Capa da publicação Fato recorrente e fato episódico: oposição assimétrica
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Algumas ponderações acerca da eventual oposição assimétrica entre o fato recorrente e o fato episódico no âmbito das Ciências Sociais e do Direito

03/08/2005 às 00:00
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É necessário distinguir o que a norma jurídica tem de permanente do que ela possui de transitório

Que as Ciências Sociais não são Ciências Exatas, no sentido de não possibilitarem diagnósticos precisos e de longo prazo acerca da realidade social e de serem incapazes de formular cientificamente (leia-se, elaborar de maneira lógico-sistemática e pré-ordenada), leis gerais pertinentes a todos os fenômenos sociais (leis essas alicerçadas em proposições lógicas de comprovação empírica), é um truísmo que carece de maiores considerações teóricas e empíricas.

Contudo, o fato das Ciências Sociais não serem exatas, nos termos acima definidos, não exime o cientista social - no seu mister diário de desvendar o passado humano, analisar as estruturas sociais e/ou operacionalizar concretamente a normatividade legal da coletividade social -, de buscar de forma incessante a verdade acerca da exatidão factual, a explicação honesta do ocorrido e a analisar criticamente a estrutura cognitiva de modelos lógicos-abstratos da normatividade jurídica que regula as relações sociais.

Por via de conseqüência, o discurso das Ciências Sociais passa necessariamente pela formulação coerente das hipóteses de trabalho e pela explicitação da metodologia de pesquisa empregada, bem como passa pela explicitação dos parâmetros ideológicos pessoais do cientista social. Acrescente-se a isto o fato de que a explicação do fenômeno social e da estrutura das relações existentes na coletividade social se vincula, necessariamente, aos fenômenos que são importantes, num nexo de causalidade multideterminante (leia-se, um conjunto de fatores causais que possuem o mesmo grau de importância na determinação do curso evolutivo de determinados eventos sociais).

Mas como discernir, no universo das várias e distintas Ciências Sociais, o que é importante do que não é, sobretudo em termos da legitimidade e da eficácia social? E, concomitantemente à questão supra-formulada, cabe ainda indagar: o que é mais importante, em termos sociológicos, históricos e filosóficos, o fenômeno social particular ou o fenômeno social recorrente?

A visão positivista tradicional das Ciências Sociais (História, Sociologia, Direito, Economia, etc.), predominante em grande parte da primeira metade da última centúria, dá ênfase ao estudo do fenômeno jurídico-político e sociológico particular e do fato episódico histórico (= fato único e não-repetitivo ao longo do tempo) em detrimento dos fenômenos recorrentes, repetitivos, os quais se caracterizam por possuírem caráter mais amplo quanto a sua duração temporal. Somente aqueles fenômenos sociais episódicos que pudessem ser verificados e atestados cabalmente (= comprovados via documentos idôneos e de fácil acesso ao cientista social) é que tem, ou terão, relevância social, política, econômica e jurídica.

Já as correntes mais modernas das Ciências Sociais adotam uma posição diametralmente oposta, na medida em que, via de regra, vêem as Ciências Socais a partir de um enfoque que, em essência, tem como pressupostos básicos: 1º)um processo histórico e sociológico evolutivo de longo prazo nos quais as macro-estruturas sociais, culturais e econômicas são mais importantes que os fenômenos sociais, culturais e econômicos particulares ou únicos constituintes desse processo evolutivo, ou, por outras palavras, tais correntes centram as suas preocupações na "longa duração" temporal em detrimento dos fatos sociais ditos episódicos (= fatos sociais únicos) e, nesta medida, procuram compreender a evolução histórica e social menos a partir do encadeamento mecânico de fatos isolados e mais a partir de um panorama que englobe as mudanças dos elementos estruturais (fatores demográficos, estruturas mentais dos grupos sociais, etc.); 2º)parâmetros não-deterministas de causalidade adequados a cada conjuntura social e histórica mediante a construção de modelos isomórficos que dêem conta de toda a realidade social ou, pelo menos, de grande parte da realidade social. (1)

Existe um embate teórico entre as duas correntes supracitadas cujos "ecos" ainda podem ser ouvidos nos dias de hoje e que se vincula ao que denomino de "crise de consciência científica" dos cientistas sociais havida na primeira metade do século XX, "crise" essa que estava latente no início da referida centúria, aflorou logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e se agigantou no decorrer dos anos 30, 40 e 50 do supracitado século.

Em essência, a "crise" se centraliza na constatação feita por muitos cientistas sociais e filósofos de que as Ciências Sociais não podem se subsumir à mera análise cronológica dos feitos sociais stricto sensu (aí incluindo os fenômenos jurídicos) e/ou à singela crítica da realidade social alicerçada tão-somente na evolução temporal da Humanidade desprovida de um referencial axiológico não-ideológico (quer a nível político, quer a nível cultural e ético), bem como na constatação de que, ao longo do lento processo histórico as sociedades humanas não passam, necessariamente, pelos mesmos estágios evolutivos, tanto a nível político e econômico, quanto a nível cultural. (2)

Soma-se a essa "crise", o surgimento de as novas modalidades de interpretação históricas e sociológicas desenvolvidas nos últimos cinqüenta anos apoiadas por diversas técnicas de pesquisas e metodologias científicas que eram inimagináveis ao cientista social do início do século XX.

