão os atos administrativos, as decisões judiciais e os negócios jurídicos. As normas de escalão inferior têm seu fundamento de validade nas de escalão imediatamente superior. Mas não só as normas legais que devem ser produzidas em conformidade com a Constituição como também os atos administrativos, decisões judiciais e negócios jurídicos devem ser produzidos em conformidade com a Constituição.
A teoria do Direito mais clássica costuma dar muita ênfase ao princípio da legalidade. Concentra, assim, sua atenção na submissão dos agentes administrativos à lei e na submissão do particular à sua vontade com os limites impostos pela lei. Mas tão importante para o Estado de Direito – ou mais importante ainda – é o princípio da constitucionalidade: o dever de todos, do Estado ao particular, de submeterem-se à Constituição.
Constata-se uma crise no princípio da legalidade por conta de sua suplantação pelo princípio da constitucionalidade, mas tendo em vista sempre que doutrinadores e juízes não deixam de lado a lei. Entretanto, a lei não consegue resolver com qualidade as situações que deveria prever ou pela quantidade excessiva de leis, ou pela sua criação deficitária sem rigor técnico-jurídico, ou pela desconfiança do legislador ordinário, ou até mesmo porque o fato social muda com uma velocidade incomum atualmente. Ocorre apenas que a ótica do jurista mudou para melhor quando busca na Constituição o fundamento de validade dos seus atos. Isso é muito louvável para o Estado de Direito, destarte, no processo, a quantidade de recursos ao Supremo Tribunal Federal que passarão a ser manipulados por conta desse ajuste de grau na lente do operador do Direito.
Através dessa nova visão o princípio da legalidade na verdade não está em crise e sim ganhou uma amplitude de interpretação que o transformou no princípio da constitucionalidade, dado que se deve analisar os atos públicos, aqui considerados como atos advindos do Estado ao legislar, administrar ou julgar, comparando-os com a Constituição e os seus princípios.
O princípio da constitucionalidade que agora dá o tom no Estado de Direito retira uma espécie de profunda liberdade de atuação do legislador, do administrador e dos juízes na realização de suas precípuas funções, sendo que essa retirada não é perniciosa e sim benéfica. Por esse princípio todos os atos do Legislativo, do Executivo e do Judiciário devem ser pautados pelo profundo respeito à ordem constitucional e sempre tendo em vista que a Constituição deve ser juridicamente garantida.
A garantia que a Constituição deve ter advém do princípio da constitucionalidade que é conseqüência exclusiva da força normativa e vinculativa da Lei Fundamental da ordem jurídica. Desta forma, o princípio da constitucionalidade é a garantia da observância à Constituição, porque se tem nele inscrita a sanção para o ato desconforme que é a inconstitucionalidade geradora de sua invalidade. [43]
O significado e alcance do princípio da constitucionalidade dos atos públicos estão para o ordenamento constitucional assim como a água está para o corpo humano. A Constituição como decisão jurídico-política organizadora e fundacional de um Estado soberano deve ser constantemente observada. Nesta senda, o princípio da constitucionalidade funciona como critério de supremacia hierárquica das normas constitucionais sobre todo e qualquer ato público que o Estado venha a manejar.
Nada mais lógico, então, afirmar que os atos públicos desconformes com o princípio da constitucionalidade estão eivados de inconstitucionalidade e merecem reparo. Cada Poder possui os instrumentos necessários para controlar os vícios que porventura maculem seus atos. Por outro lado, estando num sistema de freios e contrapesos cada Poder também fiscaliza o outro para que haja o pretendido rigor constitucional. Essa é a lição de Gilmar Ferreira Mendes quando indica que
... embora as modernas Constituições dos países que adotam a jurisdição constitucional consagrem a democracia e o princípio da soberania popular como princípios básicos, dispõem elas em geral sobre a forma de manifestação da vontade popular e sobre a atuação dos órgãos representativos dessa vontade. Estes devem agir dentro de limites prescritos, estando os seus atos vinculados a determinados procedimentos. Essas Constituições pretendem, portanto, que os atos praticados por esses órgãos de representação possam ser objeto de crítica e controle. [44]
Lembrando que o princípio da constitucionalidade não se impõe apenas sobre os atos que não violem positivamente a Constituição, mas também repercute sobre a omissão inconstitucional, por falta de cumprimento das imposições constitucionais ou de ordens de legislar.
Especificamente quanto aos atos do Poder Judiciário não existe a pretendida impermeabilidade aos efeitos da inconstitucionalidade sublinhando "que a actividade jurisdicional se encontra subordinada ao princípio da constitucionalidade, dependendo a validade de seus actos da conformidade com a Lei Fundamental". [45]
Durante muito tempo se teve uma idéia totalmente distorcida de como se revelaria a coisa julgada. Ainda pensa-se que o controle de constitucionalidade da coisa julgada finda com a interposição e julgamento do recurso extraordinário e posteriormente com uma possível ação rescisória. Passado o prazo da rescisória a imutabilidade da coisa julgada impediria que se tentasse alguma medida para que se mudasse a coisa julgada, considerando que exista um vício de constitucionalidade naquela decisão transitada.
Sendo isso possível estaria ocorrendo uma prevalência descabida da coisa julgada em detrimento da Constituição, o que o princípio da supremacia da Constituição não suporta. Se a própria lei pode ser declarada inconstitucional a qualquer tempo, quanto mais a coisa julgada que possuir uma inconstitucionalidade estando a revelar no mínimo uma injustiça no julgamento. E, logo, a decisão judicial que tem a função de dirigir condutas e tratamento de conflitos administrando a justiça não pode estar imune ao princípio da constitucionalidade.
2.2 PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
O princípio da segurança jurídica está inserido no corpo político de toda sociedade dita democrática, pois torna-se a própria condição de sua existência. Tal princípio é um antecedente primordial da estabilidade do convívio social, fornecendo a existência do verdadeiro Direito, alicerce da sociedade, como único meio possível de garantir e distribuir a justiça. O seu objetivo último é o de evitar surpresas nas relações entre os particulares e entre eles e o Poder Público.
A segurança jurídica está contida no caráter cogente do Direito. Se uma norma cria Direito ou se uma sentença declara direitos, devem ambos ser protegidos e seguros de qualquer ataque. Entendemos que a obrigatoriedade do Direito integra a segurança jurídica, estando a mesma vinculada ao valor de justiça de cada sociedade.
