Comentários à Lei nº. 13.772 de 2018

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Analisaram-se as duas modificações operadas na legislação brasileira – uma modificação operada na Lei Maria da Penha (novo conceito de violência psicológica) e uma novatio legis incriminadora.

INTRODUÇÃO

No dia 19 de dezembro de 2018 entrou em vigor a Lei nº. 13.772 com dois objetivos centrais:

1) alterar a Lei no 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), para reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar; e

2) alterar o Código Penal, para criminalizar o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado.

Sabe-se que os meios de comunicação têm evoluído de forma célere e o Direito Penal – a ultima ratio -, tem sido constantemente acionado para defender bens jurídicos que outros ramos do direito não têm defendido satisfatoriamente. Exemplo disso se trata da neocriminalização das filmagens não consentidas de atos sexuais (CP, art. 216-B), que se tornaram comum nos últimos anos, causando abalos psicológicos e irreparáveis em diversas vítimas.

Em resumo, citamos a disposição contida no art. 1º da novel Lei nº. 13.722/2018: “Art. 1º  Esta Lei reconhece que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar e criminaliza o registro não autorizado de conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado”.

Dito isto, passamos de forma sistemática a analisar as duas modificações operadas na legislação brasileira – uma modificação operada na Lei Maria da Penha (novo conceito de violência psicológica) e uma novatio legis incriminadora (crime de registro não autorizado da intimidade sexual – art. 216-B, CP).

Ainda de acordo com o art. 4º da referida lei, a mesma entrou em vigor na data de sua publicação. 


COMENTÁRIOS À LEI Nº. 13.772/2018 – ALTERAÇÃO NA LEI MARIA DA PENHA (NOVO CONCEITO DE VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA)

Inegavelmente, a Lei nº 13.772/2018 trouxe um avanço que deve ser aplaudido quanto ao art. 7º, inciso II, da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), porquanto alterou a indigitada lei para expressamente constar que a “violação da intimidade” da mulher constituiria uma forma de violência no âmbito doméstico, em que o legislador ordinário a inseriu como violência psicológica.

A propósito observemos a novel redação do art. 7º, inciso II, da Lei Maria da Penha:

Art. 7º  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

Para melhor compreensão, trazemos o quadro abaixo para que reste evidenciada a sutil, porém relevante alteração e avanço neste ponto:

Antes da Lei nº 13.772/2018

Redação atual dada pela Lei nº 13.772/2018

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

Não raras vezes, a mulher dentro da violência de gênero era e é alvo de violação de sua intimidade, como por exemplo, exposição de nudes e vídeos de conteúdo íntimo (cenas de relação sexual ou outras intimidades de cunho sexual) compartilhados com sua pessoa de vínculo, que depois ao término das relações, eram divulgados em redes sociais e outros meios da internet por ex-namorados(as), ex-conviventes, ex-maridos(ex-mulheres), com exposição avassaladora de sua intimidade, deixando marcas indeléveis na sua vida perante a sociedade, família e do círculo de amizade.

A circulação instantânea deste conteúdo com violação da intimidade da vítima pela internet, gerava desde incômodos, situações vexatórias, depressões e até suicídios por parte destas mulheres vítimas da exposição violadora da sua intimidade.

Obviamente, que a violação da intimidade da mulher no âmbito doméstico não se cinge apenas a estes exemplos, embora tenham lamentavelmente sido mais recorrentes, como já ditos anteriormente, dentro do “revenge porn[1]” e “sextorsão”, desde que em periferia do âmbito doméstico.

Nota-se, portanto, que o legislador foi feliz ao ampliar o espectro de tutela da lei penal em prol da vítima de violência doméstica – apesar de ainda entendermos ser tímida a punição para estas condutas que geram efeitos nefastos na vida das vítimas.

Outro apontamento a ser destacado, é no que tange à expressão “violação de sua intimidade”, eis que por ser ampla demais, certamente gerará discussões quando a sua abrangência.

Afinal, o que devemos entender por “violação de sua intimidade”? Qual o seu alcance?

Essa tutela abrangeria apenas e tão somente à violação da intimidade da mulher vítima no âmbito doméstico no “aspecto sexual”, ou também abrangeria violação da sua intimidade no “seio familiar”, por exemplo, como exposição de brigas de família, humilhações, vexames etc. sem cunho sexual, mas que de certa forma viesse implicar na violação da intimidade?

