"Pois o supra-sumo da injustiça é parecer justo sem o ser."
(PLATÃO, em A República)
Numa época em que somos ininterruptamente bombardeados por informações negativas e depreciativas sobre a política brasileira, não deixa de ser impressionante a existência de algo que nos possa escandalizar. Vemo-nos, atualmente, acostumados a receber notícias sobre investigações, denúncias e acusações referentes a grandes esquemas de corrupção, engendrados e executados, na sua maioria, por prestigiosos líderes políticos. Os constantes golpes na nossa fé e a freqüente agressão à nossa esperança já nos insensibilizaram muito. Do mesmo modo que assistimos em um telejornal matérias sucessivamente trágicas e cômicas sem sequer perceber o quanto são antagônicas, lemos impassíveis em revistas e jornais as reveladoras reportagens e entrevistas acerca dos bastidores da democracia. A indignação, inicialmente sentida, vai cedendo espaço à dura realidade e é amortizada pela posterior constatação de que, após muito alarde, poucas providências são ou serão tomadas. Com isso, sentimos a paralisia do desânimo e a dormência do pessimismo. Depois de alguns poucos meses de escândalos consecutivos, já nos vemos a eles indiferentes. As apocalípticas manchetes, que dão conta de uma situação verdadeiramente caótica, desmascaram falsos líderes e narram a queda de poderosos, não mais nos atraem a atenção. A partir daí, pouco ou quase nada nos choca.
A crise hoje experimentada, tanto em virtude das suas colossais proporções quanto da abundância de informações, dispensa comentários. O nível da corrupção dispensa comentários. Assim como o seu alto grau de especialização, o alastramento e a ousadia dispensam comentários. Tudo está posto e evidenciado diante do brasileiro, que já não mais se impressiona.
Como brasileiro, já não tenho me escandalizado com facilidade. Tenho conferido os noticiários com uma desagradável sensação de impotência e com a irritante convicção da impunidade. Já avisto o início do lastimável caminho que leva à indiferença. Antes de começar a trilhá-lo, no entanto, o inesperado acontece: vejo-me perplexo, abismado, assombrado por uma notícia aparentemente banal, cuja relevância é desprezível se comparada com a magnitude dos relatos atinentes à indecência da politicagem. A parte do meu ser que não aceita resignar-se providenciou-me a sensibilidade para, no começo do torpor, reconhecer o que é, na verdade, um bizarro fator de peso na composição do sinistro processo de ridicularização das autoridades políticas brasileiras – e, por via indireta, de todas as autoridades, pela afetação do senso de respeito às autoridades em geral.
A manchete é engraçada, cômica, risível em muitos sentidos (por este mesmo motivo creio que haja sido bem propalada): "Fernanda Karina quer R$ 2 milhões para posar nua para ‘Playboy’". O teor da notícia, inócuo e desprezível à primeira vista, é esclarecedor. Dentre as muitas informações fúteis, consta a de que a ex-secretária do empresário Marcos Valério deseja fazer da nudez o salto para a carreira política. Ela, inicialmente, teria recusado as propostas da revista. A partir das idéias da "aproximação dos eleitores" e da reunião de fundos para sua candidatura (!!!), inaugurou as negociações com uma exigência de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais).
Tomo a liberdade de transcrever alguns trechos, para oportunizar ao leitor a singular experiência da plenitude da absurdez (todas as citações referem-se à notícia publicada em 25/07/2005 – 09h25 – no site www.uol.com.br).
"A ex-secretária, que ganhou notoriedade ao denunciar o esquema de corrupção envolvendo o PT, pediu R$ 2 milhões para aceitar a proposta da revista."
"A Folha ligou às 21h45 para a editora Abril, mas não localizou ninguém que confirmasse a proposta. Segundo o advogado de Karina, Rui Caldas Pimenta, representantes da revista já fizeram três contatos com ela, e eles voltarão a negociar nesta semana. ‘Inicialmente, eu disse que estava fora de propósito. Mas depois ela mesma abriu o diálogo.’ O dinheiro seria usado para financiar sua campanha à Câmara de Deputados em 2006. ‘Estivemos várias vezes em Brasília e vi que despertou nela um interesse maior pela política. Ela me consultou e eu disse: Sem dinheiro ninguém se elege, você vai precisar no mínimo de uns R$ 2 milhões. Foi quando ela repensou a proposta da Playboy’."
"Um representante do PSDB já teria consultado a ex-secretária: ‘Ela não tem preferência por partido, escolherá o que oferecer melhores condições e uma proposta mais ligada à área social’."
"Pimenta já sugeriu até um slogan para a campanha da cliente. ‘Eu até brinquei com ela e disse que o slogan tinha de ser ´´antes nua que corrupta´´. O dinheiro tem de sair de algum lugar, então que seja das fotos, não da corrupção’, afirmou Pimenta.
"‘Ela é uma moça de classe média, modesta, acho que [a publicação das fotos] criaria até um interesse maior do público, por ser algo mais secreto, mais indecifrável. Desde que não seja feito de forma escrachada. No caso dela, será um nu artístico mesmo, algo com sombras’, disse."
A intrigante notícia foi largamente veiculada pelos jornais e pela Internet. Algumas reportagens, como é óbvio, são mais completas do que as outras. O teor, no entanto, é bem semelhante, o que nos confere boa dose de verossimilhança.
Em 24/07/2005, no site www.jornaldamidia.com.br/noticias/2005/07/24/Ti-Ti-Ti/Fernanda_Karina_quer_R_2_milhoes_.shtml foram publicadas informações muito parecidas:
"O advogado de Karina, Rui Caldas Pimenta, confirmou que ela pretende se candidatar a uma vaga na Câmara dos Deputados e, por esta razão, seria necessário ter muito dinheiro para a campanha. ‘Para se candidatar, ou tem que ser milionário ou é na base da corrupção. Eu até brinquei com ela que seu slogan poderia ser: ´´antes nua do que corrupta´´, disse."