Desta forma, uma das características fundamentais do Estado de Direito é a proteção da segurança jurídica do cidadão. É a confiança da sociedade depositada no Direito, seja ele positivado ou não, de que naquele determinado momento as regras são aquelas e nada poderá modificá-las, tendo em vista todo um conjunto de ações que sob ela se fundaram. A segurança jurídica está a possibilitar que os cidadãos exerçam em última análise a liberdade garantida constitucionalmente. O estado de insegurança em relação ao Direito reduz absurdamente a formação de uma idéia acerca da liberdade, já que havendo mudanças repentinas e inesperadas nas normas que regulavam um fato a margem de planejamento na vida dos cidadãos fica imensamente reduzida ou até mesmo impossível.
O princípio da segurança jurídica não está expresso na Constituição, mas, além de ser decorrência lógica do Estado de Direito, pois só poderá haver Direito onde houver segurança jurídica, é complementado pelo princípio da legalidade, pela garantia à coisa julgada, ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, isto é, por outro princípio que é o da irretroatividade das leis. Nesse sentido, encontra-se a aclamada lição de Celso Antônio Bandeira de Mello ao afirmar que "o princípio da segurança jurídica é da essência do próprio Direito, notadamente do Estado Democrático de Direito e, por isso, faz parte do sistema constitucional como um todo, enquadrando-se, entre os princípios gerais do direito". [46] E continua o mestre administrativista lecionando que
... a ordem jurídica corresponde a um quadro normativo proposto precisamente para que as pessoas possam se orientar, sabendo, pois, de antemão o que devem ou o que podem fazer, tendo em vista as ulteriores conseqüências imputáveis a seus atos. O Direito propõe-se a ensejar uma certa estabilidade, um mínimo de certeza na regência da vida social. Daí o chamado princípio da ‘segurança jurídica’, o qual, bem por isto, se não é o mais importante dentre todos os princípios gerais de Direito, é, indisputavelmente, um dos mais importantes entre eles (...). Esta ‘segurança jurídica’ coincide com uma das mais profundas aspirações do Homem: a segurança em si mesma, a da certeza possível em relação ao que o cerca, sendo esta uma busca permanente do ser humano. É a insopitável necessidade de poder assentar-se sobre algo reconhecido como estável, ou relativamente estável, o que permite vislumbrar com alguma previsibilidade o futuro; é ela, pois, que enseja projetar e iniciar, conseqüentemente, comportamentos cujos frutos são esperáveis a médio e longo prazo. Dita previsibilidade é, portanto, o que condiciona a ação humana. Esta é a normalidade das coisas. [47]
Os cidadãos forjados dentro do Estado de Direito estão deveras acostumados com a impossibilidade da ocorrência de surpresas desarrazoadas por parte do Poder Público. Talvez o Brasil ainda não esteja num Estado de Direito pleno porquanto os Governos não respeitam a segurança jurídica ora para atingir o bolso do contribuinte ora para seqüestrar-lhes direito à aposentadoria, entre tantos outros exemplos consideráveis.
A previsibilidade da ação estatal atua fortemente como um pilar essencial a sustentar o Estado de Direito, porque sem essa previsão o cidadão não tem liberdade para planejar sua vida, estando numa área completamente cinzenta o conhecimento e alcance dos efeitos dos atos estatais. Bruscos rompantes legislativos sem uniformidade e coesão, que atinjam a população de surpresa e danifiquem as relações subjetivas implementadas entre os indivíduos, fermentam um clima de insegurança incompatível com o quadro constitucional adotado no mundo ocidental.
Em linha semelhante, registra o eminente constitucionalista luso J.J. Gomes Canotilho que
... o homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autónoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideram os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito.
Estes dois princípios – segurança jurídica e protecção da confiança – andam estreitamente associados a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica. A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo: (1) a fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. Deduz-se já que os postulados da segurança jurídica e da protecção da confiança são exigíveis perante qualquer acto de qualquer poder – legislativo, executivo e judicial. [48]
A segurança jurídica encontra refúgio, quando nos referimos a atos do Poder Judiciário, de maneira esplêndida na coisa julgada. Afinal, "a coisa julgada se baseia na necessidade social de evitar que os litígios se perpetuem, em detrimento dos indivíduos e do Estado" [49], isto é, busca estabilizar os conflitos e dar segurança e alguma certeza à decisão judicial.
O grande questionamento a ser feito está em saber se a coisa julgada poderá veicular uma decisão inconstitucional para homenagear a segurança jurídica? Ou ela deve ser mitigada para privilegiar o respeito supremo à Constituição? Há um conflito aparente entre o princípio da constitucionalidade e da segurança jurídica que deverá ser resolvido caso a caso e com a correspondente razoabilidade.
O princípio da razoabilidade não está expressamente transcrito na nossa Constituição [50], mas é notória sua "descoberta" no sistema constitucional brasileiro e muito entendem que ele está contido na face substantiva do princípio do devido processo legal (substantive due process, de origem norte-americana). Através dele o Poder Público deve fazer uso de meios próprios, isto é, não utilizar de meios desarrazoados para atingir seus objetivos.
A esse respeito consignou o juiz federal da Seção Judiciária do Estado de Goiás Carlos Roberto Alves dos Santos:
De fato, é ponto pacífico em nosso ordenamento jurídico o acolhimento do princípio do devido processo legal substantivo ou da razoabilidade, que em suas linhas gerais, contempla os seguintes elementos: a) pertinência ou aptidão da decisão estatal; b) a necessidade da decisão; c) a proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, a obrigação de fazer uso dos meios proporcionais e a interdição quando ao uso dos meios desproporcionados. [51]
Como a Constituição dá fundamento de validade a todas as demais normas, e, como os seus princípios constituem o alicerce do ordenamento jurídico, eles precisam ser obedecidos pelo Poder Judiciário. Para Celso Antônio Bandeira de Mello "violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos". [52]
Acerca do tema o Professor Cândido Rangel Dinamarco entendeu que
... o valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é portanto a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciárias, constitucionalmente prometido mediante a garantia do acesso à justiça (Const., art. 5º, inc. XXXV). [53]
Para uns desconstituir a coisa julgada estaria a macular a segurança jurídica e colocando o Estado de Direito em segundo plano. Para outros o entendimento é o de que a Constituição deve ser plenamente velada e se a coisa julgada protege uma inconstitucionalidade poderá ser descaracterizada para dar vida ao princípio da constitucionalidade. Tal conflito será melhor analisado no próximo tópico, entretanto podemos antecipar que na análise do caso concreto para se evitar antinomias e guardar a unidade dos princípios constitucionais um dos valores deverá preponderar ao outro.
2.3 RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA COISA JULGADA
Por não sermos seres estáticos estamos sempre a mercê das modernidades, das novas filosofias e das novas correntes doutrinárias. O nosso mundo sofre constantes alterações com revoluções e guerras, e a cada situação que presenciamos temos necessidades diferentes das que tínhamos anteriormente, pois os valores mudam e os usos e costumes se contrapõem. A cada época de nossa história as normas privilegiaram diferentes maneiras de agir e pensar. Já colocamos em primeiro lugar a religião, o dinheiro, o trabalho, mas à medida que evoluímos procuramos sempre a proteção das relações humanas. Essa proteção se dá com a Constituição e as leis daí resultantes.
