"Depositário de tradições e imagem de tendências, o Promotor Público é o precursor de uma época, em que, na sociedade, só se ouvirá uma voz legítima, a dela própria, como resumo puro e real das notas esparsas" (Roberto Lyra, in Teoria e Prática da Promotoria Pública).
O recurso a classificações no direito tem sua melhor serventia ao propiciar uma percepção mais precisa do objeto classificado, possibilitando o seu enquadramento ou desencaixe dentro da ordem jurídica, nesse aspecto como ponto de influxo de regras. Consoante a dimensão eleita, as figuras jurídicas ou institutos receberão tratamento diversificado pelo sistema normativo, a depender de sua natureza, apurada (pesquisada junto a outras ciências ou em uma ordem pré-jurídica) ou natureza estabelecida (segundo Kelsen o direito é capaz de criar suas próprias realidades). Tratamos a questão, inicialmente, sobre o prisma de uma teoria geral do direito.
Deitando a atenção sobre lições de direito administrativo, constata-se que há uma vasta elaboração doutrinária acerca da classificação dos chamados agentes públicos. Há divergências de nomenclatura e mesmo, de extensão do rol de cada classificador. Alguns discriminam cinco espécies de agente público, outros, recorrendo a rótulos diversos, reduzem o elenco ou, mesmo mantendo o número de espécies, atribui-lhes novas referências (talvez por sinceras questões metodológicas e científicas ou, quem sabe, pela vaidade do ineditismo). Fiquemos, de início, com a doutrina mais referida quanto à classificação que ora nos interessa. Preleciona Hely Lopes Meirelles que os agentes públicos podem ser: agentes políticos, agentes administrativos, agentes honoríficos, agentes delegados e agentes credenciados. Enfoquemos as duas primeiras espécies, para o enquadramento dos promotores de justiça, já que se podem excluir prima facie as outras hipóteses.
Ainda hóspedes da doutrina do saudoso Hely Lopes Meirelles, "agentes políticos exercem funções governamentais, judiciais e quase-judiciais, elaborando normas legais, conduzindo os negócios públicos, decidindo e atuando com independência nos assuntos de sua competência. São as autoridades públicas supremas do Governo e da Administração na área de sua atuação, pois não estão hierarquizadas, sujeitando-se apenas aos graus e limites constitucionais e legais de jurisdição. Em doutrina, os agentes políticos têm plena liberdade funcional, equiparável à independência dos juízes nos seus julgamentos..." (in Direito Administrativo Brasileiro, 21ª Ed., p. 73). Retornando, linhas atrás em seu manual, p. 72, o truísmo, "Não são servidores públicos", e para arremate, "Têm normas específicas para sua escolha, investidura, conduta e processo por crimes funcionais ou de responsabilidade, que lhes são privativos" (alguns dos destaques não são originais).
Chequemos, agora, a definição do mestre quanto aos agentes administrativos: "são todos aqueles que se vinculam ao Estado ou às suas entidades autárquicas e fundacionais por relações profissionais, sujeitos à hierarquia funcional e ao regime jurídico único da entidade estatal a que servem. São investidos a título de emprego e com retribuição pecuniária, em regra por nomeação e, excepcionalmente, por contrato de trabalho e credenciamento" (op. cit, p. 74, - os destaques são nossos). Enfim, percebe-se, sem audácia, que nesse conceito acomodam-se os chamados funcionários públicos.
Celso Antônio Bandeira de Mello adota uma definição mais estrita de agente político, da preferência de Maria Sylva Zanella Di Pietro. Entende esse doutrinador: "são os titulares dos cargos estruturais à organização política do País, isto é, são os ocupantes dos cargos que compõem o arcabouço constitucional do Estado e, portanto fundamental do poder". A professora exemplifica, citando o mestre: Presidente da República, Governadores, Prefeitos e respectivos auxiliares imediatos (Ministros e Secretários das diversas pastas), os Senadores, os Deputados e os Vereadores (in Direito Aministrativo, 17ª Ed., p. 432).
