2. ASPECTOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de Defesa do consumidor – ou simplesmente CDC – foi estabelecido pela Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (BRASIL, 1990), representando uma regulação voltada às relações consumeristas, dando especial ênfase na proteção ao consumidor.
Nesse contexto, imprescindível é entender os aspectos básicos desse dispositivo legal, percebendo o objeto de sua regulação e verificando em que medida o CDC se relaciona com as incorporações imobiliárias, regidas pela Lei nº 4.591/64.
Para tanto, ímpar se faz o entendimento acerca de questões como a Política Nacional de Relações de Consumo, a vulnerabilidade do consumidor e as características de uma relação de consumo.
2.1 POLÍTICA NACIONAL DA RELAÇÃO DE CONSUMO
O CDC é uma legislação voltada à proteção e defesa do consumidor. Entretanto, antes de tratar acerca das políticas relacionadas a esta proteção, o Capítulo II do diploma legal – artigos 4º e 5º - trata sobre a chamada Política Nacional de Relações de Consumo, dispondo sobre os princípios e objetivos que devem funcionar como diretrizes para o setor.
Segundo João Batista de ALMEIDA (2006, p. 14), a defesa do consumidor não deve ser considerada um instrumento de confronto entre produção e consumo, mas uma forma de proporcionar a compatibilização e harmonização dos interesses envolvidos na relação.
Nesse sentido, os objetivos dessa política estão elencados no caput do art. 4º da Lei nº 8.078/90. De acordo com a doutrina de Sérgio CAVALIERI FILHO (2014, p. 24), as normas ali dispostas são de ordem pública e interesse social, voltadas a tutela dos interesses morais e patrimoniais dos consumidores em geral. Por conta de sua natureza principiológica e programática, já que estabelece direcionamentos e bases, o art. 4º é considerado por Cláudia Lima MARQUES (2013, p. 226) um dos mais importantes artigos do CDC.
Dentre os objetivos estabelecidos pela Política de Relações de Consumo, o atendimento das necessidades dos consumidores está em primeiro plano, sempre levando em consideração “o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida” (BRASIL, 1990) – nos termos do dispositivo.
Não obstante, a transparência e harmonia das relações também se configuram como uma preocupação de tal política, à medida que se fazem necessárias à pacificação e solução de conflitos decorrentes de interesses em choque. Ao Estado, por sua vez, cabe o papel de mediador, buscando sempre a minimização desses eventuais conflitos, garantindo a proteção à parte mais frágil.
No que se refere à postura do Estado diante das relações de consumo, João Batista de Almeida destaca:
Objetivo importante dessa política é também a postura do Estado de garantir a melhoria da qualidade de vida da população consumidora, quer exigindo o respeito à sua dignidade, quer assegurando a presença no mercado de produtos e serviços não nocivos à vida, à saúde e à segurança dos adquirentes e usuários, quer por fim, coibindo os abusos praticados e dando garantias de efetivo ressarcimento no caso de ofensa a seus interesses econômicos (ALMEIDA, 2006, p. 15).
Nota-se, então, um evidente caráter protecionista no CDC – afinal, o objetivo mor do diploma legal é, justamente, a defesa do consumidor – explicitado através da Política Nacional de Relações de Consumo. Entretanto, como assevera Sergio Cavalieri Filho, isso não implica em um “caráter paternalista, tampouco de ilimitado favoritismo do consumidor” (CAVALIERI FILHO, 2014, p.25).
Como se depreende do inciso III, do art. 4º, da Lei nº 8.078/90, a política normativa que fundamenta o CDC atende ao princípio ao da harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo, destacando – ainda – a importância do papel da boa-fé e do equilíbrio na relação de consumo[1].
Diante da análise dos objetivos da política consumerista, fica claro que o CDC não foi criado para ser utilizado como um instrumento de favorecimento irrestrito ao consumidor nas situações conflituosas decorrentes dos contratos consumeristas. Em verdade, trata-se de um plano de ação bem elaborado que se propõe a empreender esforços para trazer equilíbrio aos conflitos desbalanceados. Em outras palavras, o CDC é um parear de armas, não um peso gangorra.