Podemos dizer que as leis nascem, vivem e falecem. Às vezes ressuscitam, mas completam sempre o círculo da vida e da morte. Como no desenvolvimento em cadeia de uma fissão nuclear as leis vão surgindo e crescendo. E sua energia sendo gasta para que outras normas mais eficientes sejam elaboradas. A combustão inicial que dá azo a todo o processo de criação do Direito, entretanto, a energia suprema, é a Constituição, um conjunto normativo fonte. Devemos concentrar toda essa energia na verdadeira busca do que entendemos por Justiça.
Assim também ocorre com o mito da coisa julgada soberana: aquela que após o prazo para interposição da ação rescisória não poderia ser desconstituída de maneira alguma ou aquela que apesar do prazo para interposição da ação rescisória não tenha fluído por completo. Em ambas o legislador não previu a rescisão para o caso. A coisa julgada soberana nasceu, viveu e agora poderemos sepultá-la em cova profunda desde que sua energia esteja a causar incêndios e não a movimentar a sociedade rumo à Justiça anteriormente preconizada.
Lógico que não estamos veiculando o fim, a inexistência, a extinção da coisa julgada, porém o pacto constitucional que eleva a Constituição e tudo que nela está contido como princípios, regras e garantias é hierarquicamente superior a todo e qualquer ato do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário. Em que pese esse entendimento, de que a Carta Magna é superior, ser o mais aceito atualmente devemos lembrar que o Príncipe somente terá longevidade se transformar o seu poder em Direito e o respeito em dever. A sociedade deve estar atenta para mudanças constitucionais que a tornem meros vassalos do Príncipe.
Uma das primeiras problemáticas pensadas pelos teóricos do Direito, quando da realização primordial e aceitação do Direito, deve ter sido encontrar a solução possível para as sentenças ilegais ou injustas. O problema da coisa julgada inconstitucional é bem mais raso, no sentido de que o respeito à Constituição e o controle de constitucionalidade é recente, e possui pouco entendimento doutrinário e jurisprudencial.
A noção de relativização da intangibilidade da coisa julgada é difícil de ser intronizada devido a quebra aparente que se tem do ideário de estabilidade e segurança e da confiança que a sociedade tem no próprio Estado, como bem observa Canotilho em linhas volvidas. Isso porque também a certeza e a segurança do Direito são valores constitucionais.
Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria mudam o foco de discussão proclamando que
... por sua vez, o princípio da intangibilidade da coisa julgada, diferentemente do que se dá no direito português, não tem tratamento constitucional, mas é contemplado apenas na legislação ordinária. Isto significa, segundo assinalado no item anterior, que é ele, no direito nacional, hierarquicamente inferior. Não se pode, assim, falar no Brasil, de conflito entre princípios constitucionais, evitando-se com isso a séria angústia de se definir aquele que prevalece sobre o outro, como se dá em Portugal, a partir do princípio da proporcionalidade e razoabilidade. [54]
Data permissa venia, o princípio da intangibilidade da coisa julgada é uma das faces do princípio constitucional da segurança jurídica. A solução encontrada pelo eminente Professor é palatável e um atalho para evitar a discussão acerca do afrontamento entre princípios, mas não é a correta. Ora, não se pode querer dissociar a coisa julgada da segurança jurídica. Lembremos da inteligente intervenção de Miguel Teixeira de Sousa informando que
... o caso julgado é uma exigência da boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, pois que evita que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, obsta a que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante a resolução definitiva dos litígios que os tribunais são chamados a dirimir. Ela é, por isso, expressão dos valores de segurança e certeza que são imanentes a qualquer ordem jurídica. [55]
É aparentemente contraditório, portanto, a mesma Carta Magna elevar um princípio à categoria de fundamento da nação e, ao mesmo tempo, criar um outro princípio que impede que este direito seja pleno. No entanto, quando um se sobrepõe ao outro, deve-se analisar a relevância do direito a ser protegido.
A coisa julgada deve ser respeitada quando esse respeito realmente proteger o Direito que está, em tese, garantido à parte e veicular uma decisão constitucional. Mas quando a coisa julgada, como instituto processual, obstaculizar a supremacia da Constituição, em determinado momento, ela não deverá se sobrepor sob pena de aceitarmos que a res iudicata é um instituto mais importante que a própria Constituição.
O maior impasse encontrado pela tese da relativização da coisa julgada é o fato de que a coisa julgada se transformou num dogma que deveria predominar a todo custo, não importando a gravidade do Direito transgredido.
A coisa julgada é um instituto de extrema importância, pelos seus objetivos mesmos. No entanto, por exemplo, o princípio da constitucionalidade é, hoje, a forma mais segura de se controlar as ações do Estado, sendo justo que seja respeitado para beneficiar toda a sociedade e penalizado com a anulação da decisão equivocada, em alguns casos não por culpa do julgador, mas por culpa da inconstitucionalidade, talvez imperceptível num primeiro momento, que perturba o Estado de Direito.
Muitas vezes, entretanto, a busca cega pela segurança jurídica pode levar ao desprezo não querido de outros valores também protegidos pelo sistema constitucional, como a própria constitucionalidade dos atos do Poder Público, a Justiça e a dignidade da pessoa humana.
Devemos, sem dúvida, ter sempre em mente a busca por uma adequação do instituto da coisa julgada à realidade do sistema constitucional como um todo. Para esse fim, tem-se lançado mão do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade.
Impende notar que a solução pela flexibilização ou relativização da coisa julgada é excepcional e só pode ser invocada em situações "extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição". [56] A regra continua sendo - e é melhor que assim o seja - a do respeito à coisa julgada, sendo que os meios para essa relativização também devem ser cuidadosamente movidos para não se criar o malquerido estado de insegurança.