Em respostas as estas inquietações e seguindo a linha de interpretação (e exegese) sempre com observação da “mens legis”, pensamos que o legislador ordinário por meio da alteração legislativa em comento, quis ampliar o âmbito de proteção da mulher, vítima de violência de gênero, mas apenas no campo da intimidade sexual. Tanto é verdade, que na parte da lei incriminadora trouxe também um dispositivo legal sob rubrica de “registro de imagem não autorizada de intimidade sexual” (o que reforça nosso ponto de vista do viés apenas de a violação de intimidade estar relacionada com a intimidade sexual). Esse apontado dispositivo veio para suprir uma lacuna no ordenamento jurídico penal, em que não criminalizava o registro não autorizado da intimidade sexual de dimensão sexual, lacuna esta apontada desde tempos pela doutrina e agora suprida – como será abordado adiante.

Logo, a interpretação mais adequada e em conexão com a “mens legis” a ser dada em nossa singela opinião, é aquela que prestigie a maior amplitude e alcance possível dessa proteção à intimidade sexual, para se evitar a proteção deficiente frente ao bem jurídico tutelado – embora não descartamos o surgimento de opiniões em sentido contrário, sob o argumento de que o Direito Penal como instrumento para tutelar a mulher, vítima de violência de gênero, deve ser dada à interpretação mais abrangente possível para outras situações que causem de certa forma violação da sua intimidade (como por exemplo exposição de brigas de família, humilhações, vexames etc. sem cunho sexual, mas que de certa forma implique na violação da intimidade), não devendo o intérprete cingir a letra fria da lei. Outro argumento para essa outra possível corrente é de que a violação sexual[2] já estaria prevista no art. 7º, inciso III, da Lei Maria da Penha, logo, com essa inovação legislativa não faria sentido o legislador trazer palavras inúteis no texto da lei, assim o novo conceito da “violação da intimidade” (art. 7º inciso II, da Lei Maria da Penha) teria maior amplitude e não se limitaria a violação de intimidade de cunho sexual, vez que já existiria a violência sexual expressamente prevista, querendo o legislador com isso, dar uma interpretação mais elástica na Lei Maria da Penha, no tocante à expressão de “violação da intimidade”.

De qualquer forma, caberá a doutrina e jurisprudência formarem o entendimento sobre o tema.


COMENTÁRIOS À LEI Nº. 13.772/2018 – ALTERAÇÃO NO CÓDIGO PENAL (CRIMINALIZAÇÃO DO REGISTRO NÃO AUTORIZADO DA INTIMIDADE SEXUAL)

O art. 3º da Lei nº. 13.772/2018 acrescentou ao Código Penal um novo Capítulo (Capítulo I-A: Da exposição da intimidade sexual) dentro do Título dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, e dentro deste novo capítulo encontra-se o novo crime com a rubrica marginal de “registro não autorizado da intimidade sexual”, capitulado no art. 216-B, do Código Penal. Passamos a sua análise.

Art. 3º O Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar acrescido do seguinte Capítulo I-A:

CAPÍTULO I-A:

DA EXPOSIÇÃO DA INTIMIDADE SEXUAL

Registro não autorizado da intimidade sexual

Art. 216-B - Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.

Introdução: Conforme leciona Rogério Sanches “o tipo preenche a lacuna que existia em relação à punição da conduta de indivíduos que registravam a prática de atos sexuais entre terceiros. Foi grande a repercussão quando, em janeiro de 2018, um casal alugou um apartamento para passar alguns dias no litoral de São Paulo e, depois de se instalar, percebeu uma pequena luz atrás de um espelho que guarnecia o quarto. O inusitado sinal faz com que um deles vistoriasse o espelho e, espantado, descobrisse que ali havia uma câmera instalada. O equipamento foi imediatamente desligado e, logo em seguida, o casal recebeu uma ligação do proprietário do imóvel, que indagou se havia ocorrido algum problema, o que indicava que as imagens estavam sendo transmitidas em tempo real. Embora se tratasse de conduta violadora da intimidade e que inequivocamente dava ensejo a indenização por danos morais, o ato – não tão incomum – de quem instalava um equipamento de gravação nas dependências de um imóvel para captar imagens íntimas sem o consentimento dos ocupantes não se subsumia a nenhum tipo penal. A partir de agora, é classificado como crime contra a dignidade sexual” (SANCHES, 2018, p. 7)[i].

