"A evolução do conceito da propriedade - que da plena in re potestas de Justiniano, da propriedade como expressão do direito natural, vai desembocar, modernamente, na idéia de propriedade - função social - apresenta momentos e matizes realmente encantadores, bastantes para desviar o estudioso da senda que tencione explorar. Tal evolução consubstancia, como afirmou André Piettre [...], a revanche da Grécia sobre Roma, da filosofia sobre o direito: a concepção romana, que justifica a propriedade pela origem (família, dote, estabilidade dos patrimônios), sucumbe diante da concepção aristotélica, finalista, que a justifica pelo seu fim, seus serviços, sua função."
Eros Robert Grau
Sumário: 1. Introdução. 2. Etiologia Histórica do Direito de Propriedade. 3. Função Social da Propriedade: Principais Contribuições Doutrinárias. 4. A Inclusão da Função Social no Conceito de Propriedade. 5. Conclusão.
1.INTRODUÇÃO
Sentimento inerente ao homem e fundamento último de toda a sociedade contemporânea, a propriedade afigura-se como o direito em torno do qual gravita toda a regulação jurídica do Direito das Coisas, constituindo ainda um dos sustentáculos - ao lado das instituições da Família e do Contrato - do sistema liberal-burguês refletido em nosso revogado Código Civil, no tripé tradicional do Direito Privado.
Todavia, com a vinda da Constituição Federal de 1988, o instrumento normativo de 1916 passou a quedar-se superado, posto que aquela ventila em seu bojo o instituto da Função Social da Propriedade, definido como a preocupação de assegurar o uso da coisa em consonância com os ditames clamados pelo bem comum, afastando-se do plena in re potestas e adquirindo cada vez mais um caráter publicista.
Tal novidade acabou por refletir-se na elaboração do novo Código Civil, recentemente aprovado, o que se mostra coerente com a inscrição de novos princípios norteadores, especialmente o da Socialidade, que vem tentar a superação do caráter manifestamente individualista do Diploma revogado.
Sendo assim, é possível notar que tal instituto tem variado no fluir temporal. Ainda hodiernamente, há dissensões doutrinárias no tocante ao conceito da propriedade e sua função social.
Neste artigo, procuraremos esboçar uma breve análise do conceito de propriedade e sua função social, em seu desenvolvimento ao longo das coordenadas espaço-temporais. Com este intuito, faremos pequena base sobre o evolver histórico do instituto da propriedade; traremos à colação as principais contribuições doutrinárias a respeito da função social, bem como procederemos ao estudo acerca da inclusão da função social no próprio conceito de propriedade.
2. ETIOLOGIA HISTÓRICA DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Desde longe provém o instituto da propriedade. Em Roma, de início, não havia uma sistematização dos conhecimentos sobre o tema em tela. A propriedade apresentava-se como um direito absoluto, no sentido de não comportar limites ou restrições, o qual conferia ao seu titular um poder de usar, gozar e dispor da coisa. Para os juristas romanos daquela época, a propriedade era constituída de três faces: usus (o poder de utilizar-se da coisa); o fructus (o poder de perceber frutos ou produtos do bem); e o abusus (o poder de consumir ou alienar a coisa).
Porém, posteriormente, sobreveio a Lei das Doze Tábuas, que já previa a proteção contra os atos considerados atentatórios à existência deste poder sobre as coisas, a exemplo do furto, dos danos causados por animais em propriedade alheia, dentre outros. A partir daí, tal concepção foi-se desenvolvendo, tanto que, no período clássico, foram reconhecidas a propriedade quiritária – aquela decorrente da constituição da cidade de Roma, típica dos patrícios – bem como a propriedade sobre terras conquistadas.
Desta forma, ao bem regulá-la, a propriedade em Roma não mais se constituía como um direito absoluto. Conforme lição de Caio, a propriedade seria o jus utendi et abutendi, quatemus juris ratio patitur; o direito devia ser usufruído conforme razões de Direito. Tais limitações surgiam no que concerne ao direito de vizinhança, servidões e, principalmente, nos poderes dos senhores sobre os escravos. Afigura-se aí uma incipiente noção de função social da propriedade.
Na Idade Média, a manifestação do direito de propriedade foi desmembrada em dois prismas: o directum e o utile. Neste sistema social, o proprietário das terras - o suserano, titular do directum - cedia a posse de parte de seu domínio ao vassalo, que exerceria o utile, e tornar-se-ia algo que hoje, sob a lente lapidada por Ihering, chama-se possuidor direto. Por sua vez, este poderia também transferir parte da sua a outro, conformando-se, destarte, uma "complicada trama de interdependências jurídicas" (ANJOS FILHO, 2001).
O evolver social veio desaguar na formação de uma classe burguesa, estabelecida com o desenvolvimento da atividade comercial e florescimento das cidades, o que fragilizou a nobreza feudal, incentivando a transformação de tal regime. Em decorrência, a propriedade de todas as terras foi transferida ao monarca, que, com o intuito de incrementar o erário, passou a explorá-las na forma de imposição de pesados tributos.