O Direito norte-americano nesse campo é bem mais avançado que os rigores perniciosos (tardiamente constatados) da autoridade da coisa julgada de origem romano-germânica. A cultura jurídica anglo-americana permite com profunda aceitação determinadas rescisões racionais à res iudicata, relativizando-a para homenagear princípios maiores e outras necessidades. Principalmente razões de ordem pública fora da relação jurídica em discussão, razões sociais específicas de cada case, enfim havendo um motivo muito especial é que poderá ser superada a coisa julgada. Deste modo, a jurisprudência e a doutrina americana trata a relativização da coisa julgada de uma maneira consciente e tranqüila sempre compatibilizando as decisões com os valores primordiais da sociedade e tendo em mente que a coisa julgada não quer dizer verdade absoluta. [57]
O venerável Ministro José Augusto Delgado visitando o tema acerca da coisa julgada e suas vicissitudes conclama a aplicação do princípio da moralidade por qualquer dos seus três poderes que para nós é invocado como princípio da constitucionalidade. Para o Ministro a decisão judicial deve mostrar às partes harmonia com os fatos e os ditames constitucionais, sendo que
... o Estado, em sua dimensão ética, não protege a sentença judicial, mesmo transitada em julgado, que bate de frente, com os princípios da moralidade e da legalidade, que espelhe única e exclusivamente vontade pessoal do julgador e que vá de encontro à realidade dos fatos.
A moralidade está ínsita em cada regra posta na Constituição e em qualquer mensagem de cunho ordinário ou regulamentar. Ela é comando com força maior e de cunho imperativo, reinando de modo aboluto sobre qualquer outro princípio, até mesmo sobre o da coisa julgada. A moralidade é da essência do direito. A sua violação, quer pelo Estado, quer pelo cidadão, não gera qualquer tipo de direito. Este inexiste, por mais perfeito que se apresente no campo formal, se for expresso de modo contrário à moralidade. [58]
O Professor Paulo Roberto Oliveira Lima também adentrando ao tema da relativização da coisa julgada expõe que nosso sistema adotou a tese da unicidade do Direito, isto é, "todo direito, dever, pretensão, obrigação, ação e exceção são originários da norma incidente sobre o fato por ela previsto hipoteticamente, não sendo lícito ao magistrado editar comando dissociado do direito objetivo". [59] Isto faz que o legislador mediante a possibilidade de ocorrência de sentenças erradas, injustas e inconstitucionais entabule o surgimento de um remédio jurídico capaz de rever o bem julgado. A permissa de que o julgado possa ser revisto é incompatível com a falsa aparência que possui o mito da coisa julgada. Nesse sentido, o Professor entende que
... a idéia de uma coisa julgada suscetível de ser atacada, revista e desconstituída, parece em princípio contraditória, visto que o instituto da coisa julgada se define a partir do elemento "imodificabilidade". O operador do Direito se acostumou com o entendimento de que a coisa julgada representa o fim de uma discussão, o ponto final da lide, caracterizando-se como a entrega da prestação jurisdicional certa, indiscutível, derradeira.
Mas não é bem assim. Ao inverso, a coisa julgada, mesmo se adotada a tese da dualidade do Direito, como fez o atual Código de Processo Civil (deslembrado de que não poderia fazer esta opção, mercê da adoção, pelo Direito Constitucional, dos princípios da legalidade, da isonomia, e do estado democrático de direito), é modificável, ou seja, a imutabilidade que a caracteriza não é tão absoluta quanto se imagina. Afinal de contas o sistema instituiu, ao lado da coisa julgada, a ação rescisória que se destina especificamente a atacar, rever e desconstituir a coisa julgada material. [60]
Considerando que o problema da relativização da coisa julgada em última análise se dá pelo choque entre dois princípios constitucionais devemos nos socorrer da hermenêutica constitucional para justificar a utilização da proporcionalidade. Segundo Inocêncio Mártires Coelho, a dicotomia constitucionalidade/inconstitucionalidade encontra-se sobremaneira ligada à questão da interpretação constitucional. Poucos doutrinadores se aventuram neste rumo, pois evidencia-se na ciência jurídica que a questão do método é essencial. Estabelecer um método e critérios para a atividade interpretativa que opera com parâmetros tão amplos traduz uma substância de verdadeira criação constitucional pós-Constituição. A teoria da interpretação constitucional passa por um período de abertura em que todos os cidadãos e grupos buscam a legitimidade para também participarem do processo hermenêutico constitucional (Peter Härbele). [61]
É relativamente aceito entre os juristas que sopesar princípios é tarefa árdua e deve ser feito sempre com uma discussão de caso como pano de fundo e
... por isso é que, diante das antinomias de princípios, quando em tese mais de uma pauta de valoração parecer aplicável à mesma situação de fato, ao invés de se sentir obrigado a escolher este ou aquele princípio – com exclusão de todos os demais que, prima facie, ele imagina poder utilizar como norma de decisão –, o intérprete-aplicador fará uma ponderação entre os standards concorrentes, optando, afinal, por aquele que, nas circunstâncias, e segundo a sua prudente avaliação, deve ter um peso relativamente maior.
Porque se trata de um método de ponderação de bens no caso concreto, é intuitivo que, pelo menos sob esse prisma, não possa existir uma hierarquia fixa, abstrata e apriorística, entre os diversos valores e/ou princípios constitucionais, ressalvada – porque axiologicamente fora de cotejo – a dignidade da pessoa humana, como valor-fonte de todos os valores, valor fundante da experiência ética ou se preferirmos, como princípio e fim de toda ordem jurídica. [62]
Por fim, considerando que a finalidade maior do Direito é a aplicação da justiça, que uma decisão constitucional tem grande chance de estar contida dentro do valor justiça, que a sociedade atual não tolera erros, injustiças e inconstitucionalidades e que se a coisa julgada não consegue alcançar esses valores devemos estando em concorrência a segurança jurídica e a constitucionalidade aplicar ponderadamente, caso a caso, os dois princípios para que repercuta no bem julgado o respeito à Constituição.
2.4 COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
Conforme observa Savigny em linhas volvidas, todo processo deve receber uma solução, a qual, obviamente, reflete sobre o conteúdo e a extensão dos direitos litigiosos submetidos pelos interessados à apreciação do órgão julgador. Com freqüência, pode ser extremamente duvidosa a decisão de um processo e, por isso, seria natural revê-la sempre que algum dos interessados a reputasse errônea. Mas, em assim sendo, os processos poderiam repetir-se indefinidamente, o que resultaria num estado de perpétua incerteza, incompatível com os desígnios da Justiça.
Em face desses dois sérios perigos – a sentença errada e a incerteza sobre os direitos – há de ser feita uma escolha para adotar o mal menor, escolha que, pertence ao Direito político. A opção até então universalmente aceita, fundamentada no Direito Romano, consiste em primeiro submeter a sentença a reexame perante órgãos hierarquicamente superiores e após, atribuir-lhe especial autoridade, que a torne imutável para o futuro, em face de todos os participantes do processo em que fora ela pronunciada.
Não imaginavam os romanos, porém, que um dia iríamos estabelecer uma Lex Mater para nos reger e que o respeito a ela, ao Estado Democrático de Direito e à separação dos poderes seriam tidos como valores supremos da sociedade ocidental para que haja a querida paz social e equilíbrio nas relações.
