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Incorporações imobiliárias: os limites de incidência do Código de Defesa do Consumidor

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21/12/2018 às 16:40
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A Lei das Incorporações cria o sistema protetivo ao adquirente com base nas minúcias de uma incorporação imobiliária, enquanto o CDC traz normas genéricas aplicáveis a vários ramos jurídicos.

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo demonstrar a necessidade de se estabelecer limites na incidência do Código de Defesa do Consumidor sobre as incorporações imobiliárias. A relevância da empreitada é flagrante, já que o instituto da incorporação imobiliária enseja a incidência de sua lei específica – Lei nº 4.591/64 – e do Código de Defesa do Consumidor, gerando a necessidade de determinar a aplicabilidade de cada um desses diplomas normativos. A pesquisa se dá com base no referencial jurídico-teórico, sobretudo bibliográfico. Conclui-se que deve haver a harmonização das legislações, mediante aplicação conjunta fundada na compatibilidade dos dispositivos legais, levando em consideração os aspectos da lei especial e da lei geral como forma de se limitar a incidência do Código de Defesa do Consumidor junto às incorporações e promover a potencialização da proteção à parte vulnerável na relação contratual.

Palavras-chave: Incorporações imobiliárias. Código de Defesa do Consumidor. Proteção ao adquirente. Compatibilidade entre as leis. Limites de incidência.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Incorporações imobiliárias. 1.1. Conceito. 1.2. O contrato de incorporação imobiliária. 2. Aspectos do Código de Defesa do Consumidor. 2.1. Política Nacional das Relações de Consumo. 2.2. A abrangência do Código de Defesa do Consumidor. 3. Os limites de incidência do CDC sobre as incorporações imobiliárias. 3.1. O Código de Defesa do Consumidor como lei geral. 3.2. O Código de Defesa do Consumidor como regular da relação contratual. 3.3. O sistema protetivo ao adquirente. 3.4. Da necessária harmonização: os limites de incidência do Código Defesa do Consumidor sobre as incorporações imobiliárias. 4. Considerações finais. Referências.


INTRODUÇÃO

A incorporação imobiliária é uma atividade na qual um incorporador se propõe a construir ou promover a construção de um edifício formado por unidades autônomas, procedendo – então – a alienação dessas unidades. O crescimento dessa atividade na primeira metade do século XX, no Brasil, ocasionou a criação da Lei nº 4.591/64, que regula o instituto.

Mais do que tratar de aspectos burocráticos e técnicos da incorporação, a Lei nº 4.591/64 – ou Lei das Incorporações – trouxe em seu conteúdo normativo um verdadeiro sistema protetivo aos adquirentes das unidades autônomas, já que – no contrato de incorporação – o adquirente se encontra vulnerável frente ao incorporador.

Entretanto, com o surgimento da Lei nº 8.078/90 – o Código de Defesa do Consumidor, ou, CDC -, veio à tona no ordenamento jurídico brasileiro essa noção de vulnerabilidade do consumidor. O diploma consumerista, portanto, surgiu para atuar em todas as áreas do direito nas quais se verificasse a existência de uma relação de consumo. A abrangência dos conceitos trazidos no corpo normativo dessa lei estendeu a aplicabilidade do CDC a diversas situações, entre elas as incorporações imobiliárias.

Nesse contexto, emergiu a discussão acerca da incidência do CDC no âmbito das incorporações imobiliárias. Passou-se a questionar se era possível regular as relações oriundas das incorporações imobiliárias através do CDC, mesmo com a existência da Lei nº 4.591/64.

Porém, considerando que a Lei das Incorporações cria o sistema protetivo ao adquirente com base nas minúcias de uma incorporação imobiliária, enquanto o CDC traz normas genéricas aplicáveis a vários ramos jurídicos, fez-se necessário definir os limites da incidência da Lei nº 8.078/90 sobre as incorporações imobiliárias, na busca pela maior proteção ao adquirente.

Em outras palavras, é preciso definir quando aplicar o Código de Defesa do Consumidor e quando aplicar a Lei de Incorporações Imobiliárias, objetivando garantir, simultaneamente, a proteção ao consumidor (vulnerável) e o equilíbrio contratual, de maneira a cumprir a expectativas das partes envolvidas naquele contrato.