Se o par de professores acolhe uma definição mais estreita de agente político, suportam eles um conceito mais amplo de servidor público (agente administrativo, pela nomenclatura de Hely). Preleciona a digna doutrinadora Di Pietro que "são servidores públicos, em sentido amplo, as pessoas físicas que prestam serviços ao Estado e às entidades da Administração Indireta, com vínculo empregatício e mediante remuneração paga pelos cofres públicos". Tal definição compreende, segundo suas lições, os servidores estatutários, os empregados públicos e os servidores temporários (in op. cit., pp. 433-4 – os destaques são nossos).
Depois de colocarmos a questão à mesa e espalharmos as lições de grandes administrativistas para análise, retornamos à pergunta inaugural: o promotor de justiça é agente político ou mero funcionário público?
A figura jurídica do promotor de justiça é a de agente político, devendo-se-lhe garantir sobremaneira o tratamento reservado constitucionalmente a esse status de agente público. Mas nossa conclusão não se dá por mera simpatia a essa ou aquela doutrina, nem pela conveniência pessoal do "ser-promotor". Tomamos como certa essa conclusão, pela análise criteriosa da Constituição da República de 1988, base de sustentação de todo a ordem jurídica e, dada sua supremacia e rigidez, de toda a vontade jurídica também.
É desnecessário transcrever o texto constitucional, mas, para melhor encadeamento lógico, urge a referência a qualidades do Ministério Público e dos promotores de justiça. "Instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado" (art. 127, caput). Princípios: unidade, indivisibilidade e independência funcional (art. 127, § 1º). Assegura-se: autonomia funcional e administrativa (§ 2º). Determina-se a observação, por leis complementares, de iniciativa dos respectivos Procuradores-Gerais, das seguintes garantias: vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídios (art. 128, § 5º, I, alíneas). Entre tantas outras garantias institucionais e pessoais dos membros.
A idéia de hierarquia funcional no Ministério Público é assolada pelo texto constitucional, que consagra a independência funcional. Coroou-se a liberdade de convicção do promotor de justiça. Mas não havendo hierarquia dessa ordem, não há que se falar, também, no Ministério Público, em escalões internos na área fim e em distinções na distribuição dos ônus funcionais entre promotores titulares e substitutos ou entre aqueles e promotores sem titularidade. Enterra-se, magnamente, uma das principais características emergentes do funcionalismo público, a hierarquia funcional, o que corrobora o status de agente político do promotor de justiça.
A Constituição não o disse diretamente (que promotor de justiça é agente político), mas, na sua função disciplinadora, via reflexa, cumpriu o papel definidor, melhor reservado à doutrina. Para uma melhor reflexão, vejamos as regras magnas impositivas (pleonasmo) quanto à política salarial, por assim dizer, do Ministério Público.
A Emenda Constitucional nº 19/98 modificou toda a sistemática remuneratória dos agentes públicos. Excluiu o princípio da isonomia de vencimentos, mas criou o regime de subsídios. Assim, há hoje dois sistemas: o subsidial e o vencimental. Repartiram-se, para esse fim, as categorias de agentes da administração (num conceito mais amplo que abranja os agentes administrativos e os agentes políticos). Mas a quem é reservada a política de subsídio? Diz a Constituição que serão obrigatoriamente remunerados por subsídio: entre outros, aqueles mencionados no artigo 39, § 4º (membros de poder – legislativo, executivo e judiciário da União, Estados e Municípios –, os detentores de mandato eletivo, Ministros de Estado e Secretários Estaduais e Municipais). E, também, os membros do Ministério Público (art. 128, § 5º, I, c – nesta alínea assegura-se a irredutilidade de subsídios a ser fixado na forma do art. 39, § 4º). Capez é categórico a propósito (in Direito Constitucional, 1ª Ed.): pagam-se agentes políticos com subsídios.