O Direito natural é imanente à natureza humana e estes postulados são universalmente aceitos por todos não importando a cultura que adotaram. Quando o homem se relaciona com outros e verifica na coletividade um meio de se desenvolver brota o Direito positivo, materializado no contrato social. Então temos que: Direito natural + interação social = Direito positivo, que gera contrato social, normatização e costumes.
Eventualmente os pressupostos do Direito positivo colidirão com os do Direito natural, exemplificado pela pena de morte, pena de mutilação e escravidão. Podemos concluir que teremos no mundo jurídico duas vertentes principais: os jusnaturalistas cuja opção filosófica se fundamenta no valor da dignidade do ser humano e os positivistas cuja opção se baseia no Direito ditado pela autoridade. Em alguns momentos o Direito natural será positivado, mas em outros se observará uma contradição entre eles, justamente porque dentro da evolução do homem a lei continua sendo ditada pelas classes dominantes, ou simplesmente, que se coloca a vontade particular acima da vontade geral por incontáveis situações.
Para apimentar a discussão filosófica Luiz Roberto Barroso acrescenta o pós-positivismo que seria a majestade dos princípios e o reconhecimento de valores sociais. O professor, assim, expõe sua idéia:
A novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica. Os princípios, vindos dos textos religiosos, filosóficos ou jusnaturalistas de longa data permeiam a realidade e o imaginário do Direito, de forma direta ou indireta. Na tradição judaico-cristã, colhe-se o mandamento de respeito ao próximo, princípio magno que atravessa os séculos e inspira um conjunto amplo de normas. Da filosofia grega origina-se o princípio da não-contradição, formulado por Aristóteles, que se tornou uma das leis fundamentais do pensamento: "Nada pode ser e não ser simultaneamente", preceito subjacente à idéia de que o Direito não tolera antinomias. No direito romano pretendeu-se enunciar a síntese dos princípios básicos do Direito: "Viver honestamente, não lesar a outrem e dar a cada um o que é seu". Os princípios, como se percebe, vêm de longe e desempenham papéis variados. O que há de singular na dogmática jurídica da quadra histórica atual é o reconhecimento de sua normatividade. [63]
Mas, enquanto o Direito natural é imutável, o Direito positivo é circunstancial e se conforma às necessidades e valores momentâneos de cada sociedade. A realidade social é que fornece subsídios para que o legislador elabore as leis, que devem ter no fato social sua razão e origem. O Direito não se justifica por si só e é por isso que as leis devem ser mudadas conforme a realidade social.
Essa reflexão inicial é necessária, pois segundo reiteradas vezes já dito no corpo do trabalho a realidade da coisa julgada, ou o mito da coisa julgada, está sendo desvendado pelos juristas. A confrontação entre a coisa julgada e aquilo que ela deve em síntese revelar que é a justiça com a constitucionalidade da decisão veiculada leva com propriedade a que imaginemos ser a coisa julgada também algo volátil e não completamente intangível como sempre foi ensinado nas cátedras.
Outro ponto crucial se constitui na bipolaridade dos valores em que a todo valor positivo corresponde um negativo. Ao valor da justiça corresponde a injustiça. O confronto existe entre dois valores: um positivo e um negativo. Não é possível, então, existir conflito entre dois valores positivos: justiça e segurança ou constitucionalidade e coisa julgada. O que pode acontecer é o juiz prestigiar um pouco mais um valor em detrimento do outro, mas isso de acordo com uma escala de valores.
Este preceito significa que a função jurisdicional integra também a fiscalização da constitucionalidade e que os tribunais – todos e cada um deles – têm o poder e o dever de confrontar com a Lei Fundamental as normas infraconstitucionais que sejam chamados a aplicar, tendo de recusar-se a aplicá-las se elas não forem compatíveis com ela. Desde que considere que uma norma é inconstitucional, o órgão judicante não pode aplicá-la em nenhuma circunstância, exceto se em possível recurso o juízo de inconstitucionalidade vier a ser revogado.
Ocorre que mais das vezes o órgão judicante não percebe a inconstitucionalidade e profere decisão que não é a justa para o caso. Transitando em julgado referido decisum estaria impossibilitada a desconstituição da mesma. O que ventila a teoria da coisa julgada inconstitucional é justamente que por ferir a Constituição da República a res iudicata deverá, e em alguns casos poderá, ser revista.
O juiz federal e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte Francisco Barros Dias ilustra o tema da seguinte maneira:
A coisa julgada inconstitucional está a merecer da classe jurídica brasileira uma nova postura, diante das situações constrangedoras que vem sofrendo o judiciário, em face a perplexidade dos jurisdicionados em se depararem com circunstâncias inexplicáveis, baseadas em disparidades de julgamentos, sem que nada possa ser feito, uma vez que tais situações se agravam ainda mais quando acobertadas pelo manto da coisa julgada.
Alguns casos com que nos deparamos, na prática, são exemplos típicos dessas situações. Vejamos. Basta ver o caso de um servidor público que obteve determinada vantagem funcional perante o Judiciário e, uma vez transitada em julgado a sentença que concedeu tal vantagem, está assegurado em seu direito de forma definitiva. Esse servidor, no entanto, exerce cargo idêntico ao de um outro colega da mesma repartição, ingressaram no serviço público na mesma data, com salários rigorosamente idênticos. O outro servidor também foi ao Judiciário buscar a mesma vantagem. Nada obstante, o Judiciário negou o seu direito, quer porque um outro Juiz entendeu que não fazia jus a tal pleito, quer porque houve mudança da jurisprudência sobre o assunto. A sentença proferida no processo desse outro servidor também transitou em julgado. A perplexidade reside no fato de que um está percebendo salário maior, concedido pelo Judiciário, e o outro uma menor remuneração, embora ambos estejam invocando a irreversibilidade de suas situações com base na coisa julgada. Pergunta-se: é justa essa situação? Não está havendo uma afronta ao princípio da isonomia? O princípio da isonomia não está insculpido na Constituição? Um princípio constitucional deve ser sacrificado em nome da coisa julgada, de forma irreversível? Não deveria haver algum remédio legal para corrigir essa distorção? [64]
Desaplicada a coisa julgada por motivo de inconstitucionalidade, o órgão judicante deve aplicar a norma que teria de aplicar na ausência da norma julgada inconstitucional, que tanto pode ser a norma que anteriormente regulava a matéria, uma norma subsidiariamente aplicável ao caso ou diretamente uma norma constitucional, notadamente a razoabilidade e proporcionalidade, quando não subsistir qualquer norma uma vez afastada a norma julgada inconstitucional, devendo, então, a causa ser julgada em conformidade com a Constituição, afinal não se pode deixar o caso sem ser julgado.
