6. FLEXIBILIZAÇÃO DO CRITÉRIO DE ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO
Com o intuito de conferir efetividade ao direito previsto constitucionalmente, o legislador infraconstitucional exerceu o dever de regulamentação imposto pela própria CF, editando a Lei n° 8.742/93. O referido diploma legal estabeleceu como requisito objetivo para a concessão do LOAS, em seu art. 20, parágrafo 3º, a renda familiar per capita inferior a ¼ do salário-mínimo, objeto de discussão neste artigo.
6.1. Composição da Renda Familiar e o limite de ¼ de salário mínimo
Além dos requisitos anteriormente elencados para concessão do benefício assistencial, existe o requisito necessidade. Este é referido no artigo 203, V, da Constituição da República como sendo a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida pela sua família. O artigo 20, parágrafo 3º, da Lei nº 8.742/93, regulamenta a previsão constitucional, considerando como “incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ de salário mínimo.”
Nesse sentido, acrescenta F. Z. Ibrahim (2015, p.16):
Interessante observar que a parametrização em salários mínimos, para fins de qualificação, é adotada também em outras hipóteses, como no Decreto nº 6.135/07, o qual, ao instituir o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal, define como família atendida aquela com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo, ou a que possua renda familiar mensal de até três salários mínimos (art. 4º).
De acordo com o entendimento de F. Amado (2015, p. 46), a grande polêmica que persistitu durante anos foi saber se o critério da renda individual dos membros da família poderia ser flexibilizado em situações concretas, com o manejo de outros critérios a serem considerados mais adequados pelo julgador, a exemplo do abatimento da renda familiar das despesas com medicamentos não disponibilizados pelo SUS.
F. Z. Ibrahim (2015, p. 14) ainda esclarece que o conceito de necessitado foi considerado constitucional pelo STF quando do julgamento da ADIN nº 1.232-DF. No entanto, já decidiu o STJ que o limite de ¼ de salário mínimo não é absoluto, pois deve ser considerado como um limite mínimo, um quantum objetivamente considerado insuficiente à subsistência do portador de deficiência e do idoso, o que não impede que o julgador faça uso de outros fatores que tenham o condão de comprovar a condição de miserabilidade do autor (AGRESP 523864/SP, Rel. Min. Felix Fischer). Mesmo entendimento no AgRg no AREsp 202.517-RO, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 02/10/2012.
Ainda nesta toada de compreensão, aponta M. Folmann (2012, p. 101):
Acredita-se que no Estado Social, os ditos direitos de segunda geração não visam a tutela de indigentes – pelo contrário, quer-se trazer o homem para o seio social e isto representa o acesso à dignidade. Logo, as bases argumentativas fundadas exclusivamente no critério de ¼ invertem completamente a origem e objetivo do benefício, renegam a evolução social, mantém a indigência por via transversa, já que alimentam a justificativa de concessão do benefício para quem está abaixo da linha de miséria, ou seja, nem chega à qualidade de indigente.
Deste modo, o parágrafo 3º do art. 20, da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), considera incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo. Esse dispositivo teve sua constitucionalidade questionada no STF, por meio da ADIn 1.121-1, ao fundamento de contrariar o disposto no art. 7º, IV, da CF. A ADIn foi julgada improcedente, o que gerou interpretações no sentido de que o julgamento do STF, no caso, não teria força vinculante.
O STF, na ADIn 1232, decidiu pela constitucionalidade do dispositivo, ao tratar do requisito objetivo de miserabilidade e de sua presunção quando a renda per capita da família for inferior a ¼ de salário mínimo. No entanto, Wedley T. G. L. Souza (in J. A. Savaris, 2014, p. 457) entende permanecer a ideia de que ao juiz continua a possibilidade de interpretação das normas jurídicas, especialmente quando tem por objeto o direito de indivíduos hipossuficientes envolva a assistência social.
