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Povo e poder: quem possui quem?

31/07/2005 às 00:00
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Sumário: Introdução. 1. Quem é povo? 2. Caudilhismo redivivo no Brasil. 3. O neo-populismo ou neo-absolutismo. 4. O vácuo ideológico substituído pela falácia do interesse popular. 5. O povo e a lei. 6. A soberania popular - Conclusão


Introdução

É muito comum se valerem os governantes do manto da legitimação pelo voto para fundamentar como legítimas todas as suas ações. Praticam, com atitudes dessa ordem, o equívoco do silogismo impossível, aquele que se fundamenta em uma única premissa.

Dessa constatação, resulta a dúvida que se utilizou para intitular a presente análise. Seria de fato o povo possuidor ou possuído pelo poder?

Obviamente que alguns parâmetros devem antes ser traçados para que se possa iniciar a solução do questionamento acima proposto. Assim é fundamental que se delimite ser a problematização referente ao exercício do poder em um Estado Democrático de Direito, até porque em ditaduras a resposta, ou a ausência desta, salta aos olhos e à compreensão do eventual observador.

Será, pois, o povo de um território possuidor do poder, ou por este possuído?

Embora possa parecer despropositada a pergunta, esse despropósito somente é gritante em se cuidando do tema nos seus aspectos teóricos, porquanto, na atuação dos governantes fica cada vez mais patente não ser tão certo se é o povo titular do poder ou vice-versa, especialmente quando verificado que se usa da vontade expressa pelo voto para contrariar essa mesma vontade quando da realização de ações administrativas.

A busca, não de respostas, mas de um olhar crítico sobre o assunto, é o objetivo aqui proposto.


1. Quem é povo?

Trata-se de expressão de valor e conotação discutíveis, essa que simboliza a reunião de pessoas no território de um determinado Estado. Aliás, dizer isso já significa assumir apenas um dos múltiplos significados que a palavra possui.

Na concepção de Mário Lúcio Quintão Soares: "No paradigma do Estado democrático de direito, concebe-se o povo no sentido político e, simultaneamente, numa grandeza pluralística." Será, pois, a partir dessa visão de grandeza pluralística que se irá expender as considerações a seguir.

Constitui a afirmação de Mário Lúcio Quintão Soares, acima transcrita, verdadeira refutação liminar à idéia de alguns "neo-absolutistas", os quais como que parodiando Luís XIV, quase chegam a afirmar textualmente: o povo sou eu!

Ora, como apenas um poderia ser tantos, ter tantas facetas, qualidades e vicissitudes?

Povo, conforme demonstra José Joaquim Gomes Canotilho, anotado por Mário Lúcio Quintão Soares, sendo grandeza pluralística, resulta da conjunção de forças culturais, sociais e políticas, materializadas estas na atuação de partidos, grupos, igrejas, associações e personalidades, que influenciam de forma marcante e decisiva as opiniões, vontades, correntes ou sensibilidades políticas na oportunidade da elaboração da estrutura constitucional de um Estado Democrático.

Portanto, nem há povo na periferia miserável das grandes cidades, nem em seus condomínios fechados luxuosos. Há povo, sim, na soma das diversidades existentes em cada comunidade local, regional ou nacional, sendo este o resultado da média social obtida a partir da apuração da influência que cada uma das diversas pluralidades que integram o povo é capaz de incutir na formação da ideologia nacional.

A pretensão de se atribuir à parte qualidade que somente o todo possui, presente na conduta de pretensos líderes populares, que pretendem fazer povo aquela parcela que apenas o integra, constitui, quando por ignorância, falha imperdoável; quando por má-fé, crime irremissível contra o Estado Democrático de Direito.

Mesmo idéias boas com aplicação ruim não podem dar bons resultados. Assim, a defesa do ‘povo’ calcada visão obtusa e parcial não pode ter de bom nada mais que a mera intenção, sendo certo que esta não é suficiente para solucionar as vicissitudes em que se enraíza.

