RESUMO: O assunto abordado nesse trabalho é o choque entre os dois direitos fundamentais, a liberdade religiosa e o direito à vida. Em que tais direitos entram em conflito mais especificamente nas situações em que o paciente Testemunha de Jeová se recusa a realizar tratamento médico, esse sendo considerado o único meio eficaz para salvar a sua vida. O objetivo desse trabalho foi verificar o posicionamento dado pelos tribunais acerca da colisão desses direitos fundamentais tão importantes para o ser humano, de um lado temos o Testemunha de Jeová que prefere dispor de sua vida do que realizar um tratamento desse tipo, e de outro lado, temos a função do médico no desempenho da sua profissão de assegurar e proteger a vida dos indivíduos que necessitam dos seus cuidados. Esse trabalho foi realizado por meio de material e referencial bibliográfico e se concluiu que os tribunais não possuem posicionamento pacificado sobre o tema, há decisões que priorizam e respeitam a vontade dos seguidores da religião Testemunha de Jeová que alegam objeção de consciência para que não seja submetido a tratamento que envolva transfusão de sangue, e que, portanto, havendo tratamento alternativo à transfusão, este deve ser realizado. Mas caso seja realizado o procedimento da transfusão, pelo médico contra a vontade do paciente e de seus familiares, o mesmo agiu de forma correta conforme determina o Código de Ética Médica.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade religiosa; Direito à vida; Testemunha de Jeová.
ABSTRACT: The problem here addressed is the conflict between the two fundamental rights: religious freedom and the right to life. When such rights conflict more specifically in situations which a Jehovah's Witness patient refuses to go under medical treatment when it is appointed as the only effective way to save his or her life. The purpose of this research was to verify the position taken by Court Houses regarding the collision of these fundamental rights that are so important for the human being. There is the Jehovah’s Witness on one side who prefers to dispose of his or her life rather than pursue medical treatment, and on the other side, there is the role of the physician performing his profession of assuring and protecting the lives of the individuals who need care. This research was done through material and bibliographic references and it was evaluated that the courts do not have a pacified position on this matter. There are decisions that prioritize and respect the freedom of followers of the Jehovah's Witness religion who claim conscientious objection so he or she is not submitted to a treatment involving blood transfusion, and thus, with the possibility of an alternative treatment to the transfusion, this last one shall be performes. However, if a blood transfusion is performed by the physycian against the patient and his or her family's will, the physician's action is considered as correct according to the Code of Medical Ethics.
KEYWORDS: Religious freedom; Right to life; Jehovah's Witness.
1 INTRODUÇÃO
O tema tratado nesse trabalho é a colisão do direito à liberdade religiosa e do direito à vida nos casos em que o seguidor da religião Testemunha de Jeová se recusa a realizar tratamento médico que necessite da realização de transfusão sanguínea.
A colisão dos direitos acontece quando o Testemunha de Jeová prefere dispor de sua vida por motivos religiosos do que realizar um procedimento que poderia vir a salvar a sua vida. O seguidor da religião Testemunha de Jeová alega objeção de consciência, ou seja, tal recusa advém dos preceitos religiosos que o norteia.
Nesse trabalho buscamos averiguar se algum direito se coloca como superior e mais importante em detrimento de outro. O direito à vida deve ser respeitado acima de tudo e independentemente da existência de outro fator externo? Devem ser respeitadas as convicções religiosas alegadas por seguidores da Testemunha de Jeová mesmo que isso venha a gerar consequências maiores? É justo que uma vida seja ceifada por questões religiosas? Como o médico deve proceder quando o paciente recusa tratamento, e no dever de sua função deve salvar e proteger vidas?
A vida é um bem primordial para os seres humanos, mas deve ser respeitada a objeção de consciência alegada pelas Testemunhas de Jeová. Portanto quando o paciente se recusa a realizar o tratamento o médico deve explicar ao mesmo as implicações e consequências da recusa. Mesmo que em momento posterior o paciente vem a falecer pela inexecução do tratamento médico, não cabe ao médico responder por nenhuma responsabilização, seja esta civil ou criminal. O médico também poderá agir conforme determina o Conselho Federal de Medicina (CFM) e optar por salvar a vida do paciente mesmo contra a vontade deste e de seus familiares.