Nesse meio tempo, uma série de leis estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, no valor de ½ salário mínimo para a per capita familiar, tais como a Lei nº 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei nº 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei nº 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; e a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. Em relação a isso, o Supremo decidiu à época que leis que disciplinem outros benefícios não têm o condão de alterar as disposições da Lei nº 8.742/93, já que estas tem como fim específico regulamentar aquele benefício constitucionalmente previsto.
Veja-se que leis posteriores à Lei nº 8.742/93 consideram como pobres para a concessão de outros programas de benefícios assistenciais a renda familiar per capita inferior a ½ (meio) salário mínimo (v.g. Lei nº 9.533/97 – programa federal de garantia de renda mínima e Lei n º 10.836/04 – que cria o Bolsa Família) – e esses seriam os fatos supervenientes ao julgamento da ADIn 1232 e sobre os quais o STF, por óbvio, não se pronunciou áquela época. Da mesma forma, é possível a filiação em Cadastro Único para Programas Oficiais do Governo Federal (Decreto nº 3.877/01) das famílias que tenham como renda per capita até ½ salário mínimo. Então, é de se concluir que são esses que o governo reputa pobres, de modo que não se pode entender a persistência do critério mais restrito da Lei nº 8.742/93 (SOUZA, 2014, p. 457)
Desde então o STJ tem adotado o entendimento, que se tornou majoritário na jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, no sentido de que a decisão do STF não retirou a possibilidade de aferição da necessidade por outros meios de prova que não a renda per capita familiar; o parâmetro de ¼ do salário mínimo configuraria presunção absoluta de miserabilidade, dispensando outras provas. Daí que, suplantantado tal limite, outros meios de prova porderiam ser utilizados para a demonstração da condição de miserabilidade, expressa na situação de absoluta carência de recursos para a subsistência.
Nesse sentido, esclarece Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 622):
Em virtude de um número significativo de decisões das instâncias ordinárias flexibilizando os critérios, alguns ministros do STF, em decisões monocráticas, passaram a negar seguimento às reclamações do INSS, argumentando que a reclamação não seria a via adequada para avaliar e reexaminar o conjunto probatório e as circunstâncias fáticas nas quais se louvou a decisão impugnada para o efeito de conceder o benefício, o que, somado aos novos critérios assistencias introduzidos na ordem jurídica para a concessão de outros benefícios assistenciais, mas também à vista da profunda alteração do quadro econômico nacional, evidencia que os critérios originais, notadamente naquilo que excluem outros parâmetros para aferição, no caso concreto, da condição de miserabilidade, tudo a atestar, de acordo com a voz de Gilmar Mendes, “o processo de inconstitucionalização por que tem passado o § 3º do art. 20. da LOAS (Lei 8.742/1993)”, processo este que abarca a verificação de um estado de inconstitucionalidade por omissão parcial e um dever constitucional do legislador no sentido de corrigir tal estado.
6.2. Conceito de família
Primeiramente, cumpre observar que, para fins de cálculo da renda per capita, a família é composta pelo requerente, cônjuge ou companheiro, os pais e, na ausência deles, a madrasta e o padrasto, os irmãos solteiros, os filhos e enteados solteiros e os menores tutelados (J. B. Lazzari, 2010, p. 437). Sendo assim, não são considerados, mesmo que vivam sob o mesmo teto, pessoas com vínculos familiares diversos, como tios, primos, netos, etc (M.L. Tavares, 2012, p. 20).
Dispõe o parágrafo 3º do artigo 20, da Lei nº 8.742/93, que é requisito para a concessão do benefício assistencial que os membros da família do assistido não possuam renda mensal per capita superior a ¼ do salário mínimo. De acordo com a doutrina, abre-se aqui um enorme leque de discussão. Principalmente, no que diz respeito à definição acerca de quem deve compor a renda familiar. Entendia-se por família, nos termos do revogado Decreto nº 1.744/95, “a unidade mononuclear, cuja economia é mantida pela contribuição de seus integrantes”.
