Justiça restaurativa: um sistema moderno de resolução de conflitos

27/01/2019 às 18:42
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Este artigo analisará a implementação da justiça restaurativa como solução ao caos observado no sistema carcerário Brasileiro contemporâneo. Ademais, será trazida a acepção de “justiça restaurativa” e os Princípios norteadores de sua aplicação.

 

Autor: DANIEL NAZUTI DA SILVEIRA[i]

Orientadora: Profª. Ms. Ana Paula de Pétta[ii]

 

Resumo: Este artigo analisará a implementação da justiça restaurativa como solução ao caos observado no sistema carcerário Brasileiro hodierno. Primeiramente, será demonstrado através de dados governamentais a atual situação dos presídios. Posteriormente, será trazida a definição de “justiça restaurativa” e os Princípios norteadores de sua aplicação, por intermédio da Resolução 2002/12 da ONU(Organização da Nações Unidas). Na continuação, serão apontados dois modelos restaurativos implementados no Brasil, um modelo que não obteve o corolário esperado, mais conhecido como “JECRIM”(Juizados Especiais Criminais), positivado pela Lei 9.099/95. E, outro, que está conseguindo obter “algum” êxito, mais conhecido como “justiça terapêutica”. Na sequência, dar-se-á início as opiniões deste Autor sobre a possibilidade de aplicação do procedimento restaurativo nos crimes de maior potencial ofensivo, e, também, sobre a “real” necessidade da participação da vítima em todos os métodos do processo restaurativo. Destarte, a possibilidade da implementação de um modelo restaurativo que seja capaz de mudar o paradigma “crime-encarceramento” que tanto afeta o Brasil.

Palavras-chave: Justiça Restaurativa – Justiça Terapêutica – Sistema Carcerário Brasileiro – Direito Penal.

Abstract: This scientific article will analyze the implementation of restorative justice as a solution to the actual scenario of chaos present in the brazilian prison system. First, it will be demonstrate through government data the current situation of prisons. Subsequently, the definition of "restorative justice" and the Guiding Principles of its application will be brought, through UN(United Nations) Resolution 2002/12. In the continuation, two restorative models implemented in Brazil will be mentioned, a model that did not obtain the expected result, known as "JECRIM" (Juizados Especiais Criminais), created by Law 9.099/95. And, another one, that is succeeding, known as "therapeutic justice". Following this, the author's opinions will be initiated on the possibility of applying the restorative procedure in crimes with greater offensive potential, and on the effective need for a victim participation in all restorative processes. This approach will allow the possibility of implementing a restorative model that could change the paradigm "crime-incarceration" that affects Brazil so badly.

Keywords: Restorative Justice - Therapeutic Justice - Brazilian Prison System - Criminal Law.

Sumário: 1.Introdução; 2.Sistema carcerário Brasileiro; 3.Justiça restaurativa; 4.Princípios norteadores da justiça restaurativa; 5.Tentativa fracassada de aplicar um modelo restaurativo no Brasil; 6.Justiça terapêutica; 7. Limitação ao sistema de justiça restaurativa; 8.Necessidade da presença da vítima no procedimento restaurativo; 9.Conclusão;10.Referências bibliográficas; Notas de fim.

1.Introdução

Um dos temas mais comentados na atualidade é a balbúrdia experimentada no sistema carcerário Brasileiro, ainda mais, depois das rebeliões ocorridas em 2017, após duas facções criminosas se declararem inimigas.

Está claro que o Estado perdeu o controle das penitenciárias do País, ademais, viu as mesmas serem dominadas pelas facções criminosas.

O Estado age como se aqueles que adentram ao sistema penitenciário, não são seres humanos. Além disso, o ente estatal não atenta-se que em alguma ocasião aquele encarcerado voltará à sociedade, ou melhor, não se importa com a ressocialização do mesmo.

Os presídios Brasileiros estão com déficit de vagas e o índice de criminalidade só aumenta, sendo assim, não resta outra solução senão a aplicação de um modelo que evite ao máximo o encarceramento.