Esse trabalho tem como objetivo a verificação dos posicionamentos adotados pelos tribunais quanto à problemática da colisão de direitos fundamentais. E ainda mais, objetiva verificar se há pacificação de posicionamento adotado pelos tribunais.
A temática mereceu destaque e desdobramento devido às consequências que podem ser geradas pela colisão desses direitos fundamentais, em que tais direitos são imprescindíveis para a existência humana e para o convívio na sociedade.
Na realização desse trabalho foi utilizada metodologia de pesquisa bibliográfica, sendo de extrema importância a leitura de doutrinas, da letra da lei e também dos casos já julgados por nossos tribunais.
Foi tratado e abordado as jurisprudências e julgamentos de casos concretos que envolvem o conflito da liberdade religiosa e do direito à vida. Ficou claro que ao Poder Judiciário não cabe determinar e decretar a realização de tratamento médico, mas cabe ao médico em consonância com os seus conhecimentos profissionais realizar ou não o procedimento. A análise do conflito desses direitos é feito caso a caso, não tendo, portanto posicionamento firmado nos tribunais, sendo difícil se ter um posicionamento consolidado tendo em vista que cada caso possui suas particularidades e singularidades.
O confronto da liberdade religiosa e o direito à vida: jurisprudências
Há muita divergência entre a doutrina e a jurisprudência nas questões que envolvem o choque entre os dois direitos, a liberdade religiosa e o direito à vida. Portanto, essa análise deve ser feita caso a caso, atendendo sempre aquilo que for mais adequado e conveniente ao problema em debate.
De modo geral, a jurisprudência vem adotando a possibilidade de imposição de tratamento médico aos pacientes que se encontram em iminente risco de vida. O paciente será submetido ao procedimento em último caso, quando todos os outros recursos para salvar a vida se encontrarem esgotados.
Nesse trabalho, foi abordado as decisões mais relevantes pelos tribunais acerca do assunto. O primeiro julgamento referente a esse debate foi dado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no dia 28 de março de 1995.
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em sua decisão defendeu a prevalência do direito à vida em detrimento do direito à liberdade religiosa. Fica evidente que esse posicionamento possui amparo no Código Penal Brasileiro, no Código de Ética Médica e nas Resoluções do Conselho Federal de Medicina, prevalecendo sempre o bem estar e a saúde do paciente.
CAUTELAR. TRANSFUSÃO DE SANGUE. TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. NÃO CABE AO PODER JUDICIÁRIO, NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO, AUTORIZAR OU ORDENAR TRATAMENTO MÉDICO-CIRÚRGICOS E/OU HOSPITALARES, SALVO CASOS EXCEPCIONALÍSSIMOS E SALVO QUANDO ENVOLVIDOS OS INTERESSES DE MENORES. SE IMINENTE O PERIGO DE VIDA, É DIREITO E DEVER DO MÉDICO EMPREGAR TODOS OS TRATAMENTOS, INCLUSIVE CIRÚRGICOS, PARA SALVAR O PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DESTE, E DE SEUS FAMILIARES E DE QUEM QUER QUE SEJA, AINDA QUE A OPOSIÇÃO SEJA DITADA POR MOTIVOS RELIGIOSOS. [...] SE TRANSFUSÃO DE SANGUE FOR TIDA COMO IMPRESCINDÍVEL, CONFORME SÓLIDA LITERATURA MÉDICO-CIENTÍFICA (NÃO IMPORTANDO NATURAIS DIVERGÊNCIAS), DEVE SER CONCRETIZADA, SE PARA SALVAR A VIDA DO PACIENTE, MESMO CONTRA A VONTADE DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ, MAS DESDE QUE HAJA URGÊNCIA E PERIGO IMINENTE DE VIDA (ART. 146, § 3º, INC. I, DO CÓDIGO PENAL). CASO CONCRETO EM QUE NÃO SE VERIFICAVA TAL URGÊNCIA. O DIREITO À VIDA ANTECEDE O DIREITO À LIBERDADE, AQUI INCLUÍDA A LIBERDADE DE RELIGIÃO; É FALÁCIA ARGUMENTAR COM OS QUE MORREM PELA LIBERDADE POIS, AÍ SE TRATA DE CONTEXTO FÁTICO TOTALMENTE DIVERSO. NÃO CONSTA QUE MORTO POSSA SER LIVRE OU LUTAR POR SUA LIBERDADE. HÁ PRINCÍPIOS GERAIS DE ÉTICA E DE DIREITO, QUE ALIÁS NORTEIAM A CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS, QUE PRECISAM SE SOBREPOR AS ESPECIFICIDADES CULTURAIS E RELIGIOSAS; SOB PENA DE SE HOMOLOGAREM AS MAIORES BRUTALIDADES; ENTRE ELES ESTÃO OS PRINCÍPIOS QUE RESGUARDAM OS DIREITOS FUNDAMENTAIS RELACIONADOS COM A VIDA E A DIGNIDADE HUMANAS. RELIGIÕES DEVEM PRESERVAR A VIDA E NÃO EXTERMINÁ-LA. (BRASIL, 1995, grifo nosso).