Todavia, a lei nº 9.720/98 alterou, pela primeira vez o conceito de família, afastando-se do termo mononuclear, que não era suficientemente esclarecedor. A partir de então, segundo M. Folmann (2012, p. 95), o grupo familiar seria formado pelas pessoas que vivessem sob o mesmo teto e estivessem elencados no art. 16. da Lei nº 8.213/91, o qual traz o rol das três classes de dependentes e segurados do RGPS (Regime Geral da Previdência Social). Dessa forma, o grupo era formado, além do requerente: a) pelo seu cônjuge ou companheiro; b) pelos seus filhos, enteados, ou tutelados até 21 anos e não emancipados ou incapazes de qualquer idade; pelos seus pais; e pelos seus irmãos de até 21 anos de idade, não emancipados ou incapazes de qualquer idade.
A título de exemplo, assim determinava o Enunciado 15 das Turmas Recursais de São Paulo (3ª Região):
Enunciado 15: “Para efeitos de cômputo da renda mensal per capita com vistas a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20. da Lei 8.742/93, considera-se família o conjunto de dependentes do Regime Geral de Previdência Social que vivam sob o mesmo teto.”
Ocorre que, com a alteração da redação do § 1º art. 20. da Lei nº 8.742/93, trazida pela Lei nº 12.435/2011, os componentes do grupo familiar deixam de ser os mesmos elencados na tabela do RGPS (art. 16, da Lei nº 8.213/91), mas considera como família pessoas que vivam sob o mesmo teto e que tenham o seguinte grau de parentesco: a) cônjuge ou companheiro; b) filhos, enteados solteiros e menores tutelados; c) pai, padrasto ou madrasta; d) irmãos.
F. Z. Ibrahim (2015, p. 15) defende que não se deve aqui aplicar o conceito mais amplo de família previsto nas Leis nº 10.219/2001 e nº 10.689/2003, exposto como “a unidade nuclear, eventualmente ampliada por outros indivíduos que com ela possua laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela contribuição de seus membros”. Para o autor, a LOAS possui conceito específico para os fins do benefício asssistencial de prestação continuada, e a tentativa de adoção de conceitos outros, ainda que previstos em leis assistenciais diversas, é evidente tentativa de restringir uma garantia social assegurada pela Constituição. Cumpre, pois, mencionar a decisão seguinte:
Avós, tios e primos, não são dependentes para efeitos previdenciários, de acordo com o art. 16. da Lei nº 8.213/91, não fazendo parte, portanto, do conceito legal de família previsto pelo art. 20, parágrafo 1º, da Lei nº 8.742/93. Assim, a renda familiar é inexistente. Logo, a renda per capita familiar é zero, portanto, inferior até mesmo ao limite legal de ¼ do salário mínimo
(TNU/JEF – Proc. nº 2005.70.95.004847-1, DJU de 1.12.06. p. 773).
A alteração do grupo familiar afetou diretamente a comprovação do requisito socioeconômico (observe-se que a alteração seguiu as regras da concepção civil de família do Código Civil Brasileiro, art. 1.511. e seguintes). A regra é que a ampliação do grupo familiar, com a inserção de filhos, enteados e irmãos maiores de 21 anos (desde que solteiros), diminua a concessão dos benefícios. Como na maior parte dos casos esses componentes são economicamente ativos, a sua renda passa a ser considerada no cálculo da renda per capita do requerente, aumentando-a, dificultando-se o preenchimento do requisito sócioeconômico. Por outro lado, pode ser que a ampliação do grupo familiar, em alguns casos, facilite a comprovação do requisito sócioeconômico pelo requerente, a depender de os novos componentes inseridos no grupo familiar possuam ou não, no caso concreto, alguma renda.
6.3. Análise das Condições de Miserabilidade no Caso Concreto
Conforme já exposto, o Brasil, mais recentemente, aprovou, por meio do Decreto Legislativo nº 186/08, o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Por esta convenção, em seu art. 28, os Estados-partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias, inclusive alimentação, vestuário e moradia adequados, bem como à melhoria constante de suas condições de vida, e deverão tomar as providências necessárias para salvaguardar e provmover a realização deste direito sem discriminação baseada na deficiência (F. Z. Ibrahim, 2015, p. 15).
O Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Reclamação proposta pelo INSS nº 4.374, relativa ao critério econômico para concessão de benefício assistencial (renda familiar per capita do até ¼ de salário mínimo), reconheceu a inconstitucionalidade parcial por omissão, sem pronúncia de nulidade e sem fixar prazo para o legislador eleger novo parâmetro (Lazzari, 2010, p. 438). A questão foi analisada pelo STF, em 18 de abril de 2013, no julgamento conjunto dos REs 567.985/MT e 580.963/PR, com reconhecida repercussão geral, e da Rcl 4.374/PE. O Tribunal, por fim, negou provimento aos REs, e julgou improcedente a Reclamação, declarando incidenter tantum a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 34. do Estatuto do Idoso e do parágrafo 3° do art. 20. da LOAS – sem pronúncia de nulidade dos dispositivos, assentando a possibilidade de utilização de outros meios de prova para aferição da miserabilidade. Abaixo a ementa da decisão referida:
Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo fosse concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovassem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. 2. Art. 20, § 3º da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Reclamação como instrumento de (re) interpretação da decisão proferida em controle de constitucionalidade abstrato. Preliminarmente, arguido o prejuízo da reclamação, em virtude do prévio julgamento dos recursos extraordinários 580.963 e 567.985, o Tribunal, por maioria de votos, conheceu da reclamação. O STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão ou do ato que é impugnado na reclamação. Isso decorre da própria competência atribuída ao STF para exercer o denominado controle difuso da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação – no “balançar de olhos” entre objeto e parâmetro da reclamação – que surgirá com maior nitidez a oportunidade para evolução interpretativa no controle de constitucionalidade. Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição. 4. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso a Alimentacao; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). 5. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993. 6. Reclamação constitucional julgada improcedente.
(Rcl. 4374, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 18/04/2013, Dje 04.09.2013. 10
Na mesma oportunidade, o STF reputou inconstitucional o parágrafo único do art. 34. do Estatuto do Idoso por violar o princípio da isonomia, ao abrir exceção para o recebimento de dois benefícios assistenciais de idoso, mas não permitir a percepção conjunta de benefício de idoso com o deficiente ou de qualquer outro previdenciário.11
A Turma Nacional de Uniformização também tem se manifestado no sentido de não considerar absoluto o critério de auferição de renda inferior a ¼ do salário mínimo:
TNU: A renda familiar per capita de até ¼ do salário mínimo gera presunção absoluta de miserabilidade, mas não é um critério absoluto. Trata-se de um limite mínimo, motivo pelo qual a renda superior a este patamar não afasta o direito ao benefício se a miserabilidade restar comprovada por outros meios
(PEDILEF nº 2007.70.50.014189-4/PR, DJ 13.5.2010).
Para a TNU, não havendo mais critério legal para aferir a incapacidade econômica do assistido, a miserabilidade deverá ser analisada em cada caso concreto, sendo possível aferir a condição de hipossuficiência econômica do idoso ou do portador de deficiência por outros meios que não apenas a comprovação da renda familiar mensal.12
Vale ressaltar, pois, que a aparência de asseio da residência, os móveis que a guarnecem, bem como a razoável satisfação das necessidades básicas de alimentação, entretenimento e/ou higiene não descaracterizariam a presunção de miserabilidade, agora absoluta pelo perfazimento do requisito econômico e como parece ser a tendência dos julgados (W. T. G. L. Souza, 2014, p. 459). Nesse sentido, a seguinte decisão:
[...] Não se descaracteriza a condição de miserabilidade do beneficiário desprovido de renda, que viva em imóvel humilde, guarnecido por mobiliário e eletrodomésticos de uso comum e sem qualquer ostentação, cedido aos pais por filho maior de idade e que não reside sob o mesmo teto.[...]