O princípio da proporcionalidade será, então, fartamente utilizado pelos operadores do Direito, dando uma conotação menos subjetiva e mais racional à decisão judiciária. Isso porque a regra da proporcionalidade, ao mesmo tempo em que produz uma controvertida ascendência do juiz (executor da justiça material) sobre o legislador, sem chegar todavia a corroer ou abalar o princípio da separação de poderes, serve também para frear os impulsos excessivamente subjetivistas do julgador, que passa a ter que observar critérios objetivos na solução dos casos concretos, sempre motivando suas decisões. Esse juiz, constantemente inquieto por não se conformar com a observância burocrática de seus deveres, nutre o ideal de se aproximar da verdadeira justiça, e, para tanto, mergulha no árduo mister de questionar a constitucionalidade dos atos públicos, ainda mais os do próprio Poder que faz parte, com os quais se defronta, aparando-se na lógica jurídica da razão.
Toda ação humana dá-se através de duas capacidades: o dom do indivíduo de realizar algo e a interpretação das outras pessoas como elemento suplementar a esta ação (é o feedback). O escritor ao "escrever" passa sua vida a fio tentando exprimir ao público leitor seus sentimentos, emoções e mais do que nunca suas opiniões sobre o mundo. Da mesma forma o escultor ao tomar a argila em suas mãos transforma o abstrato em concreto que é percebido por todos. De tal sorte também cabe a um seleto grupo de pessoas uma tarefa especial nas relações humanas: a criação de leis. Sem o dom ou não estes indivíduos eleitos pelo povo passam a ter a missão de traduzir a vontade geral em direitos e deveres.
Na outra ponta da ação está a interpretação feita individualmente que levará ou não ao efeito procurado pelo "artista". O leitor entende de várias maneiras um livro, um quadro é visto de inúmeras formas diferentes e sem sombra de dúvida uma lei será interpretada de muitas maneiras. Todo ato humano envolve juízo, isto é, ato de interpretação e são tendências pessoais, filosóficas e políticas, que se manifestam no processo da incessante adequação da norma aos fatos. Podemos concluir, portanto, que uma norma poderá ser aplicada de vários jeitos dependendo de quem a utiliza constituindo assim uma faca de dois gumes, pois poderá destoar do que seja justo ou não.
Se uma norma não mais atende à uma determinada realidade, fica a cargo do intérprete sua adequação para que não perca sua correspondência com a dinâmica dos fatos e cumpram sua destinação social. Sempre que uma lei for contra o Direito (é até difícil usar esta expressão, pois a lei deve precipuamente representar o Direito, mas há vários casos em que legisladores sem dom desobedeceram este costume e legislaram de má-fé) deve ser adaptada com a interpretação para que se faça a devida justiça.
Nesse sentido poderemos dizer que os juízes aplicarão as leis de acordo com seus valores e opiniões, fazendo do mito da neutralidade mero resquício dos antigos juristas. Os juízes são imparciais, sendo esta característica elemento primeiro para que a sentença carregada da subjetividade judicial tenha validade e fundamentação legítima. O Direito é dinâmico, deve traduzir a realidade social, e não se pode ficar apegado à literalidade da lei.
Como podemos extrair dá lei diversas visões, ou seja, comporta diversas interpretações, devemos pela nossa capacidade de visualizar o constitucional identificar aquela que traduz os princípios de justiça social e elegê-la como aquela que realmente representa o objetivo do povo e não do legislador. Essa busca pela melhor interpretação deverá sempre permear as relações jurídicas com a imparcialidade que pede o processo.
Enfrentamos o perigo de ser adotada, na conduta hermenêutica seguida para as suas normas por determinada maioria, ou por unanimidade de intérpretes, uma postura com condicionamentos não verdadeiros, o que cria uma falsa aparência de sua efetividade. Esse panorama, contudo, quando examinado em face de determinadas situações concretas, revela-se instável e passa a exigir novas reflexões e, conseqüentemente, aperfeiçoamento para o funcionamento das entidades jurídicas.
O princípio da imutabilidade da sentença soberanamente julgada deve ser repensado, sob pena de em nome dele eternizar-se injustiças. O ponto central olvidado por esta nova doutrina é a ofensa à Constituição pelo decisum desconforme às normas e aos princípios expressos na Carta Maior.
A coisa julgada, quando existe apenas uma infração à norma infraconstitucional, está calcada na segurança, estabilidade e certeza jurídica, não se podendo dizer daquela que viola diretamente norma constitucional. Os princípios que fundamentam a coisa julgada inconstitucional não são suficientes para mantê-la com caráter de imutabilidade, pois foi a Lei Maior que restou violada. Se fosse possível conceber essa contradição comprometer-se-ia todo o sistema jurídico.
A sentença passada em julgado é relevante e deve ser prestigiada, porém é vulnerável à própria atividade do Poder Judiciário e não guarda, por conseguinte, o caráter de intangibilidade que se lhe quer emprestar. Assim, para que se fale na tutela da intangibilidade da coisa julgada e, por conseguinte, na sua sujeição a um regime excepcional de impugnação, é necessário que se investigue sua adequação à Constituição.
Toda a doutrina da coisa julgada inconstitucional colhe parecer do eminente Professor da Faculdade de Lisboa Paulo Manuel Cunha da Costa Otero. Ele fundamenta toda a doutrina no seu livro Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional. Mesmo assim a doutrina brasileira traz os principais ensinamentos do mestre português em alguns recortes.
Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria citando Paulo Otero determinam que a coisa julgada será intangível somente enquanto conforme a Constituição, sendo que
... a sentença violadora da vontade do constituinte não se mostra passível de encontrar um mero fundamento constitucional indirecto para daí retirar a sua validade ou, pelo menos, a sua eficácia na ordem jurídica como caso julgado. Na ausência de expressa habilitação constitucional, a segurança e a certeza jurídicas inerentes ao Estado de Direito são insuficientes para fundamentar a validade de um caso julgado inconstitucional. [65]
Também Jorge Miranda proclama que "o princípio da intangibilidade do caso julgado não é um princípio absoluto, devendo ser conjugado com outros e podendo sofrer restrições". [66]
Um contraponto pode ser feito com a chamada coisa julgada ilegal. A coisa julgada pode, não deveria, contemplar uma ofensa à lei ordinária, estando sujeita a passado o prazo para sua impugnação ver validados definitivamente os seus efeitos. E o fundamento para tal assertiva advém da segurança e certeza jurídicas que deixa a sobrevivência de uma solução antijurídica desde que conforme com a Constituição. [67]
Apesar de se aceitar que a segurança e a certeza jurídica possam deixar passar uma coisa julgada ilegal não se pode dizer o mesmo da coisa julgada que afronta a Carta Magna, porque tais princípios não têm o condão de validar atos públicos inconstitucionais.