Nesse contexto, é preciso elucidar, nas relações decorrentes de incorporação imobiliária, em qual medida os dispositivos do CDC devem se sobrepor aos dispositivos da Lei de Incorporações Imobiliárias. Além disso, faz-se primordial definir como deve ocorrer a ponderação para determinar, nas relações jurídicas existentes nas incorporações imobiliárias, qual dispositivo legal deverá ser aplicado ao caso concreto. Ainda, imprescindível é demonstrar como as duas legislações devem interagir para que o direito possa dar a proteção necessária a parte vulnerável nas relações contratuais decorrentes de uma incorporação.

Diante disso, o presente trabalho tem por escopo demonstrar a necessidade de se estabelecer limites ao CDC no que tange à sua aplicabilidade junto as incorporações imobiliárias – regidas pela Lei nº 4.591/64, através da harmonização de interesses e diálogo entre as leis.

Para tanto, em um primeiro momento, aborda as questões relativas à incorporação imobiliária, abordando aspectos fundamentais do instituto através da definição do seu conceito e da análise da sua perspectiva contratual.

Em seguida, aborda o cerne do Código de Defesa do Consumidor, com vistas a esclarecer seu objeto. Para isso, analisa os objetivos da lei, definidos em sua Política Nacional de Relações de Consumo. Após essa abordagem, realiza uma análise acerca da abrangência do diploma legal, pautado na vulnerabilidade do consumidor e na busca pelo equilíbrio contratual.

Por fim, trata sobre a necessidade de se estabelecer limites ao Código de Defesa do Consumidor frente a Lei das Incorporações Imobiliárias. Nesse sentido, demonstra como deve se dar a aplicabilidade do CDC, levando em consideração sua característica de lei geral e principiológica, pautada na busca pelo equilíbrio contratual e imposição da boa-fé, funcionando como agente regulador da relação contratual.

Ainda, demonstra como a Lei nº 4.591/64 representa um sistema protetivo ao adquirente – parte no contrato de incorporação – que converge com os elementos do CDC. Nesse contexto, traz à tona a proteção objetiva existente em seu texto legal, comparando-o com os dispositivos do próprio CDC e evidenciando que a harmonização entre as leis é necessária para que a proteção à parte vulnerável seja amplificada. Para isso, deve-se considerar a lei especial como reguladora das situações específicas das incorporações imobiliárias, e o CDC como lei geral, capaz de atuar nas lacunas da lei especial.

Diante do exposto, busca o presente trabalho elucidar como a Lei das Incorporações e o CDC podem ser utilizados conjuntamente – em harmonia – como forma de potencializar o sistema protetivo ao adquirente-consumidor. Ainda, estabelece os limites de incidência do CDC sobre as incorporações imobiliárias com base na harmonização entre as legislações.


1. AS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS

A Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, veio para regular as incorporações imobiliárias, estabelecendo os principais aspectos desta atividade.

Este dispositivo legal define o que é uma incorporação imobiliária, bem como a quem se deve atribuir a condição de incorporador, deixando claro suas funções, obrigações e limites de sua responsabilidade (AGHIARIAN, 2008, p. 247).

As incorporações imobiliárias fazem parte do dia a dia de cada indivíduo, senão vejam-se os inúmeros edifícios – repletos de salas e apartamentos – onde as pessoas vivem, fazem exames médicos e trabalham.

Por conta disso, estudar e compreender o instituto é tão importante para o direito. Não bastasse o aspecto material – demonstrado nos empreendimentos que um dia foram uma incorporação -, a Lei das Incorporações traz concepções importantes acerca do que hoje se chama de consumidores.

Feitas estas considerações, passa-se agora ao exame dos principais elementos que compõem uma incorporação imobiliária.

1.1. CONCEITO

A incorporação imobiliária consiste em uma atividade que tem por objetivo a construção e comercialização de unidades autônomas que compõem uma edificação ou conjunto de edificações.

É através do parágrafo único do artigo 28 da Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964 – a chamada “Lei dos Condomínios e Incorporações”, ou apenas “Lei das Incorporações Imobiliárias” – que se define o instituto da incorporação imobiliária.