(Turma Nacional de Uniformização – IUJEF 20067095004798 – Rel. Juiz Federal João Carlos Mayer Soares – Data da decisão 16.02.2009 – DJ 25.03.2009).
De acordo com o entendimento de F. Amado (2016, p. 46), a grande polêmica que persistitu durante anos foi saber se o critério da renda individual dos membros da família poderia ser flexibilizado em situações concretas, com o manejo de outros critérios a serem considerados mais adequados pelo julgador, a exemplo do abatimento da renda familiar das despesas com medicamentos não disponibilizados pelo SUS (W. T. G. L. Souza, 2014, p. 459), reitera tratar-se da garantia de um direito fundamental:
Pode-se pensar, assim, que esse modelo de assistência social onera por demais o Estado e que carece de contribuição da população assistida que não financia, nem em parte, essa despesa estatal. No entanto, aqui se fala da garantia de um direito fundamental e assim deve ser feito sem olvidar a realidade da nossa sociedade ainda muito desigual. A assistência social, para o nosso estado brasileiro, é um dever a ser realizado.
Para M. L.Tavares (2012, p. 21), a interpretação das normas legais em matéria que envolva direitos fundamentais deve levar em consideração o conceito chave do mínimo existencial que, no caso da prestação objeto de estudo está apoiado, em primeiro plano, na impossibilidade de exercício da atividade laboral e, em segundo plano, na impossibilidade de sustento próprio.
Esses dois conceitos, segundo o autor, proporcionam ao juiz a possibilidade de realizar uma interpretação que desenvolva o direito de acordo com o princípio ético-jurídico pautado na dignidade da pessoa humana.
Nas palavras de Karl Larens (1991, p. 99):
Os princípios ético-jurídicos são pautas orientadoras da normação jurídica que, em virtude da sua própria força de convicção, podem ‘justificar’ decisões jurídicas. Distinguem-se dos princípios técnico-jurídicos, que se fundam em razões de oportunidade, pelo seu conteúdo material de justiça.
Ainda, de acordo com Suzani Andrade FERRARO (2011, p. 74), no direito constitucional contemporâneo, o juiz deixou de ter um papel passivo. Ou seja, aquela figura mítica que apenas pronunciava a vontade do legislador ou era o escravo da lei cedeu lugar a um novo paradigma. O “novo juiz” se transformou em partícipe da sociedade e defensor da democracia, porque a prestação jurisdicional não é uma atividade exclusivamente jurídica, mas também provoca transformações políticas, sociais e econômicas.
Para a autora, o ativismo judicial tem como um dos objetivos principais garantir a plena realização das normas constitucionais e a efetivação dos direitos fundamentais quando os poderes públicos responsáveis pela efetivação direitos e garantias se quedem inertes, como foi o caso da decisão do Supremo Tribunal Federal, que garantiu aos agentes públicos, por meio de mandado de injunção, o pleno exercício do direito de greve (FERRARO, 2011, p. 81).
In verbis:
No direito previdenciário, o ativismo judicial tem sido fundamental para a efetividade dos direitos fundamentais, uma vez que trata-se da proteção ao direito humano. Assim, merece ser destacado, além da desaposentação, o caso das relações homoafetivas, o qual é abordado de forma a privilegiar os direitos fundamentais, dentre eles o direito à liberdade de escolha. Ademais, o Poder Judiciário vem inovando suas decisões em matéria previdenciária a partir de uma interpretação aberta que visa privilegiar princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, justiça social, igualdade, liberdade, dentre outros.