Na falta de palavras que melhor descrevam o alto grau de estarrecimento, digamos que seja, no mínimo, inacreditável que a maioria das tolices haja sido dita por um advogado.
É claro que, analisando a notícia, surge à mente em primeiro lugar a questão da imoralidade. Por mais que a nudez comercial (tenho orgulho de haver pensado esta terminologia, que, simples e direta, bem denomina a atividade de despir-se por dinheiro) já faça parte da cultura de todos os povos, não há negar que sua moralidade é duvidosa. Sem amenizar muito, podemos dizer que conserva ainda um ar de imoralidade. Por mais que já nos tenhamos acostumado a esta prática, a dúvida sobre a sua moralidade ou imoralidade aflora se a pensarmos realizada por nossas mães, esposas e filhas. E também se tivermos em mente que, a maioria das "pessoas comuns", que não atingiram o status de celebridade, muito prezam seu pudor. Não que as ditas "celebridades" não disponham de pudor. É que, se acham que a exposição da nudez não o afeta, deviam andar nuas. Se não andam nuas, por acreditar que isso seria impudico, abrem mão do seu pudor ao aceitar a comercialização da imagem íntima. Pessoas que, com muita naturalidade, concedem entrevistas e são prestativas à realização de reportagens gratuitamente (seja por colaboração despretensiosa ou por autopromoção), não posam nuas de graça. Somente mediante um bom pagamento. Por qual razão o pagamento as convence? Ele certamente não moraliza a conduta. Acaba sendo uma "recompensa" pela sujeição à exposição e um pretexto para que se chame o "nu artístico" de "profissional". Esqueçamos por um momento se há a imoralidade... nudez profissional é hilariante!
Para alguns, já se incorporou à arte. Os argumentos destes são de natureza pragmática: a exibição do corpo é costume aceito. E muito bem aceito. Basta ver as vendagens dos produtos do gênero. O problema, na verdade, é que, de tão acostumados, nunca ou quase nunca nos detemos para analisar a exploração econômica da nudez. Uns a aceitam, outros a ignoram e alguns poucos a repudiam, sem grandes perquirições ou reflexões. Para os mais radicais, entretanto, filosoficamente deve ser compreendida como uma forma mais singela da prostituição. Ora, com todo o respeito às pessoas que cederam suas imagens e intimidades às revistas e películas expostas ao público, devo questionar: receber dinheiro para emprestar o próprio corpo à satisfação da libidinosidade alheia ainda é, apesar da disseminação da prática, uma atividade predominantemente considerada imoral; e receber dinheiro para ceder a imagem à satisfação da lascívia alheia? Sejamos realistas: a maior parte das pessoas que adquirem revistas e filmes "adultos" o faz por razões libidinosas. Uma pequena parcela dos consumidores de tais produtos o compra pelas reportagens; outra porção, minúscula, pelo "amor à arte"... E não só o corpo compõe a personalidade civil. Como bem sabemos, esta é formada, também, por vários outros elementos, dentre os quais se inclui a imagem. Emprestar o corpo ou a imagem ao deleite alheio, então, é, de alguma forma, valer-se da personalidade para, mediante pagamento, satisfazer, quando pouco, a curiosidade lúbrica.
Nosso objetivo, todavia, não é o de definir se há ou não moralidade na nudez comercial. É o de afirmar, categoricamente, que a respeito disso paira dúvida, não há univocidade. Só isso já é suficiente para que uma pessoa que ocupe ou deseje ocupar funções públicas a evite.
Historicamente, as figuras do governante e do líder político sempre foram exaltadas. Por mais que a inexorável falibilidade do ser humano seja uma descoberta antiga, à função do representante e do líder político – que ocupam lugares de destaque na sociedade – sempre foram impostos requisitos. Idoneidade, probidade, competência, equilíbrio, visão administrativa, firmeza de caráter e força para se impor e tomar decisões são algumas das características que qualquer político deve ter. Se efetivamente terá, nunca se sabe ao certo; o que se sabe é que deve ter. Em A República, de Platão, já se vê a natural tendência de esperar que os governantes sejam pessoas sábias, virtuosas, honestas e capazes. Pessoas que estão qualificadas a assumir o tortuoso encargo de dedicar a vida ao desenvolvimento da sociedade sem se deixar levar pela sede de poder e pelos interesses particulares ou minoritários. É preciso que sejam pessoas-modelos, para que em suas mãos deixemos os rumos do país e de nossas vidas. Todas as qualidades vistas num bom homem devem estar presentes, de modo amplificado, num representante do povo. Ideologicamente, é absolutamente necessário que assim seja, pois somente uma reputação ilibada e a notória competência para zelar pelo bem dos representados justificariam o pacto de representação. Caso contrário, por que motivo confiaríamos nossos direitos, nossos interesses e as nossas vidas a pessoas incapazes? O pacto da democracia não é este. Temos o direito de ser representados por pessoas habilitadas, moral, intelectual, cultural e politicamente.
Volto a dizer: não cabe, aqui, estabelecer se há imoralidade na nudez comercial ou se esta é uma atividade profissional digna e respeitável. Ainda que se afirme que ela é perfeitamente moral e proba – o que não se fará sem grande e acalorada dissidência de opiniões – é incompatível com a ocupação de certos cargos e o desempenho de determinadas funções. Imaginemos o ridículo do pastor, padre, rabino, sacerdote ou líder religioso de qualquer natureza que haja pousado nu ou participado de vídeos eróticos... muito longe de qualquer fanatismo ou do moralismo exagerado, até mesmo um ateu há de reconhecer a incoerência da situação (se bem que a religião vem sofrendo um processo de banalização, comercialização e ridicularização igual ou pior do que aquele experimentado pela política).