A lição de Paulo Otero mais uma vez é necessária:
A segurança e a certeza jurídicas apenas são passíveis de salvaguardar ou validar efeitos de actos desconformes com a Constituição quando o próprio texto constitucional expressamente admite. (...) Fora de tais situações, repete-se, os valores da segurança e da certeza não possuem força constitucional autônoma para fundamentarem a validade geral de efeitos de atos inconstitucionais. [68]
Por fim, Paulo Otero faz distinção entre inexistência e inconstitucionalidade das decisões judiciais, centrando no ponto de vista do alargamento do princípio a toda atividade do Poder Público, estabelecendo tipologias dos casos e da espécie, tipificando dentre as situações elencadas as principais modalidades de inconstitucionalidade do caso julgado, dando destaque a decisão judicial cujo conteúdo viola direta e imediatamente um preceito ou um princípio inconstitucional. E ainda veicula a possibilidade de se atacar o caso julgado inconstitucional por ação autônoma intentada com tal objetivo, desde que se possa identificar minimamente as características do ato judicial que obedeça os requisitos formais e processuais mínimos para sua existência no mundo jurídico. [69]
Nesta senda, de admitir a nova doutrina, também são as conclusões de Carlos Valder do Nascimento a seguir sintetizadas:
b) as regras referentes à coisa julgada são regras no plano da lei ordinária que, inclusive, por expressa determinação constitucional, não podem contrair ou promover modificações no referido instituto que opera com força de lei nos limites da lide e das questões decididas, nos termos do Código de Processo Civil;
c) a inconstitucionalidade da sentença é inconciliável por ir de encontro aos preceitos estatuídos na Constituição, daí ganhar foros de nulidade de natureza insanável, oponível por ação autônoma, porquanto não coberta pelo processo recursal;
d) não existe nenhum choque entre o princípio da segurança jurídica e aplicação dos outros princípios que estão acima daquele, visto que o caráter absoluto que tenta lhe impingir não resiste mais aos primados da moralidade e da legalidade; [70]
O Ministro do STJ José Augusto Delgado persevera no assunto e não admite que a coisa julgada torne o branco preto e preto branco. A injustiça, a imoralidade e ataque à Constituição são defeitos que não condizem com a realidade de um Estado de Direito. Os valores da legalidade, da moralidade e da justiça estão acima do valor segurança jurídica.
Assevera o doutrinador que também se manifesta da mesma maneira em sede jurisdicional, deveras difícil de ocorrer considerando por vezes escritores dizendo para esquecer o que um dia publicaram, que:
O avanço das relações econômicas, a intensa litigiosidade do cidadão com o Estão e com o seu semelhante, o crescimento da corrupção, a instabilidade das instituições e a necessidade de se fazer cumprir o império de um Estado de Direito centrado no cumprimento da Constituição que o rege e das leis com ela compatível, a necessidade de um atuar ético por todas as instituições políticas, jurídicas, financeiras e sociais, tudo isso submetido ao controle do Poder Judiciário, quando convocado para solucionar conflitos daí decorrentes, são fatores que tem feito surgir uma grande preocupação, na atualidade, com o fenômeno produzido por sentenças injustas, por decisões que violam o círculo da moralidade e os limites da legalidade, que afrontam princípios da Carta Magna e que teimam em desconhecer o estado natural das coisas e das relações entre os homens.
A sublimação dada pela doutrina à coisa julgada, em face dos fenômenos instáveis supra citados, não pode espelhar a força absoluta que lhe tem sido dada, sob o único argumento que há de se fazer valer o império da segurança jurídica.
Há de se ter como certo que a segurança jurídica deve ser imposta. Contudo, essa segurança jurídica cede quando princípios de maior hierarquia postos no ordenamento jurídico são violados pela sentença, por, acima de todo esse aparato de estabilidade jurídica, ser necessário prevaler (sic) o sentimento do justo e da confiabilidade nas instituições. [71]
A coisa julgada, revelação suprema da certeza e da segurança jurídica, não é colocada em segundo plano pela possibilidade de uma pretensão de nulidade contra o julgamento violador de preceito constitucional. Primeiro, porque o seu alcance sofre limitações com a possibilidade de manuseio de ações judiciais (a todo direito corresponde uma ação) para desconstituição do julgado. Segundo, porque sempre deverá o órgão judicante utilizar-se da razoabilidade e proporcionalidade. Terceiro, porque tais situações são sempre excepcionais. De fato, inexiste a pretensa imutabilidade que se deseja atribuir às decisões emanadas do Poder Judiciário.
A coisa julgada não é norma absoluta (até poderíamos indagar o que é absoluto? Nem a matemática é absoluta) podendo sofrer limitações ditadas pelos demais princípios constitucionais num exercício de ponderação. Necessário dizer, contudo, que a essencialidade do princípio há de ser sempre preservado, sob pena de violação do próprio princípio da constitucionalidade.
A supremacia da Constituição e o papel do Excelso Pretório de guardião em relação a esta em detrimento da coisa julgada parece ser hoje o melhor caminho para o Direito Constitucional. Uma ponderação entre esses bens jurídicos não deve obrigatoriamente estar ao lado da coisa julgada, lógico tudo é analisado caso a caso, processo a processo. Vale ressaltar também que não existe uma reserva constitucional no sentido de que a coisa julgada possa ser desconstituída apenas por ação rescisória. Apesar de ser a rescisória a ação adequada em face da legislação, no problema analisado pelo trabalho há uma situação especial no sentido de que a coisa julgada formada contraria decisão superveniente do Excelso Pretório a respeito da interpretação da Constituição (hipótese que será aventada no próximo capítulo), o que em determinadas situações permitirá a utilização de outros remédios processuais.
2.5 DESCONSTITUIÇÃO DA COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL
Tradicionalmente no Direito brasileiro há um grande descontentamento com as decisões judiciais e muito se procura os Tribunais Superiores. Nesse sentido, a impugnação das decisões judiciais é feita primordialmente através de recursos não havendo a formação de uma nova relação processual. Além dessa maneira a doutrina aponta a utilização de ações autônomas, ensejando a formação de uma relação processual diferente da primeira, materializada na ação rescisória, nos embargos à execução, na exceção de pré-executividade e numa ação declaratória de nulidade da sentença.
Como já estabelecido o problema da inconstitucionalidade fere de morte o Estado de Direito. O modelo nacional de controle de constitucionalidade possui dois critérios o difuso e o concentrado. A Constituição da República não previu no controle concentrado a forma de se desconstituir a coisa julgada inconstitucional, deixando a via do controle difuso para ser utilizada pelos operadores do Direito.