O grande marco dessa transformação deu-se com a Revolução Francesa, cujo documento maior, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, alicerçado em Locke, previa que a propriedade seria "uma barreira intransponível para o Estado: um direito natural". Desta leitura pode-se depreender que ainda seria ela revestida grandemente de caráter individualista, ainda que não fosse de todo ilimitada.
Tal concepção sofreu sérias reações, dentre as quais se destacam: Proudhon, que, considera a propriedade individual "um roubo"; Marx, ao pregar a destruição da propriedade privada; e Comte, que vem aplainar a base da funcionalidade da propriedade, ainda que privada.
Apesar de tais reações, o direito de propriedade continua hoje com seu cunho individualista, embora limitações busquem melhor adequá-lo ao bem-estar social.
3.FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: PRINCIPAIS CONTRIBUIÇÕES DOUTRINÁRIAS
Não há que se negar que o conceito de função social da propriedade, ainda que seja, de certa forma, recente em nosso ordenamento, recebeu relevantes contribuições da Igreja medieval e sua doutrina. Conforme bem explicitado por Telga de Araújo, no seu excelente trabalho "Função Social Da Propriedade", (in Enciclopédia Saraiva de Direito, v.39, p. 7, 1977)
"desde Santo Ambrósio, propugnando por uma sociedade mais justa com a propriedade comum, ou Santo Agostinho, condenando o abuso do homem em relação aos bens dados por Deus, e Santo Tomás de Aquino, que vê na propriedade um direito natural que deve ser exercido com vistas ao bonum commune, até aos sumos pontífices que afinal estabeleceram as diretrizes do pensamento católico sobre a propriedade, sempre em todas as oportunidades, a Igreja apreciou a questão objetivando humanizar o tratamento legislativo e político do problema".
O momento propulsor da teorização da Igreja acerca deste assunto deu-se com a Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, quando se passou a discutir a contribuição ao bem comum, que deveria ser ensejada pelo uso da propriedade. Neste sentido, é a contribuição de São Tomás, ao pregar que, no concernente ao uso, o homem não deve possuir os bens exteriores como próprios, mas como comuns, de tal forma que facilmente os comunique nas necessidades dos outros.
Desta forma, prega a Igreja que a propriedade tem como característica intrínseca a função social, compreendendo o individual e o social, admitindo ainda a propriedade pública dos bens cuja apreensão individual configuraria um risco para o bem comum.
Tomando por plataforma as concepções da Igreja, Léon Duguit vem conceber a propriedade como sendo função social, pregando ainda a transformação da instituição jurídica da propriedade, postura que se queda perfeitamente coerente com sua doutrina de negação dos direitos subjetivos. Para o insigne francês, alguém na situação jurídica de proprietário teria a incumbência de empregá-la no incremento da riqueza e do bem comum.
Ele ainda enxerga a referida transformação como uma socialização da noção de propriedade, posto que, no seu entender, deixa esta de ser um direito do indivíduo para verter-se em função social; é cada dia mais cerceada, tendo em vista a ampliação do número de casos em que deve ser a sociedade juridicamente protegida frente à propriedade.
É oportuno salientar que contra esta ideação, levanta-se Orlando Gomes, apregoando que serve ela apenas para esconder a substância da propriedade capitalista, ao considerar a atividade do produtor de riqueza como uma profissão no interesse geral.
A concepção de propriedade de Duguit revelou-se interessante ao regime fascista italiano, posto que a negação de direitos subjetivos, individuais, e a conseqüente concepção de só haver deveres em relação à sociedade, afigurou-se altamente conveniente a um regime totalitarista, na medida em que o Estado, no sistema em tela, representava a encarnação da sociedade.
Vejamos o art. 42 daquela Constituição Italiana, in verbis: "A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem ao Estado, aos entes públicos ou privados. A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei que determina seus modos de aquisição, gozo e limites com o escopo de assegurar-lhes a função social e torná-la acessível a todos". Assim, temos que a atribuição à propriedade de um conceito juridicamente posto de função social tornou-se uma ferramenta ideológica de sustentação daquele regime.
Juristas italianos ainda construíram a doutrina no sentido de caracterizar a função social como um limite interno, positivo, configurando um fazer. A questão da determinação da função social é respondida como o exercício da propriedade em conformidade com a política econômico-social adotada pelo governo, e definida pela estrutura corporativa. Temos então que a concepção fascista de função social da propriedade, embora discutível em seus fins, afigura-se como uma grande contribuição ao atual conceito deste instituto.
4. A INCLUSÃO DA FUNÇÃO SOCIAL NO DIREITO DE PROPRIEDADE
O evolucionar histórico dos institutos da propriedade e de sua função social acabaram por desaguar, juntamente com o Direito Civil em geral, em seara Constitucional. Destarte, o Código Civil deixa o centro das atenções no estudo do tema trazido à baila, cedendo lugar às normas superiores, o que decorre do princípio de supremacia da Constituição.
Tal fenômeno pôde ser observado na Constituição do México de 1917, que inseria em seu art. 27 que "A Nação terá, a todo tempo, o direito de impor à propriedade privada as determinações ditadas pelo interesse público [...]".