Pessoas que se posicionam em condição de liderança e autoridade devem zelar pelo bom testemunho de suas ações e pela manutenção de postura compatível com a atividade que exercem. Não vemos todos os dias juízas, promotoras, procuradoras e desembargadoras posando nuas. E não é difícil entender por quê. Ainda que haja quem queira, por não enxergar imoralidade ou por extremada afeição ao dinheiro, é fato incontroverso que a noção de autoridade se veria prejudicada. E a autoridade destas profissionais deve permanecer intacta, pois, do contrário, suas atuações desacreditariam todo o sistema, corromperiam a credibilidade, inspirariam revolta e insubordinação, induziriam à anarquia. Não que não possam errar ou eventualmente se expor. Um deliberado ato de vulgaridade, incompatível com o exercício das prestigiosas funções, no entanto, não seria admissível.
Como ficaria um indivíduo que soubesse que o juiz que atua no seu processo, no qual se discutem complexas e melindrosas questões de Direito de Família, recentemente pousou nu para uma revista ou estrelou filme pornográfico? Confiante, temeroso ou indiferente? Difícil dizer. O que é fácil dizer é que o jurisdicionado deve poder depositar suas expectativas nas mãos do juiz. Este último, ainda que seja falho, por ser humano, deve contar com as características necessárias para distribuir "a melhor justiça possível" e para inspirar autoridade e confiança.
Se pairar dúvida sobre a moralidade de uma atividade, deve esta ser evitada ao máximo por pessoas que ocupem ou desejem ocupar funções sociais e cargos de autoridade pública. Ideologicamente, suas imagens não devem deixar transparecer vulgaridade, baixeza, indecência, futilidade, desonra, falta de ética, ausência de princípios. Ao contrário, devem propugnar a imponência da respeitabilidade, nobreza, honradez, grandeza de caráter e – por que não? – da discrição.
Ainda que consideremos a nudez como uma forma de arte, deixemo-la aos artistas e àquelas pessoas que possam se dar o luxo de arcar com a eventual desmoralização e com as desaprovações, críticas, censuras, vulgarizações e chacotas porventura provenientes. Autoridades públicas não podem se permitir tal luxo, pois a sua desmoralização implica na desmoralização do sistema.
É claro que, se alguém tem fortíssimas convicções pessoais de que isto não é imoral, e de que é perfeitamente conciliável com funções sociais que demandam respeito, será difícil impedi-lo. Mas este, pelo que vejo, não é o caso. Pelo que consta na notícia, a Sra. Fernanda Karina inicialmente recusou as propostas da revista. Somente passou a considerá-las a partir do momento em que pensou em valer-se do cachê para financiar sua campanha política. Ora, por qual motivo houve uma recusa inicial? Se é algo digno, moral, honrado, decoroso, por que recusar-se a fazê-lo? Por que considerá-lo "fora de propósito" (conforme disse seu advogado)? Tudo leva a crer que a ex-secretária não considera apropriada a nudez comercial e que a ela não se sujeitaria, se não fosse pela ambição. Porque isto não é aspiração política, isto é ambição: na aspiração política há toda uma ideologia, uma motivação nobre, de cunho altruísta ou social, que envolve desde a decisão pela candidatura até o último dia de mandato (sendo o ideal que perdure após o seu término...), abarcando, como é óbvio, todos os meios pelos quais se chega ao poder; na ambição, pode até haver o pretexto da motivação e da ideologia, mas ele é logo desmentido pela busca desenfreada e inconseqüente do poder e pela adoção de meios deploráveis, indignos e vexatórios para a eleição.
O infame slogan criado pelo advogado, num dos gestos de maior infelicidade que já pude ver em profissionais da nobre área, é o seguinte: "antes nua do que corrupta". Eu mesmo já sinto quase uma necessidade de chacoteá-lo. Não o faço pelo fato de ser maior a indignação. Quando o li pela primeira vez, senti aquela estranha sensação de vergonha que nos arrebata quando vemos alguém fazendo algo caoticamente ridículo. Senti a chamada "vergonha pelos outros". E pior é a justificativa: "o dinheiro tem de sair de algum lugar, então que seja das fotos, não da corrupção". Pois digo que, se sair das fotos, sai da corrupção! Porque, não importando se posar nua é moral ou imoral, o fato é que a própria Sra. Fernanda Karina descartou inicialmente a possibilidade, o que nos leva a crer que seja por não aprovar esta conduta. Aparentemente, para ela era imoral. Mas deixou de ser quando pensou na possibilidade de se utilizar deste expediente para inaugurar sua careira política (com o pé esquerdo...). Com isso, vendeu suas convicções. Pouco importa a motivação (se crê que, quando chegar ao poder, "ajudará à nação", "acabará com a corrupção", "alimentará os necessitados"). Se fizer das fotos (ou dos lucros dela advindos) o primeiro passo para a vida política, já se corrompeu antes mesmo de nela ingressar.
Agora, para se justificar, ela pode alegar o que quiser. Que "repensou e reviu seus conceitos de moralidade"; que acha que "este é um mal menor por um bem maior"; ou que "enxerga tudo com profissionalismo", como fazem alguns dos que recusam em princípio, e que, tentados pela vultuosidade do dinheiro, acabam por ceder. Mas o que não muda é que ela inicialmente negou a proposta por entendê-la "fora de propósito" (por conta própria ou aconselhada pelo advogado) – o que nos revela que haja sido por alguma razão ética, moral ou pudica – e que, somente após ouvir de seu advogado – ele mudou de idéia – que "sem dinheiro ninguém se elege, você vai precisar no mínimo de uns R$ 2 milhões", foi que "ela repensou a proposta da Playboy". Não importa em que escala, isto também é corrupção. Sujeitar-se a fazer algo que não aprova pelo dinheiro (ou pelos seus resultados correlatos) é venda de convicções. É concessão de princípios.