Estabelece-se na doutrina acirrada discussão acerca de qual a natureza jurídica do ato inconstitucional. Somente após estabelecer essa característica que poderíamos manejar o remédio processual correto. Haveria nulidade, ineficácia ou inexistência do ato inconstitucional? Impende notar aqui que nosso entendimento é o de que o juiz deve apreciar a constitucionalidade de qualquer ato público de ofício, isto é, mesmo que não argüida, e quando o órgão judicante declara a inconstitucionalidade de um ato não está fazendo uma nova opção política, mas somente está fazendo cumprir a opção política do povo materializada na Carta Magna em detrimento da opção política do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário.
Para encerrar a questão da ineficácia do ato inconstitucional, ou seja, a impossibilidade de gerar efeitos, procuramos nos socorrer do Direito Privado. Existem quatro espécies de atos ineficazes: atos ineficazes propriamente ditos, atos inexistentes, atos nulos e atos anuláveis. [72] Os ineficazes propriamente ditos possuem elementos ou pressupostos essenciais, mas uma circunstância externa não lhe dá efetividade. O ato inexistente citando Clóvis Beviláqua é aquele ato "que não tinha sequer aparência de um ato jurídico de seu gênero". [73] A invalidação de um ato pode ser de dois tipos a nulidade e a anulabilidade. Sendo o vício insanável estamos diante da nulidade e estando o vício passível de reforma falamos de anulabilidade. Em ambos os casos o ato é ineficaz, mas existente.
A coisa julgada ocorre a partir de uma sentença ou acórdão e assim temos consubstanciado um ato jurídico. Não há que se falar em inexistência do ato, a não ser que haja falta de fundamentação, por exemplo. A coisa julgada inconstitucional seria, por conseguinte, ato nulo que merece ser retirado do ordenamento jurídico.
Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria acerca do tema estabelecem que
... uma decisão judicial que viole diretamente a Constituição, ao contrário do que sustentam alguns, não é inexistente. Não há na hipótese de inconstitucionalidade mera aparência de ato. Sendo desconforme à Constituição o ato existe se reúne condições mínimas de identificabilidade das características de um ato judicial, o que significa dizer, que seja prolatado por um juiz investido de jurisdição, observando aos requisitos formais e processuais mínimos. Não lhe faltando elementos materiais para existir como sentença, o ato judicial existe. Mas, contrapondo-se a exigência absoluta da ordem constitucional, falta-lhe condição para valer, isto é, falta-lhe aptidão ou idoneidade para gerar os efeitos para os quais foi praticado. [74]
A primeira forma de controle da coisa julgada inconstitucional aventada pela doutrina está na ação rescisória. Ocorre que o Código Adjetivo Civil, nas hipóteses da rescisória, não trata efetivamente da coisa julgada inconstitucional. Impende notar que as maneiras de ocorrer a coisa julgada inconstitucional são por meio daquelas decisões que violem diretamente as regras, princípios e garantias da Constituição, daquelas que apliquem norma inconstitucional, declarada ou não pelo Supremo Tribunal Federal no controle concentrado ou mesmo pelo controle difuso através de jurisprudência, e daquelas que deixam de aplicar norma constitucional por ter o órgão judicante incidentalmente declarado sua inconstitucionalidade.
A admissibilidade da ação rescisória para atacar a coisa julgada inconstitucional tem sido permitida numa interpretação extensiva do rol do artigo 485 do CPC e para homenagear os princípios processuais da instrumentalidade e da economia processual. Entretanto, não se quer com isso tratar a inconstitucionalidade da coisa julgada da mesma maneira como se trata a coisa julgada ilegal. Isso porque inclusive a nulidade pode ser decretada de ofício por conta da inconstitucionalidade, o que pode se dar a qualquer tempo.
Desta forma, a coisa julgada
... desconforme a Constituição padece do vício da inconstitucionalidade que, nos mais diversos ordenamentos jurídicos, lhe impõe a nulidade. Ou seja, a coisa julgada inconstitucional é nula e, como tal, não se sujeita a prazos prescricionais ou decadenciais. Ora, no sistema das nulidades, os atos judiciais nulos independem de rescisória para a eliminação do vício respectivo. Destarte pode "a qualquer tempo ser decretada nula, em ação com esse objetivo, ou em embargos à execução" (STJ, Resp 7.556/RO, 3ª T., rel. Min. Eduardo Ribeiro, RSTJ 25/439). [75]
A coisa julgada é uma opção política da sociedade para dar efetividade à administração da Justiça. A coisa julgada se funda numa sentença ou acórdão que está condicionado à algumas premissas. As mudanças nestas premissas notadamente as mudanças de fato ou de direito acabam por macular a coisa julgada. E a declaração de inconstitucionalidade é uma mudança no Estado de Direito que é um dos pilares da decisão judicial.
A partir daí, o Poder Executivo através da Medida Provisória 2.102-27, de 26/01/2001 inseriu um parágrafo único no artigo 741 do CPC, com o seguinte conteúdo:
Para efeito do disposto no inciso II deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal.
Por força deste parágrafo único introduziu-se na legislação brasileira a teoria da coisa julgada inconstitucional e constitui mais uma forma, sem prazo, para atacar a coisa julgada eivada de inconstitucionalidade já que o texto estatui a inexigibilidade do título executivo judicial.
Tal possibilidade nos remete automaticamente a uma outra, pois
... o novo parágrafo único do art. 741, do CPC permitiu que tal relativização também ocorresse no incidente da exceção de pré-executividade, haja vista que a exigibilidade do título, por constituir condição da ação executiva, é matéria de ordem pública, que pode ser conhecida de ofício pelo Juízo da execução. [76]
Outra maneira possível de se desconstituir a coisa julgada inconstitucional está em por via de ação autônoma que não está sujeita a prazo e objetiva a reexaminar a relação jurídica numa outra relação processual. Tal ação poderia ser uma ação declaratória ordinária ou uma ação constitutiva negativa.
Optando pela declaratória ordinária estaremos diante da verificação da querela nullitatis. O Professor Ovídio Baptista da Silva define o instituto como uma ação contra as sentenças nulas que era no Direito medieval utilizada pelas partes em oposição ao recurso de apelação que era utilizada nas sentenças válidas. A querela nullitatis evoluiu até chegar ao que conhecemos hoje como ação rescisória. [77]
A mensagem preponderante é a de que o Direito brasileiro começa a verificar na prática a noção de coisa julgada inconstitucional e que a sua desconstituição caminha a passos largos por ser a sentença inconstitucional nula de pleno direito que merece ser expurgada a qualquer tempo e por qualquer meio do ordenamento jurídico.