Somente o uso correto de idéias corretas produz os efeitos idealizados pelo princípio que as norteou. Assim, em nome da liberdade tivemo-la suprimida com o AI-5; alegando-se proteção a uma humanidade superior Hitler fez mostrar o que de mais inferior a humanidade possui; argumentando que iria levar civilização e respeito aos direitos humanos ao Iraque, o exército dos EUA os viola todos; as cruzadas foram iniciadas para a defesa do cristianismo e transgrediram, de forma bárbara, o único mandamento do Cristo.

Muito recentemente noticiou a imprensa norte-americana que o Pres. George W. Bush pretendia suspender as eleições nos EUA, caso o país sofresse um ataque terrorista. Lembremo-nos de que tudo começou como uma cruzada em prol da liberdade.

Ao se afirmar que se tomam determinadas atitudes para a defesa do povo, constantemente se maltrata esse mesmo povo, pois em iniciativas tais quase sempre ocorre um alheamento em relação ao próprio povo daqueles que seriam os seus interesses.

Daí surge nova constatação, a de que a população aliena-se da crítica e logo a seguir é alienada do poder soberano, que passa a ser exercido por alguém que se intitula representante de sua vontade, mas que a desconhece, ou se a conhece, ignora-a.

Quem se arvora em defensor desses ideais de defesa do interesse popular julga tão nobres suas ações, que se eleva acima do objeto de sua defesa, colocando-se não mais como defensor, mas tutor, portanto, alienando dos destinatários o controle dos seus próprios ideais.

A pergunta formulada por Fábio Konder Comparato, no prefácio que fez à obra de Friedrich Muller – Quem é o Povo?, sintetiza o problema: "Se o poder supremo numa democracia, como a própria etimologia nos indica, pertence ao povo, como definir este conceito, de modo a torná-lo o mais operacional possível e evitar as usurpações de soberania?"

Preocupado com as repercussões desse alheamento do ‘povo’ do desenvolvimento de uma visão crítica, ao mesmo tempo que cresce a busca pelo poder popular, Fábio Konder Comparato visualiza a necessidade de definição do conceito da expressão, a fim de que esta se torne operacional a ponto de impedir desvios que acarretem na supressão ao povo desse poder popular.

Com essa preocupação é que se constata que o uso da expressão ‘povo’ no Brasil mais tem sido como figura de retórica que como premissa verdadeira da problematização das dificuldades que esse povo enfrenta, a fim de se buscarem as soluções adequadas das mesmas.

Pior, ainda, é que, em geral, políticos de visão obliterada não conseguem, pela estreiteza do ângulo em que enxergam, ver o povo em toda a sua grandeza e diversidade, o que os faz tomar a parte pelo todo e, assim, ao invés de solucionar problemas os criam mais.


2. Caudilhismo redivivo no Brasil

Fala-se tanto em soberania popular que até tem sido corriqueiro que se trate o período de ocorrência do caudilhismo na América Latina como pretérito, todavia, o fenômeno em questão teima em renascer no Brasil, sempre dependente de salvadores da pátria e alheio às ideologias político-partidárias firmes, típicas de regimes democráticos amadurecidos.

A ausência de ideologia político-partidária provoca estupefação nos eleitores já conscientizados de sua importância, que a vêem fluida e metamorfoseante nos candidatos e partidos de sua escolha.

Direita e esquerda não significam mais do que situação e oposição.

Nesse ambiente de indefinição de ideologias, ou de desimportância destas, encontra terreno fértil o culto à personalidade, fazendo com que determinadas figuras assumam expressão mais relevante do que as agremiações que integram e, estas, muitas vezes, não passem de siglas de sua conveniência.

Sem o lastro da ideologia convicta as afirmações de campanha não passam de engodo lançado aos incautos eleitores, que, desprovidos de percepção crítica, ou movidos pela credulidade romântica de uma adolescência de idealismo tardio, servem apenas como chamariz, ou embalagem vistosa a embrulhar conteúdo vil, que mais uma vez torna inoperante a pretensão de se eleger governantes empenhados na concretização de ideais anteriormente afirmados.