Neste ponto reside o mais sério dos problemas. Muito pior do que uma candidata a representante do povo e autoridade pública se desmoralizar para tentar alcançar o poder é a "maleabilidade" e a "suscetibilidade" que acometem os políticos brasileiros. Como visto, desde antes da eleição. Algo que nasce tão errado, que tem em sua gênese um vício tão grande, não pode prosperar. O eleitorado brasileiro, formado em grande parte por desinteressados e incultos, tende a aprovar semelhante absurdo, por confundir fama com sucesso. E esta é uma janela de oportunidade para aqueles que não querem trilhar os árduos e longos caminhos da política séria e do comprometimento com as realizações sociais. A fama pode resultar das mais banais e fúteis atividades; o sucesso, principalmente o político, é a realização de importantes feitos e a contribuição para a sociedade, frutos de muito trabalho e dedicação.
Se a Sra. Fernanda Karina posar nua, será estigmatizada perpetuamente como "aquela da Playboy"; o triste é que, possivelmente, receberá votos justamente por ser "aquela da Playboy". Se se destacar na política, seus eleitores a conhecerão como "aquela da Playboy". Alguns lados disso podem ser bem negativos. Será que é o tipo de referência que gostaríamos de deixar a nossos filhos?
Como artista, é até natural tornar-se conhecido pela beleza e pela sensualidade; como político, o ideal é tornar-se conhecido pelos atributos morais, intelectuais e culturais que devem compor a personalidade de um bom representante: caráter, honestidade, inteligência, sagacidade, altruísmo, filantropia, destemor, responsabilidade, etc.
Seu advogado prefere optar por outra linha de promoção. Entende que a publicação das fotos "criaria até um interesse maior do público, por ser algo mais secreto, mais indecifrável". Indecifrável, na verdade, é o seu posicionamento, caro colega. Por que não aconselhá-la a se valer da louvável postura de destemor para impulsioná-la na política? Por que não incentivá-la a expor suas idéias e planos, ao invés de seu corpo? Sua estratégia – ainda que no fundo seja bem-intencionada – é até antiética. Despreza alguns dos valores básicos que são exigidos para aqueles que vão representar os direitos e interesses dos cidadãos. E não adianta amenizar, dizendo que "desde que não seja feito de forma escrachada" e que "no caso dela, será um nu artístico mesmo, algo com sombras". O slogan inventado, em flagrante contradição ideológica, reconhece a inadequação da nudez para a estréia na política: "antes nua do que corrupta". Seu sentido, queiram seus inventores ou não, é o de que "a nudez, apesar de imprópria, ainda é melhor do que a corrupção".
De uma forma ou de outra, o mal reside na raiz: ou faltam à candidata em potencial as noções mais elementares de política, de forma que ela precisa recorrer a meios escusos para pôr-se em condição de igualdade com seus concorrentes, ou lhe faltam algumas das qualidades mínimas exigidas para que seja admitida como uma representante do povo, pois não consegue sequer perceber o quão reprovável é seu estratagema para alcançar o poder.
Que me perdoe se, por algum motivo qualquer, revisto de dureza as minhas palavras. Certamente, a sua postura é influenciada também pela já mencionada perda da sensibilidade para a apreensão das nuances, que vem afligindo os bombardeados brasileiros, e pela gradativa inversão dos valores políticos, éticos, morais, sociais, etc, frequentemente vista nos políticos há um bom tempo. Mas estou certo de que o equívoco, que ainda pode ser consertado, é fruto da empolgação e, quiçá, da vontade de contribuir mais ativamente para um Brasil melhor. O problema é que os fins não justificam sempre os meios. Especialmente na política, o pensamento maquiavélico é extremamente perigoso.
Diante destas informações, que tanto elucidam sobre a caricata politicagem do Brasil, pude contemplar o panorama da inversão de valores. Alguns fatos já são, desde há muito tempo, incontroversos. Em qualquer governo ou representação, em qualquer lugar do mundo, existe corrupção e criminalidade; há prevalência dos interesses privados sobre os coletivos; há descaso para com o público; executam-se manobras, fraudes e desvios... Em qualquer lugar do mundo. A grande e significativa diferença está nos níveis da corrupção e na sua impunidade. No Brasil, ambos os elementos alcançam dimensões descomunais.
Muito do que sempre foi feito às escondidas, hoje é realizado às claras, sem qualquer receio de represália política, social (por intermédio dos eleitores, nas urnas) ou penal. Uma prova simples e direta disso é o fato de não mais se estar apenas falando em contas de cifras milionárias em paraísos fiscais, que sabemos existir mas não chegamos a ver; hoje, vemos, o dinheiro, que é transportado naturalmente entre nós. Qualquer pessoa, num aeroporto, com cinco ou seis malas, pode estar transportando alguns milhões de reais de origem e destino bastante duvidosos (a presunção imediata é a de ilicitude porque ninguém em sã consciência traz consigo tanto dinheiro, por capricho ou desinformação, se o pode transferir por seguras operações bancárias). Chegamos a um ponto em que um simples vendedor de cuecas pode ser membro de uma organização criminosa voltada ao transporte clandestino de valores.
