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A densidade normativa do princípio acusatório na Constituição de 1988 e a condenação do réu sem acusação.

Análise da conformidade constitucional do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal

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IV – POSITIVAÇÃO, CONTEÚDO JURÍDICO E EFICÁCIA NORMATIVA DO PRINCÍPIO ACUSATÓRIO NA CONSTITUIÇÃO DE 1988

A análise segue recaindo sobre o núcleo e os limites do princípio acusatório. Mas, diversamente do capitulo anterior, o foco deixa de recair sobre o plano da teoria geral do processo, com alusão abstrata a conceitos técnico-jurídicos, e passa a recair sobre o direito positivo.

É assente na doutrina que a Constituição de 1988 elevou sobremodo o perfil institucional do Ministério Público, que adquiriu feições próprias, as quais o assimilam, no plano funcional, ao ombudsman do constitucionalismo sueco. Dentre as normas que conformam a macrodisciplina das atribuições do Ministério Público, está o art. 129, I, da Carta Política, segundo o qual o Parquet tem como função institucional promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei.

Essa norma é apontada pela doutrina como a sedes materiae do princípio acusatório no ordenamento jurídico pátrio. Trata-se de norma substantivamente inovadora, menos pelo conteúdo axiológico de que se reveste do que pelo dado topográfico-normativo de sua inserção no texto constitucional: nunca antes a Constituição do Estado brasileiro consagrara o princípio acusatório, não obstante o Ministério Público nela tenha assento próprio desde 1934.

O enunciado do art. 129, I, da Constituição de 1988 traz ao menos dois relevantes desafios hermenêuticos para a determinação da densidade normativa do princípio acusatório em nosso ordenamento: (i) o alcance da expressão promover, usada para descrever o núcleo da função ministerial relativamente à ação penal pública [25]; (ii) a eficácia da própria norma de atribuição, sobretudo porque o constituinte originário elegeu expressamente a interpositio legislatoris como via de seu adensamento normativo.

O primeiro desafio consiste, essencialmente, em delinear, à luz das possibilidades semânticas e contextuais da norma constitucional, o sentido nuclear e os contornos da titularidade da penal ação pública pelo Ministério Público. Trata-se de indagar, em especial, se essa norma conferiu ao Ministério Público apenas o monopólio da propositura da ação penal pública ou se promover a ação penal pública significa mais do que apenas propô-la.

O verbo promover traduz os sentidos de agenciar, fomentar, impulsionar, causar. Costuma ser empregado na linguagem forense e na legislação para designar as manifestações do Ministério Público tendentes a impulsionar o processo penal. Mas esse emprego não é único nem exclusivo: o Código de Processo Civil fala na promoção da execução, bem como na promoção da citação no processo de conhecimento, embora pudesse, no primeiro caso, falar em propositura e, no segundo, em requerimento.

Esses exemplos da legislação processual civil deixam entrever com mais clareza o conteúdo jurídico conspícuo, no ordenamento pátrio, da promoção como conduta processual: quando o ordenamento chama a parte a ‘promover’ em vez de simplesmente chamá-la a ‘propor’ ou ‘requerer’, impõe-lhe o ônus específico de co-impulsionar a relação processual, subsidiando o juiz com elementos ou diretrizes para o impulso oficial e influindo na marcha do procedimento. Se a parte deve promover determinada medida, e não apenas requerê-la ou intentá-la, a observância do princípio da inércia jurisdicional deve ser examinada em escrutínio estrito.

O constituinte originário, ao usar da expressão ‘promover’ em relação à ação penal pública, enfatizou os ônus do acusador, como a transmitir a noção de que ele não pode relaxar, após a propositura da ação, no que diz respeito ao respectivo impulso. Para além da propositura, cabe a ele, quando menos, subsidiar o juízo na citação do acusado, produzir provas capazes de sustentar a acusação e, uma vez formado o conjunto probatório, insistir na imputação inicial. Todas essas providências estão compreendidas na acepção mais elementar do conceito de promoção da ação penal.