Conceito de dignidade sexual: O legislador objetivou proteger a liberdade sexual, em vista da dignidade sexual da pessoa humana. Cada indivíduo tem a livre opção de escolher o seu parceiro ou sua parceira que sexualmente se relacionará. A par disso, trazendo à tona os ensinamentos de Julio Fabrinni Mirabete (2012, p. 388) a denominação “dada ao Título VI – ‘Dos crimes contra a dignidade sexual’ -, embora não seja isenta de críticas, tem o mérito de evidenciar o deslocamento do objeto central de tutela da esfera da moralidade pública para a do indivíduo. (...) No contexto normativo em que foi utilizado, o termo ‘dignidade’ deve ser compreendido em conformidade com o sentido que lhe empresta a Constituição Federal, que prevê a ‘dignidade da pessoa humana’ como conceito unificador de todos os direitos fundamentais do homem que se encontram na base de estruturação da ordem jurídica (art. 1º, inciso III). (...) Assim, ao tutelar a dignidade sexual, protege-se um dos vários aspectos essenciais da dignidade da pessoa humana, aquele que se relaciona com o sadio desenvolvimento da sexualidade e a liberdade de cada indivíduo de vivenciá-la a salvo de todas as formas de corrupção, violência e exploração”[ii].

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Conceito de exposição da intimidade sexual: para se ter uma ideia do que o legislador busca proteger com o delito do art. 216-B, CP se faz necessário analisar o significado das palavras que compõe a “exposição da intimidade sexual”. Assim, expor significa “fazer com que fique evidente; colocar à vista; descobrir; retirar as vestes, aquilo que tapa;  propiciar o conhecimento de; exibir ou desvelar; fazer com que fique acessível; oferecer; submeter(-se) à vergonha; apresentar ao público; colocar em exposição; fazer que todos vejam”[iii]. Já a intimidade é definida como “relação estreita ou convívio próximo entre duas ou mais pessoas; privacidade; vida pessoal ou íntima”[iv]. E o conceito de sexual é “relativo a sexo: órgãos sexuais; relação sexual”[v].

Dito isto, podemos conceituar a exposição da intimidade sexual como “submeter pessoa(s) à vergonha, fazendo com que todos vejam a sua vida pessoal e privada relativa ao sexo, órgãos sexuais ou relação sexual”.

Novatio legis incriminadora: o art. 216-B, CP, trata-se de nova lei penal incriminadora e por força constitucional (art. 5º, inc. XXXIX) e infraconstitucional (art. 1º, CP), será aplicada para o futuro, afinal, não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal.

Objeto jurídico: É a dignidade sexual de qualquer pessoa (Título VI - Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual) e, de forma mais precisa, a exposição criminosa da intimidade sexual de cada pessoa (Capítulo I-A – Da Exposição da Intimidade Sexual), ou seja, o direito de cada pessoa poder dispor da sua própria intimidade sexual.

Objeto material: O objeto material do delito nada mais que o conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado.

Núcleo do tipo: o caput do art. 216-B possui quatro núcleos: 1) produzir (por em prática, levar a efeito, realizar), 2) fotografar (imprimir a imagem de alguém por meio da fotografia), 3) filmar (registrar a imagem de alguém por meio de vídeo) ou 4) registrar (alocar em bases de dados), por qualquer meio (p. ex. celulares, câmeras fotográficas, câmeras de vídeo, câmeras de computadores etc.), conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes.

Entende-se como cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado qualquer situação íntima que envolva uma ou mais pessoas em ambiente restrito, não acessível ao público. É evidente que se o ato de caráter sexual ocorre em local acessível ao público o bem jurídico tutelado (intimidade) é exposto pelo próprio titular, razão pela qual não pode ser considerado violado pelo terceiro que captura a imagem (SANCHES, 2018, p. 7)[vi].

Ressalta-se ainda, que a intimidade sexual exposta pelo agente ou (casal) em público ou lugar exposto ao público poderá vir configurar o delito de ato obsceno (art. 233, CP).

Elemento normativo do tipo: Observe que só haverá o crime se as partes não autorizarem, preenchendo, portanto, o requisito do elemento normativo do tipo (sem autorização dos participantes), por isso se tratar de um crime de violação da intimidade. Por outro lado, caso as partes se sintam à vontade para que terceiros filmem, produzam, fotografem etc. não haverá o delito pelo fato da conduta está encampada pelo consentimento do ofendido.