O referido dispositivo legal conceitua as incorporações imobiliárias como a atividade exercida com o objetivo de promover e realizar a construção de edificações – ou conjuntos e edificações -, compostas por unidades autônomas, com a finalidade de aliená-las, total ou parcialmente (BRASIL, 1964).

Arnoldo Wald, por sua vez, ensina que a incorporação imobiliária é um contrato pelo qual uma das partes – o incorporador – se obriga a promover a construção de um edifício, formado por unidades autônomas, que são alienadas às outras partes do contrato – os adquirentes -, em regime de condomínio e com as frações ideais do terreno (WALD, 2004, p.491).

A incorporação imobiliária, portanto, é caracterizada pela “venda de fumaça”. Em outras palavras, a principal característica desse tipo de atividade é a alienação antecipada de unidades autônomas de determinado edifício que ainda não foi construído. Essa venda prévia, por sua vez, representa o meio que o incorporador (realizador do empreendimento) capta os recursos necessários à realização da incorporação (DINIZ, 1996, p. 493).

Não obstante a promoção da construção do edifício, a venda das unidades autônomas deste é fundamental para a caracterização de uma incorporação imobiliária. O incorporador leva adiante o empreendimento disposto a vender as unidades autônomas, caracterizando – assim – o instituto (VENOSA, 2008, p. 514).

Imprescindível – também - para caracterização da incorporação imobiliária, é a existência da figura do incorporador. Silvio de Salvo Venosa é taxativo em sua doutrina:

Não existe incorporação quando proprietários de imóvel em conjunto assumem a tarefa, ainda que sob a regência de um administrador. Nessa hipótese, os futuros proprietários de unidades autônomas promovem um futuro condomínio (VENOSA, 2008, p. 514).

A atividade de incorporação imobiliária é uma atividade empresarial. Entretanto, a forma como o capital que viabiliza a construção do edifício é captado representa uma peculiaridade desse instituto. Na incorporação imobiliária, o capital da atividade decorre dos valores obtidos com a venda antecipada das unidades que serão construídas.

Neste diapasão, fica claro que a materialização do empreendimento proposto está condicionada ao pacto entre incorporador e adquirentes. Sendo assim, mais do que uma atividade empresarial, a incorporação gera uma relação entre incorporador e adquirentes.

Outrossim, a incorporação imobiliária, conforme doutrina Orlando Gomes, “é considerada na lei uma atividade, mas tecnicamente é negócio jurídico de constituição de propriedade horizontal” (GOMES, 1988, p. 212).

Costumeiramente, as unidades autônomas são vendidas ainda na planta. O incorporador, nesse contexto, obriga-se a promover a construção – ou construir – o edifício, entregando a cada adquirente a unidade que este obrigou-se a comprar, apta a habitação (GOMES, 1988, p. 212).

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Nesse contexto, é possível considerar a incorporação imobiliária como um negócio jurídico, formalizado através de um contrato celebrado entre incorporador e adquirente, que tem por objeto a promoção – direta ou indireta – da construção de um edifício, formado por unidades autônomas, e a consequente alienação dessas unidades, geralmente de forma antecipada, percebendo – assim – o capital necessário à materialização do empreendimento.

1.2 O CONTRATO DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA

O incorporador promove a incorporação imobiliária através do registro desta no Registro de Imóveis, nos termos do art. 32 da Lei nº 4.591/64, realizada após a averiguação de viabilidade mediante estudos de mercado, além de concessão de autorizações dos projetos junto aos órgãos públicos competentes (SILVA, 2010, p. 40).

Em síntese, os contratos de vendas unidades devem conter os requisitos sobre o objeto da incorporação, bem como as partes envolvidas, além do prazo limite de entrega, os pagamentos, e as obrigações e direitos relativos ao negócio.

Segundo Melhim Namem CHALHUB (2010, p. 138), o termo inicial da incorporação decorre do seu registro, salvo a possibilidade de retroação à data da primeira alienação de fração ideal do terreno, caso esta tenha ocorrido antes do registro em questão, tudo isso nos termos do parágrafo primeiro do art. 29 da Lei nº 4.591/64.