Também a Constituição da Alemanha de 1919 - Constituição de Weimar trouxe, em seu art. 153 que "A propriedade obriga e seu uso e exercício devem ao mesmo tempo representar uma função no interesse social".
No Brasil, a ideação arrolada entrou em nosso cotidiano jurídico com a Constituição de 1946, dada a interrupção do Estado Novo, pois, embora houvesse disposição constitucional acerca da regulação legal da propriedade, a vontade do regime ditatorial prevalecia em todas as ocasiões. Somente em 1967, apareceu textualmente a função social, como princípio de ordem econômica.
Atualmente, nossa Lex Fundamentalis, além de inserir a função social da propriedade no capítulo concernente a direitos e garantias individuais, plasma-o como princípio de ordem econômica, subdividindo seus efeitos conforme seja a propriedade urbana ou rural, o que configura uma inovação da Constituição vigente.
Neste contexto, foi desenhado o novo Código Civil, em especial seu art. 1.228, ao prever, em parágrafos inovadores, a função social da propriedade. De lapidar redação, o § 1.º estabelece que "O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas." Também digno de transcrição o § 2.º: "São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem."
Tais disposições vêm conformar-se de acordo com os princípios fundamentais da nova Lei Civil, em especial o Princípio da Socialidade. Nas palavras do ilustre coordenador-geral da Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, Professor Miguel Reale, em seu artigo "Visão geral do novo Código Civil",
"é constante o objetivo do novo Código no sentido de superar o manifesto caráter individualista da Lei vigente, feita para um país ainda eminentemente agrícola, com cerca de 80% da população no campo. Hoje em dia, vive o povo brasileiro nas cidades, na mesma proporção de 80%, o que representa uma alteração de 180 graus na mentalidade reinante, inclusive em razão dos meios de comunicação, como o rádio e a televisão. Daí, o predomínio do social sobre o individual".
Vemos aí claramente a inserção da propriedade nas limitações exigidas pelo bem da sociedade, o que não deixa de afigurar-se como uma manifestação mais palpável da própria publicização do Direito Civil.
Em suma, pauta-se claro que a propriedade deverá direcionar-se para o bem comum, qualquer que seja a propriedade. Sempre haverá função social da propriedade, mais ou menos relevante, porém a variável instala-se no tipo de destinação que deverá ser dado ao uso da coisa.
Outro ponto importante consubstancia-se em considerar-se a função social i) como um objetivo ao direito de propriedade, ou seja, algo que lhe é exterior, ou ii) um elemento desse mesmo direito, um requisito intrínseco necessário à sua própria existência. A doutrina mais atual, à qual nos filiamos, inclina-se a aceitar que a função social da propriedade é parte integrante da propriedade: em não havendo, a propriedade deixa de ser protegida juridicamente, por fim, desaparecendo o direito. No mesmo sentido, manifesta-se José Afonso da Silva (1999,286): "a função social se manifesta na própria configuração estrutural do direito de propriedade, pondo-se concretamente como elemento qualificante na predeterminação dos modos de aquisição, gozo e utilização dos bens".
Sendo assim, reiteramos que não há que se falar em propriedade sem que tal direito esteja imbuído de uma destinação - ou função - social, elemento este integrante e necessário para sua própria existência. Qualquer tentativa de utilizar-se deste direito para fins egoísticos e danosos à coletividade deverá ser prontamente cerceada.
5.CONCLUSÃO
Considerando o evolver do conceito de propriedade através do tempo, é de deduzir-se que, cada vez com maior intensidade, a propriedade vai deixando de ser um direito pleno e ilimitado.
Desde tempos imemoriais, tal direito, outrora tido por absoluto, vai sendo paulatinamente cerceado, mormente no que diz respeito à função social da propriedade, chegando à Idade Moderna com um caráter ainda individualista, porém, muito menos aviltante ao bem estar coletivo.
Grande salto dessa teorização se deu na Idade Média, com a conformação inicial do conceito da função social da propriedade, contribuição palmar da Igreja, seus filósofos e pontífices, que consideram dever a propriedade ser exercida com vistas ao bonum commune.
Apoiando-se nesta contribuição, Duguit plasma sua própria teoria, de ser a propriedade uma função social, ao revés de ter uma. Imputa-lhe, ademais, um caráter socializante.
Tal concepção foi aproveitada pelo regime fascista italiano, posto que atendia a seus interesses. A atividade jurídica peninsular foi a intuição da limitação interna do direito de propriedade, sua grande contribuição à atualidade.
Proporcionalmente caminharam a restrição da propriedade e a ampliação da sua função social, até que se encontraram no âmbito constitucional, figurando hoje, no Brasil, entre os direitos e garantias individuais.
Tal tendência inclui-se na configuração do novo Código Civil, ao acolher expressamente a função social da propriedade, o que consagra, na verdade, a concretização do princípio da Socialidade, reflexo mesmo da publicização do Direito Civil;
Hodiernamente, a melhor doutrina entende que a função social da propriedade é elemento essencial à propriedade. Tal entendimento atesta o grau de importância e de correlação máxima entre ambos os conceitos: não há propriedade sem atendimento à função social.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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