Por fim, conforme Rogério Sanches “embora a lei utilize a expressão participantes – no plural – não se exclui da incidência do tipo o registro não autorizado de apenas uma pessoa em momento de intimidade” (SANCHES, 2018, p. 7)[vii]. Por exemplo, o namorado que registra a cena do ato sexual sem o conhecimento da sua namorada.

Tipo misto alternativo e a discussão de crime único ou concurso de crimes: diversos são os núcleos do tipo (produzir, fotografar, filmar e registrar), por isso se falar em tipo misto alternativo, assunto diretamente relacionado ao conflito aparente de normais penais. Isto é, caso o agente pratique no mesmo contexto fático mais de uma conduta descrita no tipo penal (p. ex. o agente filma e fotografa), responderá por um único delito do art. 216-B, não havendo que se falar em concurso de crimes. Por outro lado, se o agente, em contextos fáticos distintos, como, por exemplo, em um momento filma cenas de nudez sem autorização dos participantes, em outro fotografa atos libidinosos sem autorização dos participantes, neste caso, haverá concurso de crimes.

Meios de execução: É classificado como crime de forma livre, isto é, pode ser praticado por qualquer meio de execução, até por que o legislador afirma que a produção, fotografia, filmagem ou registro poderá se dar “por qualquer meio”.

Sujeito ativo: Trata-se de crime comum ou geral, isto é, podendo ser cometido por qualquer pessoa seja do sexo masculino, feminino. Não exigindo o tipo penal qualquer qualidade especial do agente, estaremos perante crime comum ou geral.

Sujeito passivo: pode ser qualquer pessoa (homem ou mulher), desde que seja maior, isto é, capaz de consentir o ato. Sobre a análise do assunto remetemos o leitor para o tópico do confronto com o art. 240 do ECA.

Elemento subjetivo: É dolo, seja ele direto ou eventual em praticar qualquer das condutas sem autorização dos participantes. Não há expressa previsão legal da modalidade culposa, o que torna inviável a punição por culpa. Por fim, não se exige qualquer finalidade especial por parte do agente (seja financeira, seja para satisfazer a lascívia).

Consumação: o crime se consuma com a prática de qualquer das condutas descritas no caput ou parágrafo único.

Tentativa: Por se tratar de crime plurissubsistente, onde a conduta pode ser perfeitamente fracionada, é admissível o conatus. O professor Rogério Sanches cita como exemplo o caso de equipamento que esteja instalado e, antes de ser registrada as imagens, a vítima percebe e evita o constrangimento (SANCHES, 2018, p. 8)[viii].

Ação penal: É Pública incondicionada. Observe que em conformidade com a redação do art. 225 do CP todos os crimes previstos no “capítulo I e II” são apurados mediante ação penal pública incondicionada. Todavia, o legislador não alterou o art. 225 ao criar o Capítulo I-A, deixando-o, portanto, de fora ao aludido dispositivo. Porém, sabe-se que os crimes só serão de ação penal pública condicionada ou ação penal privada se for expressamente previsto essa modalidade pelo legislador. No silêncio, conclui-se que se trata de crime de ação penal pública incondicionada (inteligência do art. 100, do Código Penal).

Lei nº. 9.099/1995: O delito de registro não autorizado da intimidade sexual é crime de menor potencial ofensivo, tendo em vista que a sua pena máxima (1 ano) não ultrapassa dois anos.

Pena cominada: detenção de seis (6) meses a 1 (um) ano e multa.

Modalidade equiparada: encontra-se prevista no parágrafo único do art. 216-B, prescrevendo que “na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo”.

Sabe-se que os meios tecnológicos na atualidade são infinitos e as possibilidades de montagens em fotografias, vídeos ou qualquer outro registro acompanham a evolução da matéria, não sendo raro às vezes de se fazer montagens para inserir pessoas alheias, causando constrangimento às mesmas. Observe, porém, que nesta modalidade equiparada, não houve necessariamente violação da intimidade, mas um constrangimento da imagem da pessoa[ix]. Neste caso, a vítima não participa do ato sexual, mas é incluída pelo agente, por meio de montagem, que pode ocorrer em fotografia, áudio ou qualquer outro registro.

Na modalidade equiparada o núcleo do tipo é realizar “que significa efetuar, colocar em prática, fazer. Portanto, a ação nuclear indica que o tipo é comissivo, prevendo um comportamento positivo como forma de praticar o delito”[x]. Por se tratar de delito plurissubsistente a tentativa é perfeitamente possível. O crime se consuma com a efetiva montagem sem consentimento da vítima, pouco importando que se divulgue a mesma (crime formal). O elemento subjetivo é o dolo, acrescido da finalidade especial de “incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo”.