O presente trabalho irá trazer um modelo de resolução de conflitos denominado  “justiça restaurativa”, que evita ao máximo o encarceramento, buscando um acordo entre a vítima e o ofensor, e, consequentemente, reintegrando as partes à sociedade.

Um modelo de justiça restaurativa foi adotado no Brasil através da Lei 9.099/95, mais conhecida como Lei do JECRIM(Juizados Especiais Criminais), porém, com limitações que não a torna eficiente no que tange à diminuição da população carcerária.

Outro modelo adotado é a denominada “justiça terapêutica”, que mesmo sendo eficiente no tratamento e recuperação de viciados em drogas, não está sendo eficiente na redução da massa prisional.

O modelo tradicional de justiça restaurativa também conta com algumas limitações que restringem sua aplicação, sendo demonstrado, no presente trabalho, algumas soluções para que tenha plena eficácia no ordenamento jurídico Brasileiro.

2.Sistema carcerário Brasileiro

O DEPEN(Departamento Penitenciário Nacional), órgão vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, divulgando um recente levantamento Nacional de Informações Penitenciárias(INFOPEN) com dados referentes a todo o ano de 2015 e o primeiro semestre de 2016, estima que atualmente o Brasil possua 726.712 mil presos para 390,221 mil vagas, um déficit de 336.491 mil vagas. Ademais, 64% da população prisional é composta por pessoas negras, 75% sequer chegou ao ensino médio, 40% são presos provisórios, 28% são de presos relacionados com tráfico de drogas, 37% relacionados a roubos e furtos e somente 11% a homicídios e para finalizar, 70% dos presos, ao sair da prisão, voltam a delinquir.(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2017)

Analisando os dados supracitados, pode-se dizer que as elevadas taxas de prisão provisória(40%) demonstram tanto uma morosidade da Justiça quanto um forte conservadorismo do Judiciário Brasileiro. Ademais, verifica-se que o Judiciário atua atendendo uma espécie de clamor público, ou melhor, estamos vivendo um “populismo penal”.

No que tange a composição étnico-racial predominante no sistema carcerário, a raça negra predomina, sendo assim: Será que o número de negros que cometem delitos é maior? Ou é mais fácil criminalizar um negro? (teoria da rotulação social)

Em relação as modalidades de crime, verifica-se que 65% dos presos praticaram tráfico de drogas, roubos e furtos e somente 11% homicídios.

Quanto à escolaridade, 75% dos presos sequer chegaram ao ensino médio. Portanto, percebe-se que o problema da educação, ou melhor, da ausência dela, é um dos principais causadores do atual caos carcerário. Senão vejamos:

“De acordo com o relatório Education at a Glance 2015 da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil gastou cerca de 3,4 mil dólares anuais por cada aluno da rede de educação básica. Enquanto que a média global ultrapassa os 9,3 mil dólares por estudante dos anos iniciais.”(BRETAS, 2016)

Outro ponto relevante é sobre a ineficácia da “tal ressocialização do sistema penitenciário Brasileiro”. Segundo dados da Anistia Internacional: “sete em cada 10 presos voltam a praticar crimes.”(CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA,2018). Sobre isso, leciona Foucault(2008, p. 221):

“As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta (...) a prisão, consequentemente, em vez de devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população delinquentes perigosos”.

Uma das soluções seria o investimento em políticas públicas de educação, porém, os frutos seriam colhidos a longo prazo. Deste modo, em um País imediatista e corrupto como o nosso, dificilmente algum Administrador Público irá realizar.

Sendo assim, não há outra solução senão a aplicação do modelo de resolução de conflitos denominado “Justiça Restaurativa”. Este modelo foge do direito penal tradicional punitivo, e, consequentemente, contribuirá para a diminuição da população carcerária.

