Autoras: Ana Beatriz de Souza Santos, Renata Lasçalete Ricarto e Yasmin da Silva Bitencourt.
Introdução
A filosofia do direito exerce a função de direcionar o conhecimento que a ciência do direito produz, desempenhando um papel de grande relevância por debater a práxis do pensamento, cumprindo, assim, o seu compromisso social.
Eduardo Bittar classifica a filosofia como subversiva, por estar “comprometida com a possibilidade do novo, do não visto e não experimentado, do inovador, daquilo que desafia a ordem da regularidade dos fenômenos e da aceitação da tutela da vida desde fora.” Dessa forma, a filosofia desaliena, na medida em que questiona e, consequentemente, atinge as estruturas que fundamentam a sociedade.
Com isso, o presente trabalho procura abordar qual a finalidade do direito, se é a garantia da justiça social ou a manutenção da ordem econômica, observando o contexto contemporâneo, se apoiando nas reflexões filosófico-jurídicas do filósofo alemão Immanuel Kant.
O motivo pelo qual optamos por Kant se deu pelo fato de que o filósofo procurou resolver questões como a essencialidade da moral para o direito, a possibilidade de liberdade e a garantia da dignidade do homem sob a coerção do Estado.
Immanuel Kant
Immanuel Kant (1724-1804) filósofo alemão fundador da “Filosofia Crítica” assim formulou o imperativo categórico: "Age de maneira tal que a máxima de tua ação sempre possa valer como princípio de uma lei universal." Considerado um dos mais brilhantes e expressivos pensadores da filosofia moderna buscou fundamentar os princípios gerais da ação humana. Kant nasceu na cidade prussiana de Königsberg e lá passou quase toda a sua vida. Filho de artesão luterano recebeu severa educação religiosa. Tornou-se professor com formação alicerçada na filosofia de Wolff e na física de Newton. Lecionou Filosofia Moral, Lógica e Metafísica, tendo publicado diversas obras na área das Ciências Naturais e da Física. Em 1770 Immanuel Kant assume a cátedra de Lógica e Metafísica na Universidade de Königsberg, exercendo esse cargo até o fim de sua vida. Sua filosofia revela que a razão modela e coordena as sensações das quais as impressões dos sentidos externos constituem-se de matéria prima para o conhecimento, superando assim as grandes correntes filosóficas da época, enfatizando a importância da razão para conhecer a realidade surgindo com Kant o "Racionalismo Crítico”.
Principais obras de Kant:
- Crítica da razão pura (1781);
- Prolegómenos a toda Metafísica futura (1783);
- Fundamentação da Metafísica dos costumes (1785);
- Crítica da razão prática (1788);
- Crítica do Juízo (ou Crítica do Julgamento, 1790); e
- A Metafísica da Moral (1797).
Em sua obra "Crítica da razão pura", Kant buscou fundamentar e estabelecer limites para o conhecimento humano. Em a "Crítica da razão prática" Kant discute os princípios da ação moral dos homens em relação aos outros enquanto forma de conquista da felicidade, estabelecendo as bases da sua filosofia moral. Uma das formas de explicar o Direito é a partir das teorias racionalistas que definem o direito como acordo racional feito entre pessoas que aceitam submeter-se a regras para conviver em sociedade. Ainda em "Crítica da razão pura",, Kant relaciona o conceito de justiça com a ideia de liberdade e define que todo ser humano é dotado de razão e possui capacidade moral para diferenciar o bem do mal e a partir disso fazer suas escolhas. Kant assim atribuiu dois significados a Ética, de forma geral como “ciência das leis da liberdade”, sendo as normas morais e legais, e em sentido estrito como teoria das virtudes. Para Kant moral (dever de agir moralmente) e direito encontram seu fundamento na liberdade sendo que ação moral é aquela realizada em conformidade com a lei. Partindo dessas definições Kant desenvolveu o imperativo categórico, conceituando que todo ser racional possui e é capaz de representar ações e princípios válidos para todo homem racional.