Essas premissas sugerem que o texto constitucional pretendeu infundir elevada densidade normativa ao princípio acusatório como diretriz sistêmica de nosso ordenamento processual penal. O constituinte originário não pretendia instituir um acusador meramente formal, algo na linha de um simples deflagrador-legitimador de instruções inquisitivas; o uso do verbo promover para descrever o papel do órgão de acusação no âmbito da ação penal pública sugere, antes, a diretriz de máxima acusatoriedade de que fala Geraldo Prado.

Mas a remissão constitucional à forma da lei da atribuição ministerial para promover a ação penal pública sugere alguma medida de partilha da função disciplinadora do princípio acusatório entre o poder constituinte e o poder legislativo e enseja linha de ponderação relacionada com a eficácia das normas constitucionais. Caberia, então, perquirir se – ou em que medida – o constituinte originário pretendeu delegar ao legislador infraconstitucional as decisões essenciais sobre a concretização do princípio acusatório.

Na medida em que esse exame tem como pano-de-fundo obrigatório à eficácia das normas constitucionais, segue transcrito trecho em que Ana Paula de Barcelos compendia múltiplas teorias sobre o ponto:

"A distinção entre normas constitucionais auto-aplicáveis – isto é: capazes de produzir efeitos independentemente da atuação do legislador, tendo em vista a completude de seu conteúdo – e não auto-aplicáveis corresponde à classificação tradicional da doutrina norte-americana do início do século XX (normas constitucionais self-executing e not self-executing) e foi desenvolvida no país principalmente por Ruy Barbosa.

J.H. Meirelles Teixeira reformulou essa construção para reconhecer que mesmo as normas não auto-aplicáveis dispunham de alguma forma de aplicação, como a eficácia negativa, espécie de barreira à atuação do legislador, típica das chamadas normas programáticas. Por essa razão, o autor passou a classificar as normas constitucionais como normas de eficácia plena – que produzem, desde sua promulgação, todos os efeitos essenciais – e por normas de eficácia limitada ou reduzida subdivididas em programáticas e de legislação. As normas de eficácia limitada não apresentam normatividade suficiente para produzirem todos os seus efeitos essenciais desde a promulgação, deixando total ou parcialmente essa tarefa ao legislador ordinário, ainda que se lhes reconheça a referida eficácia negativa e que elas influenciem a aplicação de outras normas, através de sua eficácia interpretativa e integradora.

Sob orientação desse mesmo critério, José Afonso da Silva criou sua já clássica disposição tripartida das normas constitucionais, classificando-as em (i) normas constitucionais de eficácia plena e aplicabilidade imediata, (ii) normas constitucionais de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passíveis de restrição pela atuação do legislador e (iii) normas constitucionais de eficácia limitada ou reduzida, que não receberam normatividade suficiente do constituinte, de modo que dependem da intervenção legislativa para produzirem seus principais efeitos."

Celso Ribeiro Bastos e Carlos Ayres de Brito propuseram nova classificação que, nada obstante, gravita ainda em torno do mesmo critério essencial referido inicialmente. Os autores partiram de dois elementos distintivos: o modo de incidência das normas, que as distingue em normas de mera aplicação ou inintegráveis, grupo que não compartilha seu espaço com a manifestação do legislador ordinário, e normas integráveis, que admitem a convivência com a vontade legislativa inferior. O segundo elemento distintivo diz respeito à eficácia, pelo qual as normas podem ser de eficácia parcial ou plena. [26]

A norma do art. 129, I, da Constituição reveste-se de característica específica no que diz respeito à sua eficácia: não obstante ela contenha expressa delegação de competência ao legislador infraconstitucional para disciplinar o princípio acusatório, a primeira parte de sua dicção – relativa à instituição de função institucional privativa do Ministério Público consistente em promover a ação penal pública – apresenta indiscutíveis eficácia plena e aplicabilidade imediata. A doutrina e a jurisprudência entenderam desde logo, sem dissonância, que, com a entrada em vigor do novo texto constitucional, o sistema processual penal brasileiro ficara imediatamente depurado de seus elementos inquisitivos diretamente violadores do princípio da demanda, que consistiam nas hipóteses de ação penal ex officio.