Vemos um posicionamento bastante radical dado pelo TJRS, em que defende que o direito à vida se sobrepõe ao direito à liberdade, mais propriamente, o direito à liberdade religiosa. E caso o paciente estiver em iminente perigo de vida o médico tem o dever de empregar todos os meios e tratamentos necessários, mesmo contra a vontade do paciente e de seus familiares.
Essa decisão em que se preza a proteção do direito à vida, foi fundamentada utilizando a Carta das Nações Unidas, em que a mesma é norteada por princípios gerais de direito e de ética. E esses princípios norteadores da Carta deveriam se sobrepor em detrimento das questões culturais e religiosas. O Tribunal ainda salientou a importância da vida para a existência humana, e que no entanto, a religião deveria preservá-la e não exterminá-la ou eliminá-la.
Esse posicionamento adotado pelo TJRS foi muito importante, e serviu também como uma direção a ser seguida por outros tribunais, que também vem adotando a prevalência do direito à vida sobre o direito à liberdade religiosa, nos casos de recusa de tratamento médico pelos seguidores da religião Testemunha de Jeová.
No próximo julgamento vemos mais uma vez a prevalência do direito à vida, e que existindo outras formas alternativas para o tratamento, estas devem ser utilizadas. Conclui-se com tal decisão a necessidade de se tutelar o bem maior, que é a vida, e também notamos o respeito e cuidado pela objeção de consciência alegada pelos Testemunhas de Jeová. A Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul concedeu o recurso interposto por meio do Agravo de Instrumento nº 22395/2006, e portanto havendo alternativa ao tratamento de transfusão de sangue, o tratamento deve ser alcançado mesmo fora do domicílio do paciente. A seguir é abordada trecho da decisão proferida pelo tribunal:
TESTEMUNHA DE JEOVÁ – PROCEDIMENTO CIRÚRGICO COM POSSIBILIDADE DE TRANSFUSÃO DE SANGUE – EXISTÊNCIA DE TÉCNICA ALTERNATIVA – TRATAMENTO FORA DO DOMICÍLIO – RECUSA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA – DIREITO À SAÚDE – DEVER DO ESTADO – RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA – PRINCÍPIO DA ISONOMIA – OBRIGAÇÃO DE FAZER – LIMINAR CONCEDIDA – RECURSO PROVIDO. Havendo alternativa ao procedimento cirúrgico tradicional, não pode o Estado recusar o Tratamento Fora do Domicílio (TFD) quando ele se apresenta como única via que vai ao encontro da crença religiosa do paciente. [...] Se por motivos religiosos a transfusão de sangue apresenta-se como obstáculo intransponível à submissão do recorrente à cirurgia tradicional, deve o Estado disponibilizar recursos para que o procedimento se dê por meio de técnica que dispense-na, quando na unidade territorial não haja profissional credenciado a fazê-la. O princípio da isonomia não se opõe a uma diversa proteção das desigualdades naturais de cada um. Se o Sistema Único de Saúde do Estado de Mato Grosso não dispõe de profissional com domínio da técnica que afaste o risco de transfusão de sangue em cirurgia cardíaca, deve propiciar meios para que o procedimento se verifique fora do domicílio (TFD), preservando, tanto quanto possível, a crença religiosa do paciente. (BRASIL, 2006, grifo nosso).
O paciente entrou com o recurso de Agravo de Instrumento tutelando a possibilidade de tratamento alternativo à transfusão sanguínea e portanto tal recurso foi concedido. Vemos um avanço na jurisprudência equilibrando a garantia do direito à vida e também preservando a liberdade religiosa do paciente.