3.Justiça Restaurativa

O sistema de “Justiça Restaurativa” é um sistema de composição que foca nos danos que a vítima sofreu, na conduta delituosa do ofensor, no que representa aquele delito para a comunidade, assim como nas possíveis soluções, surgindo, um dever de reparação do dano diretamente entre o ofensor e o ofendido, sem a aplicação do direito penal tradicional. Sendo assim, um sistema de resolução de conflitos de menor formalidade, mais dinâmico e que foge do costumeiro “delito-punição”. Conforme leciona Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, na apresentação do livro “JUSTIÇA RESTAURATIVA E ABOLICIONISMO PENAL - contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil”: (ACHUTTI, 2016, p.35)

“A proposta de uma justiça restaurativa tem por base um quadro de reflexão sobre os conflitos, os crimes e as respostas aos crimes, mais que uma teoria ou uma filosofia de justiça. Está na origem de diversos programas, como mediação vítima e acusado e conferências familiares ou comunitárias. Trata-se de uma forma inovadora de lidar com conflitos criminais, que leva todos os envolvidos a discutir e lidar, coletivamente, com o dano causado, em conformidade com uma concepção de justiça dialogicamente construída.”

Trata-se de um novo modelo destinado ao processo penal, buscando restaurar os elos enfraquecidos com o fato criminoso através da comunicação entre o ofensor, ofendido ou quem quer tenha sido prejudicado, e, assim, reintegrar as partes à sociedade.

4. Princípios norteadores da Justiça Restaurativa

Não há a possibilidade de conceituar os Princípios do sistema de Justiça Restaurativa sem citar a Resolução da ONU 2002/12. Importante ressaltar que o Brasil implementou tal procedimento através da resolução 225/2016-CNJ, ademais, os princípios da resolução abaixo, servem apenas de parâmetro, não sendo de compulsória aplicação pelos Estados-membros.

Resolução da ONU 2002/12 é segmentada em: “I – Terminologia, II. Utilização de Programas de Justiça Restaurativa, III - Operação dos Programas Restaurativos, IV. Desenvolvimento Contínuo de Programas de Justiça Restaurativa e V. Cláusula de Ressalva”, contendo 23 princípios.

I - Terminologia

Justiça restaurativa é um método de resolução de conflitos extrajudicial que tem como objetivo reconstruir os liames quebrados pelo fato ocorrido. Ademais, definindo como partes não somente o ofensor e o ofendido, mas outras pessoas que foram afetadas pelo crime. Estabelece também a figura do facilitador, que nada mais é que a pessoa encarregada de tentar buscar o “acordo” entre o ofendido e o ofensor. Outro tema relevante, está no rol das práticas estabelecidas pelo texto da resolução, sendo elas:

-Mediação vítima-ofensor: É o modelo ideal de prática restaurativa e iniciará com o convite do mediador(facilitador) às partes envolvidas no feito, visando um acordo com algum tipo de “pena extrajudicial” ao ofensor. O facilitador deverá agir discretamente, deixando as partes deliberarem sobre a situação. Na realidade, o facilitador apenas oportunizará a comunicação. A mediação processar-se-á diretamente(ocorrer através de uma reunião entre o ofensor e o ofendido), ou indiretamente(com o facilitador fazendo um papel de “emissário” do ofendido e do ofensor). A mediação poderá ocorrer somente entre o ofensor e o ofendido, ou, com a participação de membros da comunidade;

-Conciliação: Este modelo de prática restaurativa se iniciará com uma reunião entre as partes envolvidas, a única divergência para a mediação, é que neste caso poderá o conciliador(facilitador) aventar soluções para o caso, sendo defeso qualquer tipo de pressão ou coação às partes;

-A reunião familiar ou comunitária(conferencing): Tipo de modelo de prática restaurativa marcado por conferências(reuniões) entre o ofensor, ofendido e os membros de suas comunidades com a finalidade de um acordo e reparação dos danos causados, na maioria dos casos, por ação da polícia ou do Ministério Público, em crimes cometidos por menores;

-Círculos decisórios(sentencing circles): Este modelo de prática restaurativa é um pouco mais formal que os outros, além da participação do ofensor e do ofendido, englobará membros ativos da comunidade que exercerão um papel relevante durante o processo. Ademais, contará com a participação de um Juiz criminal, que funcionará como o “facilitador”. Trata-se de um modelo mais solene, que demandará de número superior de reuniões que o modelo tradicional de justiça restaurativa. Para este modelo, é necessária uma comunidade operante e unida, algo impensável na contemporaneidade, principalmente nas zonas urbana. Conforme disposto nos itens 1 e 2 da resolução: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“1. Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos.