Estaria tudo mais que diz respeito ao princípio acusatório – inclusive as opções essenciais do regramento do sistema processual – delegado à discricionariedade do legislador infraconstitucional? Poderia o legislador infraconstitucional optar por um sistema acusatório meramente formal, com o Ministério Público em posição processual supletiva à iniciativa inquisitiva do juiz após exercer um monopólio restrito, nessa perspectiva, à mera deflagração da ação penal pública?

As respostas devam ser negativas. A abertura da norma em exame à integração infraconstitucional não poderia, pressuposta a coerência do constituinte originário, implicar abertura à redução de sua própria força normativa, como se o constituinte, em um verdadeiro momento de cinismo, tivesse decidido enviar por sua própria pena uma boa-nova e criar para o legislador processual penal a possibilidade jurídica de emasculá-la pela via mais discreta e insidiosa da disciplina dos meandros do procedimento.

É mais razoável supor, nessas condições, que o constituinte originário tivesse em conta, ao permitir a integração legislativa do art. 129, I, um dado da realidade: vigia – e segue vigente – o Código de Processo Penal de 1941, cuja estrutura conserva vários elementos do sistema inquisitivo; se a instituição do princípio acusatório tivesse sido mais intransigente, tenderia a sobrevir verdadeiro estado de anomia processual penal, com profunda insegurança jurídica em conseqüência.

Conclui-se, pois, que a abertura da norma constitucional instituidora do princípio acusatório à integração legislativa visava, antes de tudo, a permitir a recepção do Código de Processo Penal: daí a linguagem de compromisso em que consiste a remissão à forma da lei. A legislação processual penal subseqüente estaria, por sua vez, vinculada – tanto pela literalidade do trecho de eficácia plena do art. 129, I, quanto pela cláusula implícita de vedação do retrocesso – ao incremento da concretização do princípio acusatório. Caberia ao legislador ordinário, depois de 1988, observar, na construção do sistema processual penal, que, de um lado, o texto constitucional confere ao Ministério Público a função de promover privativamente a ação penal pública e, de outro lado, essa outorga de função privativa se insere na lógica da própria imparcialidade do juiz, o que repercute no princípio do devido processo legal.


V – AS ALEGAÇÕES FINAIS NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO E A NATUREZA JURÍDICA DAS ALEGAÇÕES FINAIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO PELA ABSOLVIÇÃO DO ACUSADO

V (a) – DA ESSENCIALIDADE DAS ALEGAÇÕES FINAIS

Os procedimentos em torno dos quais se estrutura o processo penal brasileiro contemplam, como em vários outros ordenamentos jurídicos, uma vez coligidos o conjunto probatório, oportunidade para que a acusação e a defesa, emitam manifestações finais, orais ou escritas, a propósito de suas pretensões. Essas manifestações, chamadas alegações finais, tomam, no procedimento ordinário, forma escrita e, nos procedimentos sumários e sumaríissimo, bem como em alguns procedimentos especiais, forma oral. É corrente, de todo modo, entre os juízes criminais brasileiros, a prática de facultar a apresentação de memoriais (i.e. de alegações finais escritas) mesmo quando o procedimento não é o ordinário.