Enquanto a visão tradicional das diversas Ciências Sociais (tanto na sua vertente positivista clássica, quanto nas suas diversas modalidades neo-positivistas contemporâneas) encaram a evolução histórica e social de forma contínua e, não raro, unidimensional em termos estritamente temporais, os historiadores integrantes das correntes historiográficas surgidas a partir da referida "crise" vêem o processo social e histórico como algo que não é fechado em si mesmo em termos temporais, ou seja, a evolução humana não se dá de forma linear para todas as sociedades e muito menos em "pacotes" evolutivos atemporais.

Feitas as reflexões supra, creio que possamos seguir adiante e responder as indagações formuladas anteriormente, ainda que reconheça que as respostas sejam gerais.

O confronto teórico-metodológico entre as correntes sociais mais tradicionalistas e modernas envolvendo o que é particular e único e o que é recorrente e geral, no âmbito das Ciências Sociais, parte do pressuposto que o fato social único (= fenômeno social que possui características próprias, específicas, e que, via de regra não se repete no tempo) e o fato social recorrente situam-se num nível de assimetria disjuntiva interdependente, isto é, são fenômenos históricos e sociológicos que se situam em planos de causalidade distintas apesar de apresentarem múltiplas e constantes interações.

Na verdade, entendo que o referido confronto, ainda que tenha uma inequívoca importância epistemológica no âmbito das Ciências Sociais, é, em síntese, um debate superado e mal-direcionado pela singela razão que uma espécie de fato social não exclui, a priori, a outra espécie de fenômeno social no tocante a determinação do seu grau de importância.

O fato social episódico (= fenômeno social único) e o fato social recorrente (= fenômeno social que se repete no decurso do tempo com características ou qualidades intrínsecas semelhantes) são as duas faces de uma mesma moeda. Qualquer trabalho analítico de qualidade deve englobar as duas espécies de fenômeno social, sob pena de não fornecer um quadro histórico, social, político e jurídico acurado e coerente acerca do assunto objeto de estudo.

Nessa medida, entendo que privilegiar uma espécie de fenômeno em detrimento da outra espécie é, no mínimo, compactuar com um inequívoco absurdo científico.

Trazendo as considerações desenvolvidas nos parágrafos anteriores para a órbita específica da Ciência do Direito, reporto-me, inicialmente, ao eminente jurista Paulo Nader, segundo o qual "o patrimônio jurídico de cada pessoa, representado pela totalidade de suas situações jurídicas, apresenta uma parte imutável e outra cambiante, evolutiva, resultado, em grande parte do comércio jurídico." (3)

Nessa ordem de idéias, o operador do Direito deve, antes de mais nada, ver o Direito como uma Ciência Social voltada para a formulação e aplicação de regras jurídicas impessoais que regulam que as relações humanas individuais e coletivas num universo social sempre cambiante, e, assim sendo, deve ele - operador do Direito - ter sempre em mente que "o espírito das leis" reflete uma realidade social dinâmica e não nunca, jamais, uma realidade social estática, na medida em que os fenômenos sociais se situam tanto no plano do fato episódico, quanto em num nível da recorrência factual no decorrer de um lapso temporal de longa duração.

Em outras palavras, em face do processo evolutivo do próprio Direito, enquanto fenômeno social, a norma jurídica positivada, via de regra, traz embutida no seu comando legal elementos de duas categorias: 1º)elementos jurídicos dogmáticos (= princípios jurídicos cuja normatividade é abstrata dotados de uma efetividade jurídica transcendente em termos sociais e políticos e desprovidos de uma coercibilidade concreta) mais ou menos perenes vinculados a fenômenos sociais recorrentes e; 2º)elementos não-dogmáticos (= valores éticos e costumes sociais e/ou individuais mais ou menos passageiros vinculados a determinadas situações fáticas transitórias, interesses políticos e/ou econômicos momentâneos, etc.) vinculados a fenômenos sociais episódicos. Para discernir as duas espécies de elementos supracitados que se embutem nas normas jurídicas positivadas, faz-se necessário distinguir as causas imediatas das causas mediatas que induzem a presença ou a ausência de um ou de outro elemento e, sobretudo, incumbe verificar de forma sistemática quais são as causas ocasionais ou fortuitas e quais as causas permanentes ou constantes que determinam a presença ou a ausência de um ou de outro elemento.

Neste diapasão, todo e qualquer operador do Direito com uma "sensibilidade" sociológica e histórica mais apurada há de concordar que o grau de receptividade social de um dado sistema jurídico-normativo é necessariamente pluralista quanto aos meios de adequação da norma legal à realidade que a cerca, sob pena, de assim não o ser, vir a se tornar letra morta num espaço de tempo muito curto. Conseqüentemente, entendo que não se pode restringir a aplicabilidade concreta da norma legal à uma determinada espécie de fenômeno social, seja episódico, seja recorrente.