Para pensar o Direito: porque falar de Kant
Kant além de resolver a questão do conhecimento que permeava o século XVIII, a saber, o empirismo em face do racionalismo em sua obra “Crítica da Razão Pura” (1781), preocupou-se com a Ética e a Moral. O autor teve contato com filósofos empiristas e racionalistas tais como Francis Bacon, Rene Descartes, David Hume. Procurou encontrar um caminho entre tais correntes de pensamento, sendo essa sua contribuição essencial para a filosofia moderna. No campo da Ética e da Moral produziu diversas obras das quais se extraem suas ideias de imperativo categórico e hipotética, conhecimento a priore e a posteriori, e de dignidade humana, esta como último elemento essencial deste trabalho.
Extrai-se a ideia de dignidade humana da obra de Kant intitulada “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (1785), conceito que no ordenamento jurídico brasileiro e de vários outros países principalmente no âmbito do direito internacional tornou-se princípio, norteando sobretudo a produção e aplicação dos direitos humanos e sociais. Tal conceito resume na noção de que o ser humano tem valor em si mesmo, por ser dotado de razão, o que significa dizer que cada ser humano, simplesmente por ser dotado da capacidade de pensar, raciocinar e com isso reconhecer sua existência, deve ter sua dignidade respeitada. Dignidade vem do latim dignĭtas que significa “merecimento, valor, nobreza”, concluindo-se então que o humano não pode ser instrumentalizado.
Isto posto, evidencia-se o fato de que compreender a ideia de Dignidade Humana é elemento essencial para a compreensão do direito sob uma ótica kantiana, visto que o Direito como ferramenta que regula a vida do homem em sociedade incide diretamente sobre a vida dos indivíduos. Desse modo, o direito deveria garantir alimento, segurança, moradia, trabalho, possibilidade do desenvolvimento pessoal através do estudo e do trabalho, condições de lazer, entre muitos outros direitos que surgem com o desenvolvimento tecnológico, científico, econômico e social das sociedades.
Kant reconhece a necessidade do direito posto “Se a liberdade do homem não fosse controlada por regras objetivas, o resultado seria a mais completa e selvagem desordem”[1].Por outro lado também reconhece a coação externa representada pelo direito como meio garantidor da liberdade dos indivíduos no meio social. “O direito é o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser unido ao arbítrio de outro segundo uma lei universal da liberdade”[2], concepção esta que reflete sua preocupação com a liberdade do homem, inerente a sua condição de ser racional.
Por conseguinte, pode se dizer que um ordenamento jurídico consoante com a ideia de Dignidade Humana de Kant que, como já enunciado, fosse caracterizado pela garantia dos direitos inerentes a pessoa humana teria como pressuposto uma sociedade com o mínimo de desigualdades materiais entre os sujeitos pois somente dessa forma seria possível a concretização de tais direitos. Contudo, conforme observou Karl Marx e em entendimento aceito também pelo autor Paschukanis, o ser humano em todos os momentos da história buscou submeter o outro. Tem-se classes que detém o poder político, e para manter seus privilégios utilizam o Direito para instrumentalizar as pessoas, sendo necessária a superação dessa ideia substituindo-a por uma consciência de fraternidade no meio social.
Crítica ao autor
Para Kant o fundamento do direito positivo estaria no direito natural, este daria o fundamento racional a legislação positivada. Considera, no entanto, que o direito positivo deve ser respeitado, ainda que desrespeite o Direito Natural, uma vez que se trata de coerção externa com vistas a garantia da Liberdade, compreendida pelo autor como a limitação dos arbítrios.
Kant, nas obras À paz perpetua, Teoria e Prática e Doutrina do Direito, explana que o direito de resistência quanto ao direito positivo contraria a ideia de contrato social, uma vez que a resistência frente ao direito positivo devolveria o homem ao estado de natureza.
“Cada membro da comunidade possui um direito de coerção sobre todos os outros, excetuando-se apenas o chefe do Estado, o qual é o único que tem o poder de constranger, sem ele próprio estar sujeito a uma lei coercitiva”[3].