A doutrina e a jurisprudência tradicionais negam às alegações finais, ao menos no âmbito do procedimento ordinário, caráter de termo essencial do processo. Preferem caracterizá-las como ônus das partes, o que tornaria nula apenas a negativa da oportunidade respectiva. Sérgio Demoro Hamilton, processualista e Procurador de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim sintetiza o dado em artigo específico sobre o tema das alegações finais:

"A posição da jurisprudência do Pretório Maior encontra apoio em nomes da expressão de Fernando da Costa Tourinho Filho e José Frederico Marques que, embora considerando úteis as alegações finais, entendem não serem elas elemento essencial do processo, não acarretando, por via de conseqüência, em caso de omissão, qualquer nulidade para o processo, inocorrendo prejuízo substancial para o direito de defesa a audiência de alegações finais..." [27]

O professor fluminense adota, contudo, entendimento diverso. Para ele, o conceito de instrução criminal abrangeria, em acepção ampla, atos postulatórios e probatórios e dentre os primeiros estariam as alegações finais. Seria, de resto, incoerente, em seu modo de ver, negar às alegações finais no procedimento ordinário o caráter de termo essencial do processo quando tal essencialidade é pacífica no procedimento sumário e, a fortiori, no procedimento perante o Tribunal do Júri, em que é inclusive sancionada com nulidade expressa (art. 564, III, "l" do Código de Processo Penal). Nas palavras do ilustre doutrinador:

"...quando vem à baila a discussão a respeito da conveniência ou da necessidade do oferecimento de alegações finais, têm-se em mira, em geral, as razões escritas, próprias do procedimento comum (art. 500 do CPP). Porém, tudo o que aqui foi ressaltado a respeito das finais, nesta última modalidade de rito, tem cabimento, mutatis mutandis, evidentemente, no procedimento em que os debates finais são orais (art. 538, 2º, do CPP). Diga-se o mesmo em relação ao rito do Júri (arts. 471 a 474 do CPP). Aliás, com base nestes últimos procedimentos, segundo penso, surge um argumento definitivo em prol da necessidade da apresentação de alegações finais em qualquer caso. Por que seria obrigatória a sustentação oral no procedimento sumário (a que estão sujeitas infrações penais de menor gravidade) e, quando o crime fosse apenado de forma mais severa, seria dispensável a derradeira manifestação das partes?

Por que haveria nulidade pela falta da acusação e da defesa na sessão de julgamento no plenário do Júri (art. 564, inciso III, letra "I" do CPP), tornando-se desnecessária a manifestação final das partes no procedimento comum dos crimes apenados com reclusão?

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Averbe-se, em conclusão, que em relação ao rito sumário e ao procedimento do Júri nunca e pôs em dúvida que as razões finais orais são termo essencial do processo. Admite-se, quando muito, no procedimento sumário, a supressão os debates, substituindo-os pela apresentação de memoriais, desde que as partes assim postulem e o juiz venha a deferir o requerimento, na hipótese em que a causa apresente questões complexas de fato e de direito, tal como permitido no art. 454, § 3º do CPC, aplicável por analogia ao processo penal (art. 3º do CPP).

Constitui premissa para as conclusões do presente trabalho o entendimento, tal como acima exposto, pela essencialidade das alegações finais em todo e qualquer procedimento processual penal.

V (b) – DA NATUREZA JURÍDICA DAS ALEGAÇÕES FINAIS ABSOLUTÓRIAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

A doutrina majoritária enxerga como não-vinculantes para o Juízo as alegações finais em que o Ministério Público se manifesta pela absolvição do acusado. Essa noção é norteada pelas premissas de que a ação penal pública é regida pelo princípio da indisponibilidade e de que o Ministério Público, uma vez deflagrada a ação penal, figuraria no processo penal na qualidade de fiscal da lei, o que revestiria de caráter meramente opinativo suas manifestações.