2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).”

O “resultado restaurativo” nada mais é do que o sucedido do procedimento restaurativo, prevendo assim, a eventual “pena” que será aplicada ao ofensor para que ocorra a composição entre as partes, e, consequentemente, reintegrá-las à sociedade. De acordo com o explanado no item 3 da Resolução: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“3. Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo. Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem assim promover a reintegração da vítima e do ofensor.”

As partes de um processo restaurativo não, necessariamente, serão o ofensor e o ofendido, podendo participar qualquer outra pessoa afetada. Conforme o item 4 da presente resolução: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “4. Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo restaurativo.”

O “facilitador” será a pessoa que intentará e conduzirá uma eventual composição entre as partes, agindo como um mediador. Ademais, será de suma importância que o facilitador seja o mais moderado possível, deixando às partes o papel de encontrarem um desfecho para o caso. Assim explica o item 5 da resolução: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “5. Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo.”

II. Utilização de Programas de Justiça Restaurativa

O programa de justiça restaurativa pode ser aplicado em qualquer fase do processo criminal, podendo anteceder a acusação, ocorrer antes ou após a sentença, ou mesmo, no curso da própria execução da pena. Assim disposto no item 6: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “6. Os programas de justiça restaurativa podem ser usados em qualquer estágio do sistema de justiça criminal, de acordo com a legislação nacional.”

A vítima e o ofensor devem participar de forma voluntária do procedimento restaurativo. Estes serão estimulados a um “acordo” que satisfaça ambos, com o ofensor assumindo sua responsabilidade e aceitando cumprir a obrigação acordada. Outro ponto relevante é sobre as obrigações ao ofensor, devendo estas serem proporcionais ao delito cometido, não podendo ser obrigações inconstitucionais, principalmente no que tange a “dignidade da pessoa humana”. Sobre isso, o item 7 da resolução dispõe: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

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“7. Processos restaurativos devem ser utilizados somente quando houver prova suficiente de autoria para denunciar o ofensor e com o consentimento livre e voluntário da vítima e do ofensor. A vítima e o ofensor devem poder revogar esse consentimento a qualquer momento, durante o processo. Os acordos só poderão ser pactuados voluntariamente e devem conter somente obrigações razoáveis e proporcionais.”

Não havendo concordância das partes sobre o sucedido, não haverá aplicação do procedimento restaurativo. Além disso, a assunção da autoria pelo ofensor não poderá ser eventualmente utilizada como confissão de culpa caso o processo restaurativo não tenha êxito. Por isso, para que seja salvaguardado o princípio da presunção de inocência, é imprescindível que o procedimento restaurativo não seja realizado por um juiz, ainda mais, o competente para julgar a causa. Assim, de acordo com o item 8: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “8. A vítima e o ofensor devem normalmente concordar sobre os fatos essenciais do caso sendo isso um dos fundamentos do processo restaurativo. A participação do ofensor não deverá ser usada como prova de admissão de culpa em processo judicial ulterior.”

Todas as "desigualdades" deverão ser levadas em conta durante o processo restaurativo. Trata-se de um procedimento complexo, pois estará lidando com pessoas diferentes(condições sociais, culturais e etc.). Deve-se assim, dar a devida relevância as opiniões emitidas pelas partes sobre o cabimento da aplicação do processo restaurativo no caso concreto. Conforme disposto no item 9: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “9. As disparidades que impliquem em desequilíbrios, assim como as diferenças culturais entre as partes, devem ser levadas em consideração ao se derivar e conduzir um caso no processo restaurativo.”