Na politicagem, o que norteia o pensamento é o individualismo imediatista. A maioria das medidas é destinada à consecução de vantagens e promoções pessoais em curto prazo. Num único mandato, o pretenso representante dos cidadãos preocupa-se em assegurar suas condições econômicas atuais e futuras (seja empregando parentes absolutamente incapazes para desempenhar as funções para as quais foram escolhidos ou – o que é infinitamente pior e constitui-se num abuso indesculpável, abjeto e, infelizmente, ineliminável – votando livremente o próprio reajuste salarial, que alcança, às vezes, proporções superiores a 50%) e garantir sua reeleição (atuando somente naquilo que lhe confira notoriedade, firmando obscuras alianças, guardando segredos, "prestando favores", vendendo suas convicções e princípios – aqueles que os tiveram algum dia... – e, enfim, prostituindo sua nobre função). As formas de corrupção, improbidade e imoralidade são infindáveis; não param de se multiplicar em inventivas mentes inescrupulosas e nem de ganhar vida pelas mãos daqueles que as criam, aceitam ou omitem. Uma frase, que é um tanto sombria, na verdade, pode trazer-nos a suma do contexto em que nos encontramos inseridos: "...e o que pensamos que sabemos é ainda muito pouco...". Da nossa distante e longínqua realidade, assistimos a uma peça teatral infame pela milésima vez. O enredo é-nos bem conhecido. Sobre os bastidores, sabemos pouco ou quase nada. Sabemos somente aquilo que os organizadores da peça nos permitem conhecer.
Se, antes, disse que a corrupção no atual cenário político brasileiro dispensa comentários, por ser evidente, notória, cada vez maior e mais descarada, não posso, por outro lado, deixar passar despercebida uma peça que nos possibilita compreender em parte por qual razão esta verdadeira obscenidade atingiu tão calamitosas proporções. Porque é preciso que exista, para tanto, alguma razão. Esta situação é, inexoravelmente, efeito de múltiplas causas. Algumas delas já nos são familiares. Outras, não obstante detenham grande relevância, somente são captadas mediante detida reflexão.
Alegar a inflamabilidade da mistura entre a natureza humana e o poder para justificar toda forma de corrupção não é válido. Simplesmente dizer que todo homem é um corrupto em potencial e se contentar com esta explicação para a totalidade dos problemas políticos vivenciados é outorgar aos representantes a licença à depravação. É certo que a sede de poder, o egoísmo, a ganância e a cupidez – todos tão frequentemente presentes na natureza do homem – associados à falibilidade humana, são as principais causas da corrupção.
Aliadas a estas causas primárias – de cuja existência depende toda corrupção – existem muitas outras. A reportagem a que tanto nos referimos permitiu-nos identificar mais uma causa, de grande peso: a carreira política tornou-se uma carreira de oportunismo. Não mais é vista como um múnus público, como uma nobre função social, mas como um atalho para a riqueza e para o sucesso. O que leva alguém a optar pela carreira política não é a sua afinidade para com as funções públicas, nem seu desejo de contribuir para o sadio desenvolvimento da sociedade, nem tampouco a vontade de expor e defender suas ideologias e de seus convivas. Pessoas que nunca se interessaram por política, ou que, para ela, nunca tiveram o menor tino, aventuram-se nesta carreira e, através de subterfúgios e estratégias quase sempre utilitaristas e já politicamente incorretos, galgam seu espaço num nefasto universo que não compreendem. O ideal é que haja habilidade, tino, dom para a política. É indispensável, entretanto, que haja, pelo menos, afinidade. Para a política e para o bom desempenho de qualquer atividade. Habilidade é algo que pode ser parcialmente compensado pelo esforço, e que pode ser desenvolvido gradualmente ou mesmo descoberto com o passar dos anos. O indispensável é que a escolha se dê pela razão certa: pela afinidade ideológica. Deve haver uma relação de essência, e não de aparência.
Em palavras mais simples, intento dizer que a escolha da profissão deve ser orientada pelas razões corretas, e não exclusivamente pelas cobiçadas vantagens que ela pode proporcionar, como mais frequentemente vemos acontecer. A partir disto, criam-se pessoas completamente desprovidas de senso cívico e ávidas por poder e dinheiro.
Situação semelhante vem se configurando a partir da exagerada proliferação de cursos de Direito pelo país. Com processos seletivos pífios – às vezes, sem processo seletivo –, faculdades de Direito despreparadas admitem alunos incrivelmente ainda mais despreparados, conferindo-lhes a certeza do Bacharelado em cinco anos. Alunos incultos, que nunca gostaram de ler, que não dispõem de nenhuma técnica de redação (a alguns, falta o Português mais elementar) e que simplesmente não conseguem estruturar suas idéias a ponto de formular um argumento decente, lançaram-se ao estudo das complexas Ciências Jurídicas para buscar uma oportunidade. Oportunidade de ganhar "muito dinheiro fácil" como advogados ou de conseguir excelente estabilidade ocupando cargos públicos. A paixão pela defesa dos interesses e direitos dos semelhantes e a aspiração pela condição de colaborador direto da sociedade, que já inspiraram os profissionais de outrora, são hoje pieguices repetidas apenas em discursos e oratórias de autopromoção.
A existência de limitações, debilidades, inabilidades e falhas é perfeitamente normal. Deve haver limite para a tolerância, porém. Algumas falhas e incapacidades geram incompatibilidade entre seu portador e a profissão por ele almejada. Que dizer, por exemplo, de um médico que tem nojo de feridas e de sangue, de um engenheiro que odeia números, de um veterinário que não suporta animais, de uma babá que detesta crianças? Por mais que se esforcem e consigam exercer satisfatoriamente suas atividades (o que nos parece beirar o impossível, nos casos citados), serão sempre presas frágeis de muitos dos defeitos que podem acometer o ser humano.