Afrânio da Silva Jardim enfrenta a questão como representante dessa corrente ao menos em dois momentos de sua obra. No estudo intitulado Reflexão Teórica sobre o Processo Penal, o tratamento do tema ainda é indireto:

"No atendimento dos postulados do sistema acusatório o Ministério Público atua inicialmente como órgão acusador, submisso ao princípio da obrigatoriedade da ação penal pública. Ao depois, diante da prova produzida, deve pugnar pela correta aplicação da lei ao caso concreto, funcionando como custos legis, já que o Estado não tem qualquer interesse de ver acolhida uma pretensão punitiva injusta, seja na sua essência, seja na sua quantidade. É o que se depreende dos arts. 257 e 385 do Cód. Proc. Penal de 1941." [28]

Já no estudo intitulado Teoria da Ação Penal Pública, o autor vai ao fulcro do problema:

"No desenvolvimento deste trabalho fizemos a distinção entre ação e mérito. No item supra, dissemos que, nada obstante o exercício da ação penal condenatória, o Ministério Público pode e deve se manifestar livremente sobre o mérito da pretensão punitiva estatal que deduziu na denúncia e eventual aditamento. A regra do art. 385 do Cód. Proc. Penal é clara neste sentido.

Quando o Ministério Público opina pela absolvição do réu não está desistindo da ação já exercitada, pois ela é indisponível (art. 42). Preciso o código quando usa a palavra "opina", pois o pedido formulado na denúncia não pode ser objeto de retração. Não se pede duas vezes e, com mais razão, não poderia o Ministério Público pedir em testilha com o seu pedido original. Desta forma, a pretensão punitiva do Estado será sempre apreciada pelo órgão jurisdicional, pois nenhum comportamento do Ministério Público poderá obstar o julgamento do mérito, quando cabível." [29]

A hipótese deste trabalho enxerga nas conclusões do renomado autor, com todas as vênias, uma premissa equivocada: a de que qualquer alternativa à atribuição de eficácia meramente opinativa à manifestação do Ministério Público em alegações finais redundaria em permitir-lhe desistir da ação penal.

Como visto antes, a proibição ao Parquet de desistir da ação penal serve a dois propósitos essenciais, que podem assim ser sintetizados: impedir recuos táticos do acusador, com os quais se poderia burlar na prática o princípio ne bis in idem em matéria penal, e vedar a retirada insidiosa de uma acusação apresentada por obediência formal ao princípio da obrigatoriedade. O princípio da indisponibilidade da ação penal não poderia nem pretende criar a figura de um acusador incansável – isso não seria compatível com as diretrizes humanistas do ordenamento jurídico brasileiro.

Não caberia, contudo, inferir desistência da ação penal de alegações finais em que o Ministério Público oficia pela absolvição porque, por exemplo, entendeu não configurado o crime de apropriação indébita inicialmente imputado, uma vez que a instrução comprovou que a hipótese constituía mero inadimplemento de contrato não-escrito de locação. Tampouco se poderia inferir desistência de manifestação final do Parquet que reconhece haver a instrução comprovado a materialidade de um crime contra o sistema financeiro, mas não a respectiva autoria, porque não foi possível identificar, na estrutura da instituição financeira, o autor das decisões criminógenas.

Essas situações lançam luz sobre o seguinte fato: quando o acusador relaxa a acusação por explícitas razões de direito material, amparadas nas provas dos autos, torna-se descabido falar em desistência da ação penal, cujo escopo é apenas processual. Se, pois, o argumento do Ministério Público é de direito material e tem amparo na prova, o princípio da indisponibilidade deixa de servir como obstáculo para a atribuição de eficácia vinculativa às alegações finais do acusador.

A natureza jurídica das alegações finais absolutórias será, então, a de uma modalidade específica e qualificada de renúncia à pretensão punitiva, propriedade ativa do jus puniendi (poder-dever de punir o criminoso) que não se confunde com o direito de ação penal (jus persequendi in judicio). O que especificaria e qualificaria essa modalidade de renúncia seria seu fundamento, que não derivaria de razões de conveniência, mas sim do reconhecimento, pelo acusador, da inviabilidade jurídica da pretensão punitiva: o Estado reconhece – diante da prova dos autos – que não tinha o direito de punir a quem acusa.