A segurança das partes envolvidas é primordial para o procedimento restaurativo, em que, qualquer indicio de um mau acontecimento deverá ser levado em conta durante o procedimento. Como citado no item 10: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “10. A segurança das partes deverá ser considerada ao se derivar qualquer caso ao processo restaurativo e durante sua condução.”

Havendo o insucesso do processo restaurativo, este deverá ser enviado para a autoridade criminal competente. Ademais, as autoridades devem incentivar o ofensor à assunção do cometimento do ilícito, apoiando a reintegração das partes à sociedade. Assim disposto no item 11: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“11. Quando não for indicado ou possível o processo restaurativo, o caso deve ser encaminhado às autoridades do sistema de justiça criminal para a prestação jurisdicional sem delonga. Em tais casos, deverão ainda assim as autoridades estimular o ofensor a responsabilizar-se frente à vítima e à comunidade e apoiar a reintegração da vítima e do ofensor à comunidade.”

III - Operação dos Programas Restaurativos

Os Estados-membros da ONU que adotarem o procedimento da Justiça Restaurativa, uma vez que não possui força vinculante, devem regulamentar tal método. Além disso, deve ser estabelecido os requisitos necessários para que o fato seja levado ao procedimento restaurativo. Outro ponto fundamental, é o ato ulterior ao processo restaurativo, no sentido de que haja total cumprimento das obrigações assumidas pelo ofensor e a ressocialização do ofensor e ofendido na comunidade. Os facilitadores são muito importantes para o processo, por esse motivo, devem ser capacitados para exercerem tal incumbência. Ao regulamentar o procedimento restaurativo, os Estados-Membros deverão criar modos de proceder baseados na ética. Vejamos o que diz o item 12: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“12. Os Estados membros devem estudar o estabelecimento de diretrizes e padrões, na legislação, quando necessário, que regulem a adoção de programas de justiça restaurativa. Tais diretrizes e padrões devem observar os princípios básicos estabelecidos no presente instrumento e devem incluir, entre outros:

a) As condições para encaminhamento de casos para os programas de justiça restaurativos;

b) O procedimento posterior ao processo restaurativo;

c) A qualificação, o treinamento e a avaliação dos facilitadores;

d) O gerenciamento dos programas de justiça restaurativa;

e) Padrões de competência e códigos de conduta regulamentando a operação dos programas de justiça restaurativa.”

O procedimento restaurativo deverá seguir as garantias processuais previstas em nosso ordenamento jurídico, assim sendo: Contraditório, ampla defesa, isonomia processual, assistência de advogado e, caso envolva menores, à assistência de um responsável legal. Ademais, é fundamental que as partes não sejam compelidas a participar do processo restaurativo. Conforme prevê o item abaixo: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“13. As garantias processuais fundamentais que assegurem tratamento justo ao ofensor e à vítima devem ser aplicadas aos programas de justiça restaurativa e particularmente aos processos restaurativos;

a) Em conformidade com o Direito nacional, a vítima e o ofensor devem ter o direito à assistência jurídica sobre o processo restaurativo e, quando necessário, tradução e/ou interpretação. Menores deverão, além disso, ter a assistência dos pais ou responsáveis legais.

b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes deverão ser plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as possíveis conseqüências de sua decisão;

c) Nem a vítima nem o ofensor deverão ser coagidos ou induzidos por meios ilícitos a participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do processo.”

Um dos pontos fundamentais do processo restaurativo é a “sigilosidade” dos atos, fazendo com que as partes comprometidas tenham destemor de participar do procedimento, sabendo que o que ali foi conversado não será aproveitado em eventuais processos judiciais, tornando mais produtivo o concílio, e, assim, com grande probabilidade de um desfecho positivo. Ressalta-se que o procedimento restaurativo vai contra o que determina o Código de Processo Penal(CPP) no que tange a publicidade dos atos, sendo que nesta, a regra é que sejam públicos os atos do processo judicial, enquanto que naquela, a regra é o sigilo dos atos, salvo se as partes autorizarem ou se determinado pelo ordenamento local. Conforme dispõe o item citado adiante: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “14. As discussões no procedimento restaurativo não conduzidas publicamente devem ser confidenciais, e não devem ser divulgadas, exceto se consentirem as partes ou se determinado pela legislação nacional.”