Entretanto, não obstante o registro da incorporação representar um requisito para a negociação válida das unidades autônomas, não se confunde com o contrato de incorporação, conforme leciona José Marcelo Tossi Silva:

Esse é o contrato de incorporação imobiliária, pelo qual o incorporador: (i) celebra com o adquirente o contrato de alienação da fração ideal do terreno; (ii) contrata a construção ou promove o que for necessário para que a construção do edifício seja contratada com terceiro; (iii) contrata a convenção do condomínio vinculando a cada fração ideal do terreno determinada unidades autônomas a ser construída (SILVA, 2010, p. 41).

Percebe-se, então, que há elementos de vários contratos diferentes integrando o contrato de incorporação. Orlando GOMES (1984, p. 501) considera que se trata da unificação das prestações três contratos distintos em virtude de uma causa típica. Cada prestação mantém sua individualidade, “mas se fundem numa unidade complexa que adquire tipicidade ao ser definida, nomeada e disciplinada”.

Nesse contexto, Melhim Namem CHALHUB (2010, p. 180) identifica os contratos mais comuns, no que tange às incorporações imobiliárias. São estes: 1) os contratos de promessa de compra e venda; 2) a construção e 3) o contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária.

Diante dessa pluralidade contratual, que unificada exprime a complexidade jurídica da incorporação imobiliária, é possível verificar a existência das duas perspectivas referentes ao conceito de incorporação imobiliária, quais sejam a atividade empresarial - “na qual se envolve o incorporador e todas as pessoas físicas ou jurídicas vinculadas à edificação propriamente dita (chamada atividade incorporativa)” (GUERRA, p. 647) - e o negócio jurídico imobiliário, que segundo Alexandre Guerra é o núcleo da atividade direcionada a construção das unidades autônomas e sua transferência aos que pretendem ser proprietários.

Portanto, o contrato de incorporação é misto, típico, que envolve uma compra e venda, ou promessa de compra e venda, de uma fração ideal de um terreno que será utilizado na incorporação. Essa fração ideal, por sua vez, está vinculada a um contrato de construção – já que o objetivo da incorporação é a edificação do prédio no qual estão as unidades autônomas - o que resulta na constituição de um condomínio especial (AVVAD, 2014, p. 597).

A estrutura dessa espécie contratual se dá com base nos direitos e obrigações pactuados pelas partes, devendo o contrato expressar de forma precisa tais disposições. Basicamente, o contrato de incorporação traz a identificação das partes – tais como adquirentes, incorporador e construtor -, o histórico do empreendimento – constando o título aquisitivo do terreno, o projeto aprovado, o registro do memorial descritivo, o contrato de construção e a existência de ônus reais -, além do objeto – que é diz respeito as minúcias da unidade autônoma -, preço e condições de pagamento, construção, cláusulas penais e condições gerais (AVVAD, 2014, p. 599).

Nesse contexto, o que diferencia o contrato de incorporação de outros tipos contratuais é a sua complexidade – vista acima -, já que engloba diversos aspectos como a compra e venda, a construção e a constituição do condomínio em um único instrumento.

Ainda sobre o contrato de incorporação, é importante observar a questão do inadimplemento do adquirente. Pedro Elias AVVAD (2014, p. 600) assevera que é possível levar a unidade autônoma inadimplida à venda através de leilão extrajudicial – nos termos do art. 63 da Lei nº 4.591/64, com a finalidade de reverter o produto da venda para a quitação das parcelas em atraso, cabendo ao devedor o saldo restante.

Embora drástica, esta medida é fundamental para evitar o fracasso da obra, já que como a incorporação se materializa através do esforço de todos os adquirentes, alguns poucos quem não cumprem suas obrigações podem comprometer todo o empreendimento. Lembra-se que a construção do edifício se dá com os recursos oriundos das parcelas pagas pelos adquirentes.

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Sobre o autor
Rafael Verdival

Rafael Verdival é Mestre em Direitos Fundamentais e Alteridade pela Universidade Católica do Salvador (UcSal). Pós-Graduado em Filosofia e Autoconhecimento: uso pessoal e profissional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). Pesquisador do grupo JUSBIOMED – Direito, Bioética e Medicina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VERDIVAL, Rafael. Incorporações imobiliárias: os limites de incidência do Código de Defesa do Consumidor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5651, 21 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70951. Acesso em: 19 abr. 2024.

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