O que tudo isso representa dizer na discussão que erguemos? A Constituição da República estendeu ao Ministério Público uma série de garantias típicas de agentes políticos, entre elas a política remuneratória. Excetuadas certas prerrogativas características da atividade parlamentar (liberdade de opinião, palavra e voto, enfim), tudo o que se aplicam aos "tradicionais" agentes políticos, também alcançam os promotores de justiça. Por que teria assim agido o Constituinte se não quisesse colocar os promotores de justiça no rol de agentes políticos? Aliás, seleto rol, posicionado no ápice da administração pública. Para confirmação da tese, ainda deixamos de nos debruçar detidamente sobre outros argumentos de natureza processual-constitucional, como a reserva exclusiva da titularidade da ação penal, função própria de Estado.
Tornando ao aspecto remuneratório, uma das pretensões da nossa Lei Suprema foi diminuir as diferenças, sem eliminá-las totalmente quando houver organização em carreira (Ministério Público e Magistratura), entre os agentes políticos da mesma espécie, consagrando a inexistência real de uma hierarquia funcional, ao atribuir o mesmo quilate ao suor de todos os membros do poder ou instituição (permite-se, e. g., a distinção entre deputados de primeiro ou segundo mandato?). Daí determina-se pagá-los com o subsídio, em parcela única, vedando-se, segundo o texto constitucional, o acréscimo de qualquer gratificação, adicional, abono, prêmio, verba de representação ou outra espécie remuneratória (art. 39, § 4º). Evidentemente, tal restrição não impede o recebimento de verbas de natureza indenizatória ou compensatória, tais como 13º salário, diárias ou ajudas de custo (inteligência do art. 39, § 3º; compreensão que foi fortalecida com a aprovação da PEC paralela da previdência, EC nº 47/05, que excluiu verbas de natureza indenizatória do teto estipulado no art. 39, XI – aos aposentados, assegurou-se a merecida paridade, art. 40, parágrafos, vide doutrina de Maria Sylva Zanella Di Pietro, op. cit.).
Não se pode esquecer, nessa temática, do disposto no artigo 37, X, da Constituição Federal: "... e o subsídio de que trata o § 4º do artigo 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices" (destacamos). Considerando que, no que tange aos agentes políticos ministeriais, a irredutibilidade de subsídio deve se dar na forma desse inciso, entre outros (vide art. 128, § 5º, c), é defensável a tese de que a irredutibilidade remuneratória do promotor de justiça não é mais apenas nominal, mas, ao garantir-se sua revisão anual, busca-se evitar que haja um decréscimo em sua qualidade (ou nível) de vida; consagrou-se, portanto, uma espécie de irredutibilidade remuneratória real.
Nessa mesma vertente, porém afastando-nos propositalmente um pouco do tema principal (se promotor é agente político ou mero funcionário público), consignamos nossa opinião de que as normas que determinam o pagamento de subsídio a agentes políticos e a sua revisão geral anual possuem eficácia exaurível sem o condicionamento absoluto à norma infraconstitucional. Seguem os porquês. De certo, tais normas não são de eficácia plena ou contida, segundo classifica José Afonso da Silva: seriam de eficácia limitada na lição desse mestre. Parte-se, linhas gerais, da percepção das normas constitucionais como auto-excecutáveis ou não auto-excetutáveis, da sua dependência ou não de legislação intercalar. Com efeito, para adoção da política subsidial, necessita-se de lei específica, determina a Constituição. Devemos, admitir, no entanto, que essa norma de natureza programática repouse como mera promessa? (utilizamos a expressão "programática" num conceito mais dilatado, para acolher as diversas classificações doutrinárias que distinguem normas de eficácia limitada em normas de princípio programático ou de princípio institutivo; ou as chamam de norma de eficácia completável, de aplicabilidade diferida, enfim).