E, assim, vive-se monotonamente entre a esperança pré-eleitoral e a desilusão quadrienal.

Furtam esses caudilhos, ao povo, o último e mais precioso de seus bens — a crença no porvir.


3. O neo-populismo ou neo-absolutismo

Neste início de milênio em que tudo o que é velho se reapresenta com maquiagem e se intitula NEO, registra-se o reaparecimento de argumentos favoráveis à existência efetiva de um poder popular. No entanto, esses argumentos reaparecem superficiais, sem a profundidade das teorias que originalmente os idealizaram.

O superficialismo com que têm se apresentado as neo-teorias possibilitam que sejam estas apropriadas por neo-populistas, os demagogos do terceiro milênio, meras reformulações de lanternagem político-partidária autorizadas pela ausência de crítica pessoal e independente, pois que se terceirizou o raciocínio.

Ressurgem, também, as práticas antidemocráticas, escondendo-se por trás da capa da defesa dos ideais populares, os neo-absolutistas, empenhados em fazer crer que todas as suas ações são legítimas, porque dirigidas à realização do interesse popular, ainda que contra a vontade desse mesmo povo. O paradoxo do interesse popular contrário à vontade geral.

Povo e Poder Popular são noções que não se confundem com ditadura populista de argumento ideológico proletário, uma vez que a expressão povo, em sua correta acepção, não pode indicar apenas certos segmentos da sociedade, mas a soma de todos, não importando sejam alguns mais influentes que outros ou que possuam quantitativos populacionais maiores ou menores. Povo, repita-se, é expressão de grandeza universalizante. Não é povo a camada pobre da população ou a classe média, ambos, conjunta ou individualmente, deste apenas fazem parte.

Tanto o novo populismo quanto a versão moderna do absolutismo — sabendo-se que é da índole do primeiro transmudar-se no segundo — afrontam o Poder Popular, porquanto, em ambos os casos, não se provê o que objetiva a Soberania Popular, a atuação estatal direcionada, indistintamente, à concretização da soma, pela média, dos interesses das partes que integram o povo, na medida de suas possibilidades.

Parece estranho, face à oscilação brasileira entre regimes democráticos e de exceção, que um ponto comum nas nossas constituições republicanas não foi jamais questionado, sequer pelos regimes ditatoriais: "que todo poder emana do povo".

É a partir dessa constatação que se faz uma outra presente na tentativa constante de captura para si da fonte da força estatal, pois o ‘povo’, ‘graal’ dos ditadores e demagogos, encontrando-se à mercê daquele que almeja o poder legitimaria a sua atuação.

A alienação crítica que grassa por todas as camadas que integram a grandeza universalizante que é o povo brasileiro, tem permitido que neo-populistas e neo-absolutistas pratiquem ações perniciosas ao desenvolvimento nacional, por impedirem a concretização dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, preconizados no art. 3º, Parágrafo único, da Constituição de 1988: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; que garanta o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais; e, ainda, que promova o bem de todos, sem preconceitos de nenhuma ordem.

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Nega-se, em parte porque se aliena a população do seu senso crítico e em parte porque alienada de educação que o propicie, a alguns segmentos nacionais a condição de integrantes do conjunto designado como ‘povo brasileiro’ e, em conseqüência, de que participem da formação da vontade soberana. Daí nasce uma democracia parcial , uma contradição entre termos, como se fosse possível ter-se meia liberdade.

Ora, a nenhuma das pluralidades integrantes do povo interessa verdadeiramente o impedimento de participação no poder popular de outra, porquanto sociológica, política e historicamente, tem-se visto bastante vigente o jargão latino: hodie mihi, cras tibi .