Incompatibilidades semelhantes a estas são vistas com fartura entre os representantes do povo, que são, seguramente, ignorantes e incultos na sua maioria. Os maiores líderes da nação não contam com a qualificação mínima para ser admitidos num emprego qualquer, de natureza comum. Se entregassem seus currículos – excluídas as realizações políticas –, muitos deles parariam no final da fila de emprego. Na entrevista admissional – a entrevista normalmente representa uma oportunidade para que aqueles que não têm um currículo extenso mostrem seu valor, demonstrando conhecimento, desenvoltura, equilíbrio, velocidade de raciocínio –, alguns estarreceriam a todos com verdadeiras mostras de imbecilidade.
Um politiqueiro – veja-se a gravidade desta afirmação! – normalmente nada sabe sobre o que fala. Lê ou repete o que ouviu ou foi instruído a dizer por algum assessor mais esclarecido. Como podemos tolerar políticos quase analfabetos? Como podemos confiar os rumos de um país tão imenso e potencialmente grandioso às mãos de homens tolos e ignaros? Como admitir que continuem a se favorecer da absoluta falta de ética para conquistar suas vagas?
Os estudiosos de Direito muito se esforçam para compreender as desvairadas produções legislativas. Analisam, criticam, sugerem alterações e providenciam interpretações que eliminem contradições gritantes ou retirem da absoluta inutilidade as leis emanadas das mentes obtusas. Delegar a tarefa de criar leis aos leigos é o mesmo que entregar um projeto de engenharia a uma criança de colo.
Aliás, tão irrealizável quanto, porém muito mais perigoso. Ter legisladores absolutamente leigos é como ter um exército composto por crianças mortalmente armadas.
Qual é a lógica do sistema? Àquele desprovido de conhecimentos jurídicos elementares incumbe a criação das complexas leis que serão aplicadas sobre todos, inclusive sobre os especialistas? Como é possível que uma pessoa que não sabe o que é um estupro possa ser um dos principais líderes dos legisladores? Como é possível que alguém que pensa que "o estupro é um acidente horrível" possa ocupar posto no exato lugar em que serão elaboradas e votadas leis sobre os crimes contra a liberdade sexual? Não me admirarei se o estupro, dentro em pouco tempo, vier previsto como um crime de trânsito, na Lei 9503/97. Quando se atinge este nível, pode-se esperar qualquer coisa.
E o problema não pára por aí. Antes fosse uma deficiência somente técnica, aquela que atinge nossos legisladores. Mas a pena é que não lhes falta apenas conhecimento científico e jurídico, mas cultura geral e capacidade de raciocínio (somente isso justifica a falta de conceitos tão elementares, os pronunciamentos tão vazios, os comentários incoesos e as leis esdrúxulas).
Deixar legislar um indivíduo inculto, que desconhece os preceitos mais básicos e os princípios fundamentais da Ciência do Direito, é um indizível retrocesso. Representa a perda da qualidade do conhecimento arduamente conquistada ao longo de anos de aprimoramento do dogmatismo. Quando se lhe é apresentada uma lei, ele não sabe sobre o que trata. Quando se lhe pede o voto, ele não sabe nem sobre o que vota. Ele não faz a menor idéia das conseqüências dos seus votos. Ele mal sabe ler. Se souber ler, não saberá entender.
Por que – e pergunto perplexo – se exige conhecimento jurídico para aplicar a lei, mas não para criá-la? Do mesmo modo que se teme que um leigo interfira injustamente nas vidas dos jurisdicionados, aplicando normas equivocadamente, deturpando o sentido e a finalidade da lei, deveria ser temida a criação de leis intrinsecamente injustas e ineficazes, que, pelo menos em princípio, serão igualmente aplicadas sobre os mesmos jurisdicionados (exceto por magistrados independentes e audazes, que se neguem a conferir legitimidade ao devaneio legislativo).
O que digo não é nenhuma novidade. A fórmula está fadada ao fracasso. Caso se duvide, promovamos uma inversão generalizada nos padrões da razoabilidade mediana e observemos os resultados: a partir de agora, médicos darão pareceres jurídicos e advogados realizarão transplantes; dentistas erguerão prédios e pontes, pedreiros extrairão dentes, açougueiros realizarão neurocirurgias e taxistas pilotarão boeings.
É com muito pesar que denuncio que há tempos que nossos líderes deixaram de preocupar-se com política. E que nossos estudiosos confundiram democracia com anarquia. Se a democracia for a possibilidade de qualquer bronco chegar ao poder; se a democracia for a autorização para que os ignorantes decidam sobre questões a respeito das quais não detêm qualquer conhecimento e que nem mesmo compreendem; se a democracia for outorga de poderes para que os estúpidos comandem as vidas dos inteligentes; se a democracia for a equiparação do peso do voto consciente e esclarecido ao voto analfabeto e irrefletido, então peço a Deus que este negócio de democracia seja passageiro.
Felizmente, creio que no Brasil ainda não se tentou a democracia. O povo, que tem a ilusão de que detém o poder de escolher seus líderes, continua sem representação, com seus direitos e interesses à deriva. E a representação é o marco característico da democracia organizada.