Todos os acordos obtidos no procedimento restaurativo, dependendo da situação, ou melhor, da legislação territorial, deverá passar pelo crivo do poder judiciário. O que foi acordado no processo restaurativo deverá ter natureza igual de uma decisão judicial. Sendo assim, após homologada judicialmente, não poderá haver ação com a mesma causa de pedir e mesmo objeto na justiça criminal, pois estaria configurando “bis in idem”. Assim observado no item 15: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“15. Os resultados dos acordos oriundos de programas de justiça restaurativa deverão, quando apropriado, ser judicialmente supervisionados ou incorporados às decisões ou julgamentos, de modo a que tenham o mesmo status de qualquer decisão ou julgamento judicial, precluindo ulterior ação penal em relação aos mesmos fatos.”

Nem todas as tentativas de acordo na justiça restaurativa obterão êxito, assim, caso não haja uma composição entre as partes, a ocorrência será remetida ao órgão judicial competente para rapidamente ser apreciada. Ademais, o que foi utilizado durante o processo restaurativo não poderá ser usado contra o ofensor na instrução criminal, pois violaria o princípio da presunção da inocência. Senão vejamos: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“16. Quando não houver acordo entre as partes, o caso deverá retornar ao procedimento convencional da justiça criminal e ser decidido sem delonga. O insucesso do processo restaurativo não poderá, por si, usado no processo criminal subseqüente.”

Caso o acordo realizado pelas partes no procedimento restaurativo não for cumprido, o fato deverá novamente voltar ao processo restaurativo. Porém, caso haja previsão na lei local, a ocorrência deverá ser encaminhada ao poder judiciário para célere apreciação. Além disso, não poderá ser utilizado o insucesso no procedimento restaurativo como motivo de aumento da sanção na esfera criminal. Assim disposto no item 17: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“17. A não implementação do acordo feito no processo restaurativo deve ensejar o retorno do caso ao programa restaurativo, ou, se assim dispuser a lei nacional, ao sistema formal de justiça criminal para que se decida, sem demora, a respeito. A não implementação de um acordo extrajudicial não deverá ser usado como justificativa para uma pena mais severa no processo criminal subseqüente.”

Sobre o papel dos facilitadores, é muito importante que eles sejam discretos, deixando as partes livres para decidirem sobre a lida, apenas intervindo em atos essenciais. Devem atuar de forma equânime e respeitosa com as partes, sempre visando uma solução que agrade a todos. Conforme o item a seguir explica: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “18. Os facilitadores devem atuar de forma imparcial, com o devido respeito à dignidade das partes. Nessa função, os facilitadores devem assegurar o respeito mútuo entre as partes e capacita-las a encontrar a solução cabível entre elas.”

O facilitador, durante o procedimento, deve ter o conhecimento de que irá lidar com pessoas de idade, caráter, cultura e condição social diferentes, sendo assim, deverá estar qualificado para o encargo atribuído. Assim dispõe o item 19: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “19. Os facilitadores devem ter uma boa compreensão das culturas regionais e das comunidades e, sempre que possível, serem capacitados antes de assumir a função.”

IV. Desenvolvimento Contínuo de Programas de Justiça Restaurativa

Os Países-membros da ONU que pretendem acolher o procedimento da justiça restaurativa em seus países, deverão promover sua utilização. Sendo assim, o Brasil, através da resolução 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça(CNJ), positivou a implementação e difusão da prática do procedimento restaurativo no poder judiciário. Ademais, será de competência do CNJ, com auxílio da sociedade, dentre outras incumbências, elaborar um projeto com a finalidade de estimular a Justiça Restaurativa no Brasil. Conforme explanado nos itens 20, 21 e 22 da resolução: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018)

“20. Os Estados Membros devem buscar a formulação de estratégias e políticas nacionais objetivando o desenvolvimento da justiça restaurativa e a promoção de uma cultura favorável ao uso da justiça restaurativa pelas autoridades de segurança e das autoridades judiciais e sociais, bem assim em nível das comunidades locais.”