Nesse diapasão, tem-se que a proteção do consumidor deve ocorrer na justa proporção hábil a compatibilizar o desenvolvimento econômico e tecnológico imprescindível à toda a sociedade, garantindo o balanceamento das relações de consumo. A proteção exagerada, em verdade, acaba por desproteger.
Sergio Cavalieri Filho compreende os princípios do CDC como manifestações da axiologia constitucional, o que legitima a interpretação da Lei nº 8.078/90 conforme os ditames da Carta Magna. Assim leciona:
Os princípios do CDC realizam os valores constitucionais de proteção e defesa dos consumidores, tais como a saúde, a segurança, a vulnerabilidade e outros mais. Por isso deve-se interpretar o Código de Defesa do Consumidor como reflexo das normas constitucionais protetoras da integridade física e moral da pessoa humana, dos interesses superiores do Estado, que almeja garantir uma sociedade justa (CAVALIERI FILHO, 2014, p. 25).
Sendo assim, é possível afirmar que o objetivo da Política Nacional de Relações de Consumo é proporcionar a devida proteção aos consumidores através de medidas e normas capazes de estabelecer o equilíbrio na relação de consumo com o fornecedor, harmonizando e compatibilizando conflitos.
Para viabilizar a execução da Política Nacional de Relações de Consumo, o CDC traz em seu art. 5º mecanismos que podem ser utilizados pelo poder público. O rol, por sua vez, é meramente exemplificativo, já que – por se tratar de uma política pública referente às relações de consumo – não pode ficar limitado ao texto legal. Entretanto, os exemplos elencados no corpo do artigo contribuem para um direcionamento válido, hábil a auxiliar o cumprimento da intenção legislativa ali presente.
2.2 A ABRANGÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às situações nas quais tem-se uma relação de consumo. Esta, por sua vez, consiste em uma relação jurídica que tem como partes o consumidor e o fornecedor, e como objeto um produto ou serviço, ocasionando a aplicabilidade do CDC como norma reguladora dessa relação. A justificativa desse diploma legal é a desigualdade de forças existente entre o fornecedor e o consumidor, o que desequilibra a relação de consumo.
Nesse contexto, com base na vulnerabilidade técnica, fática e jurídica que é intrínseca ao consumidor, a Lei nº 8.078/90 traçou a Política Nacional de Relações de Consumo, com o objetivo de direcionar o ordenamento jurídico à busca pelo equilíbrio nas relações consumeristas. Em meio as diretrizes almejadas, a luz norteadora do Código é a proteção ao consumidor.
Portanto, é possível afirmar que a finalidade do Direito do Consumidor é acabar com a desigualdade existente entre fornecedor e consumidor, de forma a restabelecer o equilíbrio entre as da relação de consumo (CAVALIERI, 2014, p. 08). O CDC, nesse contexto, busca promover a paridade de armas para aqueles que fazem parte do mercado de consumo.
De fato, o equilíbrio nas relações de consumo – assim como nas relações jurídicas em geral – é fundamental para o não comprometimento de todo o sistema produtivo. Entretanto, não se pode deixar de ter em mente, justamente, a noção de equilíbrio.
Uma relação equilibrada é uma relação pautada na equidade, conforme se verifica no art. 7º do CDC, que admite a incidência de direitos não previstos no corpo da lei, dentre outros os “que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade” (BRASIL, 1990). O que se pretende mostrar é que equidade e equilíbrio na relação não implicam a inversão do posicionamento entre as partes. Em outras palavras, ao proteger o consumidor, o CDC não pretende colocá-lo em situação superior ao fornecedor, mas deixá-lo em posição equivalente, para que haja justiça na interação entre ambos.
O direito do consumidor ao equilíbrio contratual, tendo em vista que é a parte vulnerável, se relaciona diretamente com o princípio da boa-fé e do equilíbrio propriamente dito, afina, o que se almeja é o balanceamento dos interesses dos contratantes – consumidor e fornecedor (MIRAGEM, 2013, p. 196). Nesse sentido, a materialização do equilíbrio contratual se dá através da proibição de cláusulas abusivas e da interpretação favorável ao consumidor (MARQUES; BENJAMIN, MIRAGEM, 2013, p. 227).