Por fim, se trata de crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. O sujeito passivo também poderá ser qualquer pessoa, desde que maior e capaz de consentir. Motivo pelo qual, caso a vítima seja criança ou adolescente ficará configurado o delito do art. 241-C, ECA[xi].

Fake news e vídeo de sósia: Salienta-se que a divulgação de imagens de nudez ou de atos sexuais de pessoas sósias – através de mensagens de “fake news”, informando se tratar de A, quando na verdade é B, não estaria abarcado pelo tipo penal em comento. Afinal, não houve montagens em vídeo, fotografia, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo. Isso obviamente, não faz descartar a incidência de outras tipificações legais que se amoldem ao caso concreto.

Causas de aumento de pena específica: analisando o art. 226, CP, percebemos que duas das causas de aumento ali prevista poderão ter incidência sobre o delito do art. 216-B. Assim conforme o aludido dispositivo “Art. 226. A pena é aumentada: I – de quarta parte, se o crime é cometido com o concurso de 2 (duas) ou mais pessoas; II - de metade, se o agente é ascendente, padrasto ou madrasta, tio, irmão, cônjuge, companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou por qualquer outro título tiver autoridade sobre ela”. Lembramos que “as causas de aumento de pena, em conformidade com o sistema trifásico de dosimetria da pena, deverá incidir na terceira fase da mesma, podendo elevá-la além do máximo legalmente previsto. Pode ocorrer a situação de no mesmo crime incidir mais de uma causa de aumento de pena, sendo neste caso aplicado às regras do art. 68, parágrafo único do Código Penal”[xii].

Causa de aumento de pena genérica: prevista no art. 234-A, aplica-se a todos os delitos previstos no título VI do CP. Analisando esta causa de aumento, percebemos que poderá ter aplicação ao delito do art. 216-B, na seguinte hipótese: “Art. 234-A.  Nos crimes previstos neste Título a pena é aumentada: IV - de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), (...), se a vítima é idosa ou pessoa com deficiência”.

Segredo de justiça: Conforme o art. 234-B, do CP, os processos em que se apuram crimes contra a dignidade sexual, estando inserido entre eles o art. 216-B, CP, correrão em segredo de justiça. 

Prática de upskirting e a incidência do art. 216-B, do CPB: Em que pese em nosso vernáculo não termos algo para exprimir a tradução de upskirting, esta é uma prática de fotografar e registrar imagens por debaixo da saia ou vestido uma pessoa sem o seu consentimento. Geralmente, os adeptos desta prática abominável e ultrajante ficam monitorando suas vítimas (alvos) até o momento de distração para captar e registrar essas imagens, inclusive com exposição do rosto da vítima e do local da prática do upskirting. Sem sombras de dúvidas, essa prática causa angústia, dor, humilhação, exposição indevida da intimidade da vítima e sofrimento emocional e certamente estará abrangida pela violação de intimidade (art. 7º, inciso II, da Lei Maria da Penha). Desse modo, pensamos que após a vigência da Lei em estudo quem realizar tal prática estará sujeito às penas do art. 216-B, do Código Penal Brasileiro.

Confronto entre o art. 216-B e o art. 218-C, parte final, ambos do Código Penal Brasileiro: os núcleos do art. 216-B, do Código Penal estão relacionados ao registro, produção do vídeo, fotografia etc. Por outro lado, os núcleos do art. 218-C, do Código Penal estão relacionados com a divulgação do vídeo, fotografia etc. de cena de sexo, nudez ou pornografia, também sem o consentimento da vítima(s). Veja o quadro abaixo para melhor ilustração:

Art. 216-B, CPB

Art. 218-C, CPB

Registro não autorizado da intimidade sexual

Art. 216-B - Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.

Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia

Art. 218-C.  Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave.

Aumento de pena

§ 1º  A pena é aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima ou com o fim de vingança ou humilhação. 

Exclusão de ilicitude

§ 2º  Não há crime quando o agente pratica as condutas descritas no caput deste artigo em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica com a adoção de recurso que impossibilite a identificação da vítima, ressalvada sua prévia autorização, caso seja maior de 18 (dezoito) anos.