Muito mais democrática – e eficiente – é a estipulação de condições para o ingresso na vida política. E nada de inconstitucional ou antidemocrático há na limitação da liberdade de candidatura. Há muitas profissões regulamentadas, que exigem daqueles que as pretendam exercer uma série de atributos e qualificações considerados imprescindíveis. Não se pode exercer a medicina (propriamente dita) sem um longo curso universitário (devidamente reconhecido pelo MEC) e sem inscrição no Conselho Regional de Medicina; não se pode praticar a advocacia sem a obtenção do título de Bacharel em Direito em instituição de ensino devidamente credenciada e sem a aprovação no Exame e posterior inscrição no quadro de advogados da Ordem dos Advogados do Brasil (que, por si só, impõe uma vasta série de requisitos, impedimentos, incompatibilidades e limitações). Esta imposição de requisitos não afeta a igualdade perante a lei, constitucionalmente assegurada. Trata-se de providência perfeitamente razoável que tem por objetivo garantir a qualidade de tais serviços e conferir aos cidadãos um mínimo de segurança. O fato de encontrarmo-nos insertos num Estado Democrático de Direito não significa que deva haver abertura total para o exercício desregulado e promíscuo das profissões. Isso não é liberdade, mas libertinagem. Por qual razão um engenheiro, um dentista, um veterinário, um contador e tantos outros profissionais têm de passar pelo 1º, 2º e 3º graus de formação, e um político pode atingir até o topo somente com o 1º grau?
A carreira política, tão relevante à construção da sociedade, também deve ser regulada mais de perto. Nem se pense que, pelo fato de se tratar de uma democracia, "qualquer um do povo pode ser um representante dos seus pares". Isto não é sensato. O pensamento deve ser o de que "qualquer um do povo, que conte com a qualificação mínima exigida, poderá ser representante dos seus pares". Pois se "qualquer um do povo" não pode ser advogado, médico, dentista ou profissional de várias outras áreas sem reunir os requisitos necessários (e válidos), não deve poder ser um prefeito, governador, deputado, senador, presidente. Um profissional desqualificado pode trazer prejuízos a todos aqueles que contratarem seus serviços. Um político desqualificado certamente fará mal difusamente a toda a coletividade que supostamente representa.
É preciso filtrar as pessoas meramente carismáticas ou oportunistas (que se elegem pela fama), para deixar passar aquelas competentes, capacitadas intelectual e culturalmente de desempenhar as funções inerentes aos cargos que ocuparão. É claro que os critérios para esta filtragem devem ser razoáveis e devem contar com o máximo de objetividade possível (para conferir maior segurança e para evitar que a avaliação fique sujeita ao arbítrio daqueles que já detêm o poder). Ouso sugerir um critério inicial.
Sem nenhum receio de vir a ser chamado de elitista ou de separatista, afirmo, com plenitude de convicção, que a carreira política deve ser restrita às pessoas que hajam concluído o ensino superior. Nada mais justo, nada mais sensato. Se todos que querem ser advogados, médicos ou engenheiros devem estudar – e muito – para alcançar a possibilidade de exercer estas profissões, não há motivos para que seja encarada a exigência de um curso superior para a carreira política (de relevância social notoriamente superior) como uma medida antidemocrática. Certamente que um curso superior, por si só, não é prova de qualificação. É um critério objetivo inicial. Do mesmo modo que não sabemos se o profissional diplomado é ou não efetivamente competente, talvez não venhamos a saber se o político dotado de curso superior é capacitado. Mas uma coisa é certa: sobre ele teremos, pelo menos, um elemento de confiabilidade a mais. Ele não parte do zero, do nada. Já sabemos, por exemplo, que ele não é analfabeto. Já sabemos, também, que ele teve de estudar (em princípio, temos de acreditar) complexas e avançadas matérias, e obteve aprovação. Teve de ler, realizar trabalhos e tarefas. Teve de debater, argumentar e sustentar suas idéias. Pelo menos pôde ouvir sobre tantas coisas socialmente relevantes.
Se muitos concursos públicos inferiores exigem, como um dos requisitos, o 3º grau completo, é muita incoerência que os mais altos postos do governo estejam abertos para pessoas com menos qualificação. Repito: o diploma não prova competência e capacitação, mas é destas um indício objetivo. É um ponto de partida, um requisito mínimo. É claro que há pessoas com formação média (ou mesmo fundamental) que têm mais potencial latente ou mesmo já maior habilidade que tantas outras de formação superior. Do mesmo modo que estas pessoas não podem exercer profissões regulamentadas sem a respectiva qualificação, não devem poder exercer a política sem o devido preenchimento de requisitos. Sua igualdade perante a lei (formal, é claro, pois o Estado nunca providenciou a igualdade material) permanece intacta. Se obtiverem a qualificação mínima exigida, poderão se candidatar e concorrer aos cargos públicos.
Não cremos que a imposição deste requisito seja "a solução" para a debilidade da política nacional. É uma das providências. Visa, pelo menos, diminuir a quantidade de políticos despreparados. É certo que, no fim das contas, de nada adianta a qualificação sem a honestidade (talvez seja ainda pior, mais danoso, um desonesto habilidoso). E a honestidade não é critério objetivamente aferível. Cairemos, assim, em jargões e clichês como "é preciso que haja seriedade, compromisso, transparência e moralidade", "é necessário que os políticos não esqueçam suas origens e se preocupem com o povo", "é preciso que haja supremacia do interesse público sobre o particular", e infindáveis outros que poderia repetir por páginas e mais páginas.
Para que a política deixe de ser vista como uma carreira de oportunismo e passe a ser vista como uma carreira profissional, é preciso que seja reorganizada e reestruturada. O ideal é que as pessoas – como em qualquer atividade profissional – tenham que se dedicar ao constante aprendizado e ao aperfeiçoamento da profissão. Que se preparem e que se instruam para alcançar seus objetivos profissionais. Não que estejam à espreita de uma chance ímpar de enriquecimento ou que, de repente, por monotonia, falta de opção ou deslumbre com a fama, decidam por uma aventura política, sem nenhuma afinidade, sem qualquer conhecimento ou experiência, por impulso, pelo momento, pela oportunidade, sem nem ao menos haver pensado a respeito por um dia sequer.
Ampliar o controle e aumentar o rigor para o ingresso na vida política significa fechar as portas desta carreira aos curiosos e estreitá-las àqueles que realmente desejem servir sociedade, para que somente por elas passem os melhores.