Entretanto, não obstante a intenção do legislador em conferir – através do CDC – proteção diferenciada ao consumidor, é muito comum a utilização equivocada do diploma legal.
Aqueles que aplicam o CDC erroneamente o fazem em desarmonia com o sistema protetivo equivalente, resultando às vezes em prejuízo ao consumidor, e às vezes em privilégios. Nesse sentido, assevera Sergio Cavalieri Filho que “conferir ao consumidor direitos que não possui é tão ou mais grave do que negar-lhe direito autêntico” (CAVALIERI FILHO, 2014, p. 26).
Nesse diapasão, a harmonização de interesses prevista no inciso III, do art. 4º, do CDC – dispositivo que trata da Política Nacional de Relações de Consumo, estudado anteriormente –implica, justamente, medidas que pretendem proporcionar o conviver pacífico entre os interesses divergentes de cada uma das partes.
Nesse diapasão, ao promover o equilíbrio entre fornecedor e consumidor – levando em consideração a vulnerabilidade deste -, o CDC proporciona, também, a harmonização desses interesses. O resultado é não só a proteção do consumidor, mas a garantia do melhor funcionamento da própria relação de consumo, que se dará sob a regulação justa do CDC.
O grande problema, nesse contexto, se dá nos excessos cometidos com base na proteção que o CDC garante aos consumidores. A interpretação equivocada ou tendenciosa dos artigos da Lei nº 8.078/90 acaba por ignorar a ideia base de equilíbrio entre as partes, ocasionando a exigência de direitos completamente descabidos em diversas situações.
Essa desvirtuação do Direito do Consumidor ocasiona um abuso de direito, já que implica na utilização de um poder, de um direito, de forma descabida, extrapolando os limites aceitáveis pelo Direito e pela Sociedade.
Sendo assim, o CDC quando utilizado de forma irrestrita em favorecimento do consumidor – titular de prerrogativa jurídica – desequilibra a relação de consumo no sentido contrário. Esse abuso de direito, por sua vez, impede que a norma atinja os fins econômicos e sociais pretendidos (VENOSA, 2003, pp. 603-604).
É preciso ter em mente que o CDC é amplo, difuso e atuante em todas as áreas do Direito. Entretanto, isso não significa que o CDC é uma lei universal que traz a solução mais adequada a todas as questões envolvendo relação de consumo.
Em verdade, o Código do Consumidor irradia sua disciplina sobre os diversos diplomas legais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, conformando-os aos seus princípios.
Sendo assim, é possível perceber que a proteção legal ao consumidor é ampla, já que é capaz de tocar diversos ramos do direito, desde que haja ali uma relação de consumo – nos termos analisados previamente.
Por conta disso, considerando o próprio direcionamento do CDC voltado a harmonização de interesses, é imprescindível que as normas consumeristas atuem em conjunto com as normas das leis específicas, fazendo com que estas se conformem aos princípios daquelas.
A aplicação desregrada dos dispositivos da Lei nº 8.078/90 não proporciona o equilíbrio entre as partes, nem a proteção ao consumidor. Nesse sentido, a utilização das leis específicas sob a luz dos princípios consumeristas tem maior aptidão a promover o alcance dos fins sociais e econômicos almejados pelo ordenamento jurídico.
A utilização conjunta dos diplomas legais traz maior completude para o ordenamento, ocasionando – consequentemente – o atendimento e a harmonização dos interesses ali regulados.
Inegável é a abrangência do Código de Defesa do Consumidor. Os conceitos trazidos em seu texto legal e seu conteúdo principiológico garantem que sua aplicação seja a mais ampla possível. Entretanto, tal amplitude não deve ser justificativa para excessos.
Sendo assim, para que o CDC alcance os objetivos traçados pela Política Nacional de Relações de Consumo (art. 4), o diálogo com as leis específicas e com o ordenamento jurídico – como um todo – é fundamental. Caso contrário, a tão pretendida proteção pode se tornar agressão.