Observe que a pena do delito do art. 218-C, CP é muito mais elevada que a pena do art. 216-B, CP, porque o legislador pune-se mais severamente o ato de divulgar que o ato de registrar. Além do mais, o art. 218-C, do CPB dispõe de causa de aumento de pena e hipótese de exclusão da ilicitude, enquanto o art. 216-B, do CPB, nada traz.

Questão tormentosa que poderá causar celeumas na doutrina e jurisprudência seria o concurso entre os delitos do art. 216-B e 218-C. Indaga-se: o agente que filma e em seguida divulga o vídeo, incorre nos delitos dos arts. 216-B e 218-C, em concurso material ou, incidiria apenas no delito do art. 218-C, ficando o art. 216-B absorvido?

O professor Rogério Sanches, em posição a qual nos filiamos, defende que “caso o agente faça o registro indevido e posteriormente divulgue a cena deve responder pelos crimes dos arts. 216-B e 218-C em concurso material” (SANCHES, 2018, p. 8)[xiii].

Confronto entre o art. 216-B, CP e art. 240 do ECA: pelo princípio da especialidade, onde norma especial prevalece sobre a geral, verifica-se que se a conduta do agente for de produzir, reproduzir, dirigir, fotografar ou filmar, por qualquer meio, cena nudez ou ato sexual ou libidinoso, envolvendo criança ou adolescente, incorrerá no delito do art. 240 do ECA, e não no delito do art. 216-B do CP. Vejamos a tabela abaixo:

Art. 216-B, CP

Art. 240, ECA

Art. 216-B - Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes:

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e multa.

Parágrafo único.  Na mesma pena incorre quem realiza montagem em fotografia, vídeo, áudio ou qualquer outro registro com o fim de incluir pessoa em cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo.

 Art. 240.  Produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente:             

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.

§ 1º  Incorre nas mesmas penas quem agencia, facilita, recruta, coage, ou de qualquer modo intermedeia a participação de criança ou adolescente nas cenas referidas no caput deste artigo, ou ainda quem com esses contracena.

§ 2º  Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se o agente comete o crime:     

I – no exercício de cargo ou função pública ou a pretexto de exercê-la;

II – prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade; ou

III – prevalecendo-se de relações de parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau, ou por adoção, de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou de quem, a qualquer outro título, tenha autoridade sobre ela, ou com seu consentimento.         

Observe que a pena do delito do art. 240, ECA é muito mais elevada que a pena do art. 216-B, CP, pois houve opção aparentemente acertada do legislador de se punir mais severamente os atos de produção que envolvam crianças e adolescentes, diante da vulnerabilidade e hipossuficiência destes sujeitos de direito. Além do mais o art. 240, ECA, dispõe de causa de aumento de pena, enquanto o art. 216-B nada traz.

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Sobre os autores
Joaquim Júnior Leitão

Delegado de Polícia no Estado de Mato Grosso. Atualmente lotado no Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (GAECO). Graduado pela Centro de Ensino Superior de Jataí-GO (CESUT). Ex-Diretor Adjunto da Academia da Polícia Judiciária Civil do Estado de Mato Grosso. Ex-Assessor Institucional da Polícia Civil de Mato Grosso. Ex-assessor do Tribunal de Justiça de Mato Grosso. Pós-graduado em Ciências Penais pela rede de ensino Luiz Flávio Gomes (LFG) em parceria com Universidade de Santa Catarina (UNISUL). Pós-graduado em Gestão Municipal pela Universidade do Estado de Mato Grosso – UNEMAT e pela Universidade Aberta do Brasil. Curso de Extensão pela Universidade de São Paulo (USP) de Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Colaborador do site jurídico Justiça e Polícia.

Marcel Gomes de Oliveira

Delegado de Polícia no Estado do Mato Grosso, atualmente lotado na Coordenadoria de Plantão Metropolitano. Formado pelo Centro Universitário Jorge Amado - UNIJORGE. Foi Advogado e consultor jurídico. Especialista em Direito do Estado. Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Direito Processual Penal. Foi professor de Criminologia, Ética, Direitos Humanos e Cidadania do Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar do Estado da Bahia. Atuou também como professor de Direito Penal, Legislação Penal Especial e Medicina Legal das Faculdades 2 de Julho. E, como professor de Direito Penal e Direito Processual Penal do Centro Universitário da Bahia (Estácio de Sá). Atualmente é professor de cursos preparatórios para concursos públicos e professor da Academia de Polícia Judiciária Civil do Estado do Mato Grosso - ACADEPOL/MT.

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