Não aconselho a ninguém a recomendar este artigo como uma apologia elitista à exigência de curso superior para os políticos. Não é este o escopo central, nem tampouco o mais relevante aspecto tratado. Falamos, aqui, de princípios, de valores e de ética, e da necessidade de que estes sejam os requisitos primordiais de qualquer político ou candidato. Em segundo plano, após a verificação dos atributos essenciais à constituição do bom caráter, surge a irrefutável imprescindibilidade da exigência de maior qualificação profissional para os representantes.
Em resumo, a desonestidade, pronta a eclodir subitamente em qualquer homem honesto, é um vício que assola a sociedade e não deixará de atormentá-la jamais, pela natural corruptibilidade do ser humano. Erradicar desonestidade e corrupção é sonho pueril. Diminuí-las e puni-las, não.
Bem próximo ao fator corruptibilidade se assenta um outro, também de porte magnânimo: o despreparo. Se a corrupção é inextinguível, o despreparo, quase tão nocivo, pode até não ser. É, inclusive, mais fácil de ser controlado a partir de critérios objetivos, o que é impensável em relação à honestidade. Um dos critérios objetivos iniciais é justamente a exigência de qualificação mínima condizente com a função social a ser desempenhada, tomando por parâmetro não apenas a indiscutível relevância do papel do político no Estado Democrático de Direito, mas também a patente incoerência que é a exigência de qualificação para tantas profissões regulamentadas – que atingem isoladas porções da sociedade ou mesmo apenas a individualidade – em face da dispensa para a carreira política.
Ao final, peço ao leitor um momento de reflexão. O que direi já vem sendo dito há tempos, só que de maneira mais amena. Ocupa a mente de muitos, somente não foi ainda verbalizado de forma direta. Graficamente, as charges de nossos jornais e revistas o dizem abertamente. Toda a exortação e a conscientização já apregoadas devem ser otimizadas por uma dose de realismo disfêmico: o seu destino está nas mãos de uma pessoa que não sabe o que faz. Você, que estudou e se aperfeiçoou a ponto de obter uma melhor compreensão do mundo, receberá ordens de um analfabeto; você, que com muita dignidade se esforçou e trabalhou duro para garantir condições mínimas de sobrevivência, tem sua liberdade e sua propriedade postas à mercê de algum parasita megalomaníaco. Ele, em nada, é melhor do que você. Possivelmente, chegou onde está usando-se de meios sórdidos ou, pelo menos, antiéticos e imorais. E você, que pautou sua vida em honestidade, conhecimento e trabalho, tem de se imiscuir no rebanho e torcer para que o seu abate não seja o próximo.
Dito isso, há dois "chavões" que não posso deixar de repetir (ainda que seja apenas mais um a fazê-lo inocuamente): "É necessário conscientizar o eleitor" e "Precisamos dar um basta à impunidade". Realmente, a melhora da qualidade do voto significa a melhora da representação. O voto consciente não sana todos os nossos problemas, pois muitos políticos são corruptos dissimulados ou se corrompem com o tempo. Pode, todavia, amenizá-los significativamente, realizando uma pré-seleção que exclui os piores: políticos sabidamente desonestos ou antiéticos, ou notoriamente despreparados, extremamente incultos, ignorantes, incapazes de exercer com qualidade a representação.
Acerca da repugnante impunidade, embora continuemos a depender das autoridades (em geral) para combater com destemor e implacabilidade a corrupção, agindo com celeridade, investigando e julgando com seriedade e punindo com veemência, temos um pequeno papel a desempenhar. E a junção de nossos pequenos papéis torna-os maiores e mais importantes que os de quaisquer autoridades. Devemos responder com condenação e censura, de várias maneiras: escrevendo e propalando estas idéias de reprovação; através da realização de manifestações e protestos organizados; "importunando" e exigindo dos representantes; noticiando à mídia e às autoridades. Dentre as respostas mais diretas, não nos esqueçamos, se encontra o voto, que, como toda arma, só produz segurança se utilizada hábil e adequadamente. O voto pode e deve ser usado não apenas para escolher representantes capazes, mas também para rechaçar as pretensões dos maus candidatos e para punir aqueles que, eleitos, derem mostras de incompetência ou desonestidade.
Não basta a exigência de um curso superior. Nem de qualquer outra qualificação pessoal ou profissional. O mais importante dos critérios seletivos repousa às mãos do eleitor. Este, ao exercer seu voto, deve ocupar-se de distinguir os oportunistas, os antiéticos e os inescrupulosos. E deve, igualmente, buscar a identificação de pessoas que, não apenas com seus currículos pessoais, profissionais e políticos demonstrem capacidade e competência, mas também que com suas vidas hajam dado testemunhos de comprometimento ideológico e moral com as funções públicas. Tudo se resume, por fim, à árdua tarefa de reconhecer, em meio a tantos candidatos, aqueles que têm princípios consentâneos com o Estado Democrático de Direito. E que os seguem com fervor. Esta é a maior qualificação de todas. A exigência de uma formação de nível superior é mera formalidade, que não deixa de ser útil por impedir, de um lado, que pessoas bem-intencionadas, mas despreparadas, venham a pecar por ausência de recursos e conhecimentos, e por forçar, de outro, que elas busquem cada vez mais instrução e aperfeiçoamento.
Por infortúnio, tudo o que foi dito tem aplicabilidade sobre grande parte do elenco político nacional. Não sobre todo ele, obviamente. Sempre há alguns bons samaritanos. Estes, por favor, que não se ofendam. Aos outros, digo que não pretendo ofender, mas que conheço e abomino aquilo que têm feito, apesar de não esperar que adquiram consciência, já que esta é uma faculdade tipicamente humana.