Deveras, desde já há algum tempo consolidei a opinião de que a construção e o aperfeiçoamento constante de qualquer sistema legal, em especial os sistemas jurídicos positivados que não conjugue necessariamente as duas espécies de fenômenos sociais, mais cedo ou mais tarde, acaba por resvalar para um beco sem saída a nível científico.

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No meu modesto entendimento, o discurso jurídico e meta-jurídico do Direito, em especial aquele discurso relativo à abrangência concreta da imperatividade da norma jurídica positivada (= imposição coercitiva dos preceitos legais contidos na norma jurídica positivada), deve ser (re)dimencionado para extirpar uma concepção jusfilosófica que julgo ultrapassada, qual seja, a de que a imperatividade da norma jurídica positivada - e, por via de conseqüência, a sua legitimidade perante a Sociedade como um todo - está vinculada de forma determinante à "vontade geral da Nação" a partir, única e tão-somente, dos fenômenos sociais de interesse de amplos setores sociais (independentemente de sejam fenômenos sociais episódicos ou fenômenos sociais recorrentes). In casu, erigir o fenômeno social único ou o fenômeno social recorrente à condição de fator causal determinante da imperatividade da norma jurídica positivada é, salvo melhor juízo, adotar uma postura científica teratológica.

Ao se perquerir acerca da imperatividade da norma jurídica positivada o operador do Direito deve sempre procurar construir uma análise equilibrada entre o fato social particular e o fato social recorrente que influenciam a imperatividade da norma jurídica positivada, em especial quanto aos respectivos graus de efetiva aplicabilidade cotidiana da norma jurídica positivada. Ressalto que resta evidente, pelo menos para mim, que o operador do Direito não deverá se furtar em esclarecer os critérios teóricos-metodológicos da sua análise.

Assim sendo, e à guisa de fecho deste artigo, ouço afirmar que nenhum operador do Direito pode contestar o fato de que a concretização da efetividade da norma jurídica positivada não é, e nunca poderá ser, pré-existente ao fato social, no sentido amplo da expressão e, portanto, o operador do Direito, enquanto sujeito cognoscente da realidade social que delimita a norma jurídica positivada em todos os níveis (social, político, cultural e econômico), deve procurar sempre analisá-la e aplicá-la levando em consideração tanto os fenômenos sociais únicos, quanto os fatos sociais recorrentes, procurando distinguir o que a norma jurídica tem de permanente do que ela possui de transitório. Somente assim poderemos aquilatar a sua real importância para o indivíduo e para a Sociedade, sobretudo em termos da legitimidade e da eficácia sociais da norma jurídica positivada.


Notas

(1)Tais correntes teóricas deterministas, no âmbito das Ciências Sociais (aí incluindo, sem a menor sombra de dúvida, o Direito) acabam por descambar, via de regra, em modelos normativos atemporais e eminentemente abstratos, sem qualquer amparo empírico na História e na Sociologia.

(2)Neste diapasão, encaro quase como um axioma a assertiva de que todo conjunto de normas jurídicas positivadas é, historicamente, temporalmente contingente em termos valorativos, ou seja, se restringem aos valores morais e costumes sociais de cada período histórico.

Para confirmar a assertiva supra, basta lembrar, a título de mero exemplo histórico, que a menos de dois séculos atrás a escravidão era recepcionada pelo nosso ordenamento jurídico, enquanto hoje constitui ilícito penal.

(3)NADER, Paulo: Introdução ao Estudo do Direito. pág. 377.


Referências bibliográficas e fontes de consulta

BURKE, Peter: A Escola dos Annales (1929-1989). Tradução de Nilo Odalia. São Paulo: Ed. Fundação Unesp, 1997.

JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo: Dicionário Básico de Filosofia. 3ª. ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1996.

NADER, Paulo: Introdução ao Estudo do Direito. 11ª. ed. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1995.

RÁO, Vicente: O Direito e a Vida dos Direitos. 5ª. ed. anotada e atualizada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999.

ROULAND, Norbert: Nos Confins do Direito. Tradução de Maria Ermantina de Almeida P. Galvão. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2003.

SILVA NETO, Francisco da Cunha: A questão da apreensão do real pelos operadores jurídicos. Jus Navegandi, Teresina, ano 6, nº. 52, novembro de 2001. Disponível em <https://jus.com.br/artigos/2341>.

WALSH, W. H.: Introdução à Filosofia da História. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.

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Sobre o autor
Ricardo Luiz Alves

licenciado em História pela PUC/RJ, bacharel em Direito pelo Centro Integrado de Ensino Superior do Amazonas (CIESA), servidor da Justiça do Trabalho em Manaus (AM)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Ricardo Luiz. Algumas ponderações acerca da eventual oposição assimétrica entre o fato recorrente e o fato episódico no âmbito das Ciências Sociais e do Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 760, 3 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7063. Acesso em: 22 dez. 2024.

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