Cabe mais uma vez lembrar que o acusador terá, por força do princípio da obrigatoriedade, iniciado a ação penal no primeiro momento em que pôde formar a opinio delicti, um momento em que, possivelmente, o crime não estava provado, mas meramente indiciado.

A possibilidade jurídica de renúncia à pretensão punitiva pelo Ministério Público está claramente estabelecida em pelo menos duas situações processuais positivadas em nosso ordenamento: a promoção de arquivamento do inquérito policial pelo Chefe do Ministério Público com base no art. 43, I, do Código de Processo Penal (quando entende que o fato evidentemente não constitui crime) e a decisão do Ministério Público, pelo promotor natural do feito, de não interpor recurso de apelação de sentença absolutória, ainda que discorde dos respectivos fundamentos. A hipótese de reconstrução hermenêutica da eficácia jurídica das alegações finais absolutórias do Parquet com base na idéia de renúncia à pretensão punitiva não deve, portanto, causar estranheza, na medida em que o fundamento não é, em última análise, inédito.

A doutrina processual civil discute, com relevância para este trabalho, se, quando o autor da ação renúncia ao direito material (rectius: à pretensão que constitui sua propriedade ativa), o Juiz deve proferir sentença absolutória ou meramente homologatória da renúncia. Em qualquer hipótese, contudo, tratar-se-á de provimento de mérito, apto a impedir a renovação da demanda.

A sentença de mérito que puser fim ao processo penal em razão de renúncia ministerial in fine litis à pretensão punitiva, ainda que de teor homologatório, terá, por sua vez, efeito absolutório, com fundamento no dispositivo do art. 386 do Código de Processo Penal que houver sido invocado pelo Ministério Público em alegações finais, assim como a sentença homologatória da transação penal, cujo teor é a imposição consentida de sanção penal não-privativa de liberdade, tem efeito condenatório impróprio, segundo importante corrente jurisprudencial. O que de mais relevante para o acusado decorre dessa ordem de idéias é que, como se tratará de provimento de mérito, ficará obstruída a renovação da demanda pelo mesmo fato.

Tal exercício de reconstrução hermenêutica confere adequada densidade normativa ao princípio acusatório – que, como visto, não pode ser inteiramente destacado de nenhuma das vertentes do princípio dispositivo – no plano do desfecho do processo penal. Restaura, ademais, o equilíbrio institucional subjacente à relação jurídica processual: o Poder Judiciário retorna à posição de inércia que assegura sua efetiva imparcialidade; o Ministério Público recobra o controle das iniciativas de persecução no curso do processo; o acusado fica seguro contra nova investida do Estado pelo fato discutido no processo e desde logo pode confiar em sua absolvição, sem a vicissitude de experimentar a situação teratológica de se ver condenado em razão de imputação cujo próprio autor considerou improcedente.

Tal exercício revela, por fim, o espaço de conciliação do princípio acusatório com o favor rei: quanto maior a densidade normativa do princípio acusatório na estrutura da relação jurídica processual, mais oportunidades o acusado terá de ver-se livre da persecução estatal e maior será a distância psicológica e intelectual a separar o juiz do paradigma inquisitivo na marcha do processo.

A propósito do princípio do favor rei, a possibilidade jurídica de renúncia à pretensão punitiva in fine litis pelo Ministério Público decorre, em linha adicional, da projeção sobre a relação jurídica processual penal do princípio da igualdade, na vertente específica do tratamento desigual entre réus conforme seja privada ou pública a ação penal. O fulcro do argumento reside no art. 60, III, parte final, do Código de Processo Penal, que torna perempta a ação penal privada quando o querelante não formula (rectius: não reitera) o pedido condenatório nas alegações finais.

É cediço que as estruturas principiológicas da ação penal privada – desde que não subsidiária – e da ação penal pública são inteiramente diversas: as razões que levam o legislador a transferir para o ofendido o jus persequendi in judicio determinam que a hipótese seja regida pelas diretrizes da conveniência/oportunidade e da disponibilidade. O querelado não sai prejudicado com a perempção da ação penal privada porque o próprio Código Penal a considera causa de extinção de punibilidade (art. 107, IV), o que dá ao provimento que a reconhece natureza jurídica terminativa e, pois, o faz uma sentença de mérito.