“21. Deve haver consulta regular entre as autoridades do sistema de justiça criminal e administradores dos programas de justiça restaurativa para se desenvolver um entendimento comum e para ampliar a efetividade dos procedimentos e resultados restaurativos, de modo a aumentar a utilização dos programas restaurativos, bem assim para explorar os caminhos para a incorporação das práticas restaurativas na atuação da justiça criminal.”

“22. Os Estados Membros, em adequada cooperação com a sociedade civil, deve promover a pesquisa e a monitoração dos programas restaurativos para avaliar o alcance que eles tem em termos de resultados restaurativos, de como eles servem como um complemento ou uma alternativa ao processo criminal convencional, e se proporcionam resultados positivos para todas as partes. Os procedimentos restaurativos podem ser modificados na sua forma concreta periodicamente. Os Estados Membros devem por isso estimular avaliações e modificações de tais programas. Os resultados das pesquisas e avaliações devem orientar o aperfeiçoamento do gerenciamento e desenvolvimento dos programas.”

V. Cláusula de Ressalva

A presente resolução traz apenas princípios básicos, que podem ou não ser considerados pelos Estados-membros, sendo assim, caso algum dos princípios afete direitos das partes envolvidas perante o Direito nacional ou internacional, poderá ser desconsiderada. Assim disposto no item que sucede: (RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12,2018) “23. Nada que conste desses princípios básicos deverá afetar quaisquer direitos de um ofensor ou uma vítima que tenham sido estabelecidos no Direito Nacional e Internacional.”

5. Tentativa fracassada de aplicar um modelo restaurativo no Brasil

O direito penal Brasileiro, influenciado pela comunidade internacional, no que tange à aplicação da pena privativa de liberdade em último caso(ultima ratio), implementou a Lei 9.099/95, mais conhecida como a Lei do JECRIM (Juizados Especiais Criminais).

Trata-se de um rito processual aplicado às contravenções penais e crimes em que a pena máxima não ultrapasse 2 anos, mais conhecido como “crimes de menor potencial ofensivo”. Este rito é conhecido como “sumaríssimo” e orientando-se “pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.” (BRASIL. LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995, Art.62)

Os termos que nos remetem à Justiça Restaurativa são denominados “composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo(sursis-processual)”, respectivamente previstos nos artigos: 72, 76 e 89 do presente ordenamento em estudo: (BRASIL. LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995)

“Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.”

(...)

“Art. 76. Havendo representação ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta”

(...)

“Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).”

Ademais, está igualmente previsto o rol das obrigações a que o ofensor poderá ser submetido, no caso de anuir os termos dos acordos. Disposto nos §§ 1º e 2º do art. 89: (BRASIL. LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995)

 (...) “§ 1º Aceita a proposta pelo acusado e seu defensor, na presença do Juiz, este, recebendo a denúncia, poderá suspender o processo, submetendo o acusado a período de prova, sob as seguintes condições:

         I - reparação do dano, salvo impossibilidade de fazê-lo;

        II - proibição de freqüentar determinados lugares;

        III - proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do Juiz;

        IV - comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e justificar suas atividades.

        § 2º O Juiz poderá especificar outras condições a que fica subordinada a suspensão, desde que adequadas ao fato e à situação pessoal do acusado.”(...)

Conforme o dispositivo supracitado, percebe-se que a Lei 9.099/95 trouxe três regras que visam afastar o encarceramento do ofensor. São elas: “composição civil, transação penal e suspensão condicional do processo(sursis-processual)”.

Apesar de ter como meta o diálogo entre as partes, os Juizados Especiais Criminais, não trouxeram o resultado esperado.