O promotor de Justiça em Guaporé (RS) em seu artigo abordou a questão dos tratamentos alternativos à transfusão de sangue da seguinte maneira:
Em respeito aos direitos fundamentais daqueles que por motivos religiosos não aceitam determinados tratamentos médicos, o Estado tem a obrigação jurídica de custear o pagamento, via, SUS, de tratamentos alternativos às transfusões de sangue – forma de materializar o atendimento dos direitos à saúde e a objeção de consciência, ambos protegidos constitucionalmente. (LEIRIA, 2018, p. 27, grifo nosso).
O Estado em respeito aos direitos fundamentais deve, portanto custear tratamentos alternativos à transfusão de sangue por meio do SUS (Sistema Único de Saúde), materializando portanto a previsão constitucional do direito à saúde e também da objeção de consciência.
Da decisão proferida extrai-se que o Estado não pode se eximir da obrigação e recusar tratamento fora do domicílio do paciente. Havendo técnicas alternativas à transfusão de sangue as mesmas devem ser buscadas mesmo que fora do domicílio do paciente, preservando no entanto a convicção e crença religiosa do paciente.
Da capacidade das pessoas na recusa do tratamento da transfusão
A capacidade civil é muito importante quando se trata da recusa de tratamento médico, tendo em vista que essa capacidade é aquela que os indivíduos adquirem para executar todos os atos da vida civil de forma plena. A capacidade civil é tratada implicitamente pelo Código Civil, e portanto ela é alcançada quando a pessoa completa seus 18 anos de idade. Os menores de 16 anos são considerados incapazes, e já os maiores de 16 anos e menores de 18 anos são considerados como relativamente incapazes.
Tratando ainda dos relativamente incapazes, são considerados estes como os viciados em bebidas alcoólicas ou em tóxicos, aqueles que não puderem exprimir a sua vontade, e os pródigos, que tomam atitudes financeiras compulsivas.
O julgamento dos casos concretos que envolvem o conflito entre os dois direitos, o direito à vida e o direito à liberdade religiosa, levam em consideração a capacidade das pessoas de poder decidir sobre a melhor forma de seguir, seja na recusa do tratamento ou pela sua execução. As pessoas que possuem capacidade civil e pleno discernimento podem decidir sobre realizar o tratamento ou não, já as crianças, por não possuírem plena capacidade civil, fica a encargo dos seus pais ou responsáveis a decisão do melhor tratamento. Tal distinção será explorada a seguir:
Do paciente maior e capaz
Nos atos em sociedade é de suma importância o respeito à vontade das pessoas e é, portanto, princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. É garantido a todo indíviduo tratamento alternativo a transfusão de sangue, se houver. Mas em caso de extrema necessidade de realizar o procedimento, e sendo este o único meio para salvar a sua vida, o paciente Testemunha de Jeová (que possui capacidade civil) declara a sua vontade, seja de realizá-lo ou não. Segue abaixo acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais:
PROCESSO CIVIL. CONSTITUCIONAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. TUTELA ANTECIPADA. CASO DAS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ. PACIENTE EM TRATAMENTO QUIMIOTERÁPICO. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITO À VIDA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA. – No contexto do confronto entre o postulado da dignidade da pessoa humana, o direito à vida, à liberdade de consciência e de crença, é possível que aquele que professa a religião denominada Testemunhas de Jeová não seja judicialmente compelido pelo Estado a realizar transfusão de sangue em tratamento quimioterápico, especialmente quando existem outras técnicas alternativas a serem exauridas para a preservação do sistema imunológico. – Hipótese na qual o paciente é pessoa lúcida, capaz e tem condições de autodeterminar-se, estando em alta hospitalar. (BRASIL, 2007, grifo nosso).
O Tribunal de Justiça de Minas adotou posicionamento em que o paciente não pode ser obrigado pelo Estado a realizar transfusão se existirem meios alternativos. Estando o paciente em pleno discernimento e de alta hospitalar, o mesmo pode optar por buscar outros meios de tratamento que não seja necessário a transfusão sanguínea.
Lembrando que o consentimento dado pelo paciente tem que ser livre e esclarecido, de sua própria vontade. Não pode haver nenhuma forma de impedimento quanto a exteriorização da vontade do paciente, seja por meio de coação ou fraude.