Não escapa à observação, nessa ordem de idéias, que, pelo paradigma hermenêutico que tem por recepcionado pela Constituição de 1988 o art. 385, parte final, do Código de Processo Penal, a relação jurídica processual oferece conteúdo bastante mais amplo de garantia ao réu na ação penal privada do que na ação penal pública. O juiz simplesmente não pode, na ação penal privada, condenar o réu se o querelante – acusador privado, parcial, interessado – não reiterar o pedido condenatório nas alegações finais. Mas o mesmo juiz poderia, na ação penal pública, a prevalecer o entendimento pela constitucionalidade do referido dispositivo processual penal, condenar o réu mesmo que o Ministério Público – acusador estatal, profissional, imparcial – deixasse de reiterar, nas alegações finais, com fundamentação pertinente, a imputação inicial.

Como o princípio da verdade real sempre norteia o processo penal, a única explicação possível para essa diferença de tratamento do réu, que resulta de diferenças de estrutura principiológica das ações penais pública e privada, estaria na necessidade de controle de omissões indevidas do Ministério Público em seus deveres persecutórios. O atual perfil do Ministério Público no Brasil indica, contudo, que os controles administrativos e mesmo culturais de omissões persecutórias são suficientes – talvez o desafio mais premente esteja justamente em moderar a atuação persecutória de alguns membros do Parquet.

A desigualdade de tratamento de réus em ações penais públicas e privadas resulta, nessas condições, desproporcional em relação a seus fins normativos. Não deve, portanto, prosseguir m nosso ordenamento.

V (c) – DESFECHOS PROCESSUAIS ANÔMALOS À LUZ DA RECONSTRUÇÃO DA EFICÁCIA DAS ALEGAÇÕES FINAIS ABSOLUTÓRIAS DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O controle da omissão persecutória do Ministério Público

O juiz da causa poderá controlar possíveis abusos omissivos de parte do promotor natural por meio de aplicação analógica do art. 28 do Código de Processo Penal: se entender que o fundamento da renúncia ministerial à pretensão punitiva é juridicamente insubsistente ou não encontra amparo na prova, poderá provocar o Chefe do Ministério Público, para que confirme ou infirme as alegações finais absolutórias. É cediço, a propósito, que aquele dispositivo legal tem tido seu âmbito de aplicação estendido pela jurisprudência a situações processuais em que o promotor natural adota conduta que pareça omissão abusiva na perspectiva do juiz.

Remédio contra o acolhimento de imputação repudiada pelo Ministério Público

Se o art. 385, parte final, do Código de Processo Penal não foi recepcionado pela Constituição da República em razão do disposto em seu art. 129, I,a condenação do acusado a uma pena privativa de liberdade por acolhimento de imputação repudiada pelo Ministério Público em alegações finais constitui coação ilegal. Caberá, então, impetrar habeas corpus contra a sentença condenatória, com a provocação do controle de constitucionalidade na via difusa, sem prejuízo de possível apelação contra os fundamentos da sentença.

Se da sentença não resultar a imposição e pena privativa de liberdade, ainda assim caberá deduzir a questão constitucional no bojo do recurso de apelação.

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Sobre a autora
Flávia da Almeida Conceição Miller

bacharela em direito no Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MILLER, Flávia Almeida Conceição. A densidade normativa do princípio acusatório na Constituição de 1988 e a condenação do réu sem acusação.: Análise da conformidade constitucional do art. 385, primeira figura, do Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 775, 17 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7162. Acesso em: 25 dez. 2024.

Mais informações

Texto apresentado como monografia de conclusão de curso de Direito, sob a orientação do professor Leandro Felipe Bueno.

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