No presente caso, verificando que a previsão objetiva da lei não é suficiente para cumprir o princípio moral da dignidade da pessoa humana e que a insuficiência relega a pessoa incapacitada para o trabalho a uma situação de miséria, o juiz deverá externar fundamentadamente as razões de seu convencimento, baseado na concepção teleológica e ética (M. L. Tavares, 2012, p. 21). De igual modo defende J.A Savaris (2012, p. 28):
Mais do que traduzir uma elogiável postura processual, a participação ativa do juiz no processo previdenciário significa a ruptura com um método que foi considerado exemplar para as ciências da natureza. Devemos lembrar, neste particular, que a observação neutra do resultado do experimento não é mais absoluta nem mesmo no âmbito das ciências naturais. O método positivista, tal como sustenta Michael Löwy, traduz a manifestação de ideologia conservadora tendente a manter a estabilidade da ordem social que, em nossa repulsiva realidade de extremas desigualdades e banalizada injustiça social, é tudo que não se deseja.
Assim como ressaltou a Ministra Cármen Lúcia, a constitucionalidade da norma legal, assim, não significa a inconstitucionalidade dos comportamentos judiciais que para atender, nos casos concretos, à Constituição, garantidora do princípio da dignidade humana e do direito à saúde, e à obrigação estatal de prestar a assistência social ‘a quem dela necessitar, independentemente da contribuição á seguridade social’, tenham de definir aquele pagamento diante da constatação da necessidade da pessoa portadora de deficiência ou do idoso que não possa prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (Rcl nº 3.805/SP, DJ 18.10.2006).
Forçoso, pois, concluir, que os Tribunais parecem caminhar no sentido de se admitir que o critério de ¼ do salário mínimo pode ser conjugado com outros fatores indicativos do estado de miserabilidade do indivíduo e de sua família para concessão do benefício assistencial de que trata o art. 203, inciso V, da Constituição (M. L. Tavares, 2012, p. 21).
F. Amado (2015, p. 47) defende que, para conferir um mínimo de segurança jurídica ao INSS ou ao Poder Judiciário na aferição concreta da miserabilidade, é necessário que o Congresso Nacional atue rapidamente na votação de um novo critério para substituir o parágrafo 3º, do artigo 20, da Lei nº 8.742/1993, observados os limites orçamentários da União à Luz do Princípio da Precedência da Fonte de Custeio.
Deste modo, temos de ter em mente que, muito em breve, toda a regulamentação vigente deve sofrer alterações substanciais, haja vista a posição mais recente do STF pela inconstitucionalidade tanto do art. 20, parágrafo 3º, da Lei nº 8.742/1993, ao prever o critério objetivo da renda familiar per capita inferior a ¼ de salário mínimo, como do art. 34, parágrafo único, da Lei nº 10.741/2003, por restringir ao idoso a benesse de percepção simultânea de benefícios assistenciais sem cômputo na renda familiar (RE 567.985/MT, Rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 17 e 18/04/213 e RE 580.963/PR, Rel. Min. Gilmar Mendes, 17 e 18/04/2013).
Ainda no ano de 2015, a Turma Nacional de Uniformização editou a Súmula 79, dispondo que “nas ações em que se postula benefício assistencial, é necessária a comprovação das condições socioeconômicas do autor por laudo de constatação lavrado por oficial de justiça ou, sendo inviabilizados os referidos meios, por prova testemunhal. Assim, essa súmula cria uma tarifação dos meios de prova, só admitindo a testemunhal se não for possível a elaboração do laudo por assistente social ou por oficial de justiça (I. Kertsman, 2016, p. 484).
Já o recentíssimo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15), que entrou em vigor em janeiro de 2016, foi o primeiro dispositivo legal a desconsiderar como absoluto e único o critério de miserabilidade de ¼ de salário mínimo. De acordo com I. Kertsman (2016, p. 484), o Estatuto dispõe que para a concessão do benefício da LOAS, poderão ser utilizados outros elementos probatórios da condição de miserabilidade do grupo familiar e da situação de vulnerabilidade, conforme regulamento (art. 20, § 11, da Lei 8.742/93).
A inovação legal acarretará significativas mudanças, pois a interpretação do dispositivo permite concluir que, mesmo na esfera administrativa, um conjunto de fatores terá de ser avaliado para compor o conceito de miserabilidade no caso concreto.