Merece nota o pensamento de Eros Roberto Grau, citado por Carlos Augusto Alcântara Machado, in Direito Constitucional, 1ª ed., RT. O hoje Ministro do STF há muito já "reclamava a imediata aplicação das Normas Programáticas consagradoras, na visão da doutrina dominante, de "promessas inócuas" em face da falta eterna de intermediação legislativa, sobretudo as que veiculavam direitos sociais e econômicos" (op. cit.p. 103). Conclui o jurisconsulto, em citação de Alcântara Machado: "caberia ao Poder Judiciário suprir a inconstitucionalidade por omissão, visto que a atividade legislativa, reclamada pela norma, é um direito subjetivo do cidadão" (destaque original). Vale a pena prosseguirmos com a transcrição do manual: "Ademais, fincadas em solo firme estão as sempre lembradas lições dos mestres portugueses Jorge Miranda (1983, t. 2. p. 217) e J. J. Gomes Canotilho (1992, p. 189-190), sustentando que, nos termos da doutrina clássica, hoje não há mais normas programáticas como meras proclamações políticas ou cláusulas não vinculativas" (destaques nossos).
Em compreensão ainda mais garantista, nessa mesma linha de raciocínio, Canotilho (1992, p. 189-190): "às ‘normas programáticas’, é reconhecido hoje um valor jurídico constitucionalmente idêntico ao dos restantes preceitos da constituição. Não pode, pois, falar-se de eficácia programática (ou diretiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória em confronto com qualquer poder estatal discricionário (Crisafulli). Mais do que isso: a eventual mediação, pela instância legiferante, da concretização das normas programáticas, não significa a dependência desse tipo de normas de interpositio do legislador; é a positividade das normas-fim e normas-tarefa (normas programáticas) que justifica a necessidade de intervenção de órgãos legiferantes" (os negritos são nossos).
Em conclusão no que toca ao tema proposto: considerando os frutos das preciosas reflexões doutrinárias de Hely Lopes Meirelles, o promotor de justiça é agente político, sendo assim ponto de influxo de regras pertinentes a esse status de agente público. Tal compreensão não se afasta do entendimento de outros doutrinadores, Celso Antônio Bandeira de Melo e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, pois podemos perceber que o tratamento que a Constituição reserva aos promotores de justiça é assemelhado ao que se dispensa aos membros do Poder Judiciário, determinando, ainda, a Lei Magna, a sua remuneração através de subsídio, como o faz em relação a consagrados agentes políticos (membros de Poder, detentor de mandato eletivo, ministros de estado, secretários estaduais e municipais).
Em arremate quanto à proposição emergente (a consagração, com a EC nº 19, de 4-6-1998, da garantia de irredutibilidade remuneratória real ao promotor de justiça, não apenas nominal): observamos que a Constituição assegura ao membro a irredutibilidade de subsídios, determinando que dessa forma seja efetuado seu pagamento, assegurada revisão geral anual (dispositivos citados). Na espreita de doutrina mais atualizada, conectando-se à genialidade de Canotilho, tal norma não pode quedar-se inócua, como promessa sem valor. Não se trata de regra cuja eficácia possa ficar submissa à discricionariedade (ou mau humor) do legislador infraconstitucional. Como já sustentou o hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, Eros Roberto Grau, havendo recusa de obediência a imperativos constitucionais dessa natureza, a solução de equilíbrio do sistema caberá ao Poder Judiciário. Negar-lhes eficácia é desconsiderar garantia assegurada constitucionalmente a agente político; tolerar-lhes a idéia de ineficácia ou de eficácia submissa ao bel-prazer da Assembléia Legislativa, e. g., é dar de ombros para a Constituição Federal, base da ordem jurídica, a que cabe o Ministério Público defender (art. 127, CF).
Encerramos como começamos, com menção ao príncipe dos promotores, o efusivo Roberto Lyra. Parafraseando-o, promotores devem se manter ligados pelo sentimento comum da causa pública, pela identidade do programa e finalidade, dos deveres cívicos e das responsabilidades funcionais.