4. O vácuo ideológico substituído pela falácia do interesse popular

Partindo-se da premissa que interesse popular é aquele manifesto pela média das partes que integram o povo de um Estado, tem-se como problema ao qual deve-se buscar superação, a inexistência de ideologias que de seu antagonismo possam produzir essa média.

A carência ideológica abre espaço e oportunidade para que estes vazios ideológicos sejam ocupados de forma oportunista por políticos e, posteriormente, governantes, que preenchem o seu próprio vazio ideológico com o ideal de conquista do poder.

Fez-se, portanto, da conseqüência o fim.

Após o atingimento desse fim de conquista do poder passa-se à fase seguinte: a perpetuação no exercício do poder, cuja tentativa de legitimação escuda-se, invariavelmente, na argumentação de defesa dos interesses populares, quase sempre com justificativas do seguinte jaez, aliás, semelhantes àquelas constantes da exposição de motivos do AI-5: "faço-o cativo para que outros não o façam". E devemos nos alegrar por isso.

A crítica, o pensamento e com eles a ideologia foram proibidos no País. Nas escolas não se disciplina o raciocínio, mas doutrina-se para a repetição; não se ensina a questionar, mas a aceitar idéias prontas. Vive-se, atualmente, verdadeira época de terceirização do EU, com conseqüências morais, políticas e sociais terríveis, importando em que não existem responsáveis pelas mazelas nacionais e, muito menos, quem se disponha a lutar contra elas, porque alheias.

Saiu-se, então, do campo do interesse popular, para o do desinteresse geral.


5. O povo e a lei

A justificativa das ações no interesse popular, consciente de que esse interesse é em outros termos forma de apresentação da soberania, acaba por permitir que se utilize desse mesmo fundamento para negar vigência à própria lei, apresentando-se nessa atitude a faceta mais grave do neo-populismo e do neo-absolutismo.

Inexistente a crítica individual, pela alienação do pensamento, não se chega ao raciocínio que faria ver a contradição existente nessa negativa de vigência da lei, porque tivera aquela sua elaboração determinada pela soberania popular, com o fim de realização do interesse público.

Tem a lei, nos regimes democráticos, o significado de ordem emitida pelo soberano aos seus súditos. No caso brasileiro, porém, é necessário que se esclareça antes quem é soberano e quem é súdito, porquanto imaginam os governantes que o sejam e não sabe o povo que o é.


6. A soberania popular

O poder popular de autodeterminação, em que pese descrito no texto constitucional, em seu art. 1º, Parágrafo único, ainda não se fez efetivo. Não porque careça de regulamentação, pois sendo direito fundamental dispensa tal providência, mas porque necessita, para sua efetivação, de que se reconheçam as massas populares titulares da soberania, assumindo a força e a responsabilidade que acompanham o Poder.

Todo exercício de poder, que se dê com a exclusão de uma parcela da população, porque inapta até para reconhecer-se como possuidora daquele, jamais poder-se-á dizer Democrático, poderá, quando muito, se afirmar benévolo.

A infância do imperador ocasiona a regência, mas esta, se bem exercitada, buscará a educação do príncipe, a fim de que, ao assumir o poder que lhe pertence por direito de nascença, possa exercitá-la com magnanimidade.

Eis porque investir em educação, e educação séria, é empreendimento libertário.


Conclusão

Não há exercício do poder por quem desconhece possuí-lo.

Sem a exata noção da força que possui mesmo um gigante não será mais que um estorvo, um obstáculo inerte e inconsciente do potencial que representa.

Cabe, pois, à elite intelectual brasileira, no papel de regente das massas ignaras, alienadas pelo ensino desprovido de orientação crítica, à mingua de governantes que assumam a tarefa, não substituir-lhe a vontade, mas cuidar da educação do príncipe, a fim de que finalmente o POVO se faça SOBERANO.

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Sobre o autor
Antônio Flávio de Oliveira

advogado e assessor de procurador de Justiça em Goiás

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Antônio Flávio. Povo e poder: quem possui quem?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 760, 31 jul. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7061. Acesso em: 21 nov. 2024.

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