Desta forma, evidencia-se a relação entre o direito como meio de coerção externa ao indivíduo, que em virtude disso se diferencia da moral, entretanto Kant defende a forma de governo republicana compreendendo portanto a liberdade civil como “A faculdade de não obedecer a nenhuma lei externa, senão àquelas às quais possa dar meu consentimento”[4]
Diante do exposto, faz se a crítica de que Kant embora tenha desenvolvido a ideia de dignidade humana, elemento principal sobre o qual desenvolveu-se este trabalho , mantém o direito no âmbito transcendental, sem compromisso com a práxis, o que impossibilita a subversão do direito posto, que conforme já dito, tornou-se ferramenta para submeter uma classe a outra. Sendo assim , a mudança acima proposta vai além das ideias de Kant sobre o Direito.
Conclusão
Diante do exposto, percebe-se que o direito posto vai de encontro às ideias de Kant, pois segundo Kant o direito serve para garantir a liberdade do homem, para que este atinja o seu fim em si mesmo, permitindo ao indivíduo que exerça sua dignidade por meio da razão.
No entanto, analisando-se o direito posto, revela-se que a margem de liberdade do ser humano em sociedade é restrita. O parâmetro para tal é a Lei, sendo esta determinada e aplicada pela coação do Estado sobre os indivíduos, ou seja, independentemente da vontade destes.
Além disso, a limitação da liberdade é verificada pelas desigualdades sociais, servindo de sustento ao sistema de sociedade em que nos encontramos, no qual os que detêm o acesso aos meios de produção, influenciam diretamente na elaboração e na aplicação do direito. Assim, tem-se que o agir moral não necessariamente é recíproco ao agir legal, sendo o primeiro de essência interna e o segundo de essência externa (coação ou simples ameaça). Este último fator dita como devem ser as ações do homem no meio social, dessa forma, massacrando a liberdade do homem e o utilizando como instrumento para a manutenção da ordem econômica e do poder do Estado.
Por fim, podemos verificar que as ideias de Kant se distanciam da práxis do pensamento ao se analisar o direito atual. Kant mantém o direito num campo transcendental, o que impede, ao se utilizar suas ideias como prisma, o questionamento dos fundamentos da sociedade vigente.
Bibliografia
KANT, Immanuel. Lições de Ética. 1. Ed. São Paulo: Editora UNESP, 2018.
TERRA, Ricardo. Kant e o Direito, Coleção Filosofia Passo a Passo. 1. Ed. São Paulo: Editora Zahar, 2003.
KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. 1.ed. São Paulo: Editora Vozes, 2013.
BITTAR, Eduardo C. Filosofia Crítica e Filosofia do Direito: por uma filosofia social do direito.
LIMA, Francisco J G. O Conceito de Direito em Kant e Habermas: da Fundamentação Moral à Legitimidade Discursiva. Disponível em: http://www.nexos.ufsc.br/index.php/peri/article/view/967/452 (acesso em 21 de novembro de 2018)
MONTE, Hilda M C. Liberdade, Direito e Moralidade em Kant. Revista Eletrônica Direito e Conhecimento, n. 2, v. 1, 2017, Jul./Dez./2017, Arapiraca/AL Cesmac Faculdade do Agrest, Disponível em: http://revistas.cesmac.edu.br/index.php/dec/article/view/661/553 (acesso em 21 de novembro de 2018)
WEBER, Thadeu. Direito e Justiça em Kant. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (RECHTD) 5(1): 38-47 janeiro-junho 2013.
[1] KANT, Immanuel. Lições de Ética. 1. Ed. São Paulo: Editora UNESP, 2018.
[2]KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. 1.ed. São Paulo: Editora Vozes, 2013.
[3] TERRA, Ricardo. Kant e o Direito, Coleção Filosofia Passo a Passo. 1. Ed. São Paulo: Editora Zahar, 2003 – Vl 33.
[4] TERRA, Ricardo. Kant e o Direito, Coleção Filosofia Passo a Passo. 1. Ed. São Paulo: Editora Zahar, 2003 – Vl 33.