No que tange a competência dos Juizados, sua aplicação será à contravenção penal ou ao crime com pena máxima de até dois anos. Trata-se de algo limitador, ainda mais quando o preceito secundário em alguns delitos são desproporcionais. Vejamos um exemplo disso no artigo 311 do Código Penal: (BRASIL. LEI Nº 2.848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940) “Art. 311.Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento. Pena: reclusão, de três a seis anos, e multa.”

Tentando reprimir crimes de roubo e furto de veículos, receptação, desmanche e revenda ilegal de peças, foi criado o dispositivo acima mencionado. Acontece que, os motoristas na cidade de São Paulo sofrem restrições de circulação em seus veículos um dia por semana, determinado pelo último número da placa e denominado de “rodízio veicular”. Com o intuito de burlar a norma, alguns motoristas colocam uma fita isolante no último número da placa para alterá-lo. Sendo assim, se levado ao pé da letra o artigo 311 do código penal, esse motorista alterou sinal identificador de veículo automotor, uma vez que já pacificado pelos tribunais superiores haver tipicidade nesse caso, responderá o motorista infrator pelo delito do artigo 311 do código penal, com pena de reclusão, de três a seis anos.

Assim, caso a competência dos juizados fosse determinada pela gravidade do delito ou por uma pena máxima maior do que a vigente atualmente(2 anos), o agente que coloca fita isolante na placa identificadora de seu veículo para burlar o “rodízio veicular”, poderia responder com os benefícios da Lei 9.099/95. 

A parte ofendida(vítima) é muito importante para o procedimento restaurativo, mas não é o que vemos na Lei do JECRIM, onde a vítima não tem uma participação ativa, sendo que na “composição civil” está previsto somente os danos materiais, já nos procedimentos de transação penal e sursis-processual, o acordo é realizado diretamente pelo Ministério Público e ofensor, descaracterizando o “processo restaurativo” e ofuscando o papel da vítima.

Outro ponto relevante é a desqualificação dos promotores no âmbito conciliatório, sendo necessário promover o treinamento dos mesmos para compreender o sistema dos juizados.

Quanto aos Juízes, temos um poder judiciário extremamente punitivo, sendo que, a função desse poder é limitar o poder de punir do Estado, conforme explica Zaffaroni, em entrevista, ao ser questionado se cabe ao poder judiciário limitar o poder punitivo: (ITO,2009)

“O Judiciário é indispensável para isso. A contenção é feita pelos juízes. Sem limites, saímos do Estado de Direito e caímos em um Estado Policial. Fora de controle, as forças do poder punitivo praticam um massacre, um genocídio. O Direito Penal é indispensável à persistência do Estado de Direito, que não é feito uma vez e está pronto para sempre. Há uma luta permanente com o poder. O Estado de Polícia se confronta com o Estado de Direito no interior do próprio Estado de Direito. Estar perto do modelo ideal de Estado de Direito depende da força de contenção do Estado Policial.”

6. Justiça terapêutica

É perceptível que os termos “drogas” e “criminalidade” andam lado a lado na sociedade Brasileira contemporânea. Buscando uma solução para isso, foi criado um método de justiça restaurativa que está obtendo “algum” êxito no Brasil, o programa denominado “Justiça Terapêutica”.

Rio Grande do Sul, pioneiro dessa prática, e Goiás, são os Estados que possuem os programas mais bem estruturados do País.

Visando soluções para o alto número dos viciados em drogas, criou-se um sistema onde é oferecido ao agente que praticar delitos de menor potencial ofensivo e ao mesmo tempo for usuário e dependente de drogas e este crime for cometido por efeito das drogas ou anterior ao uso, mas sempre em razão do vício, tratamento como condição para a suspensão do processo ou da pena, ou na transação penal, quando o MP poderá propor penas restritiva de direitos que inclua a participação em cursos e seminários sobre drogas, com acompanhamento de psicólogos.

Importante ressaltar que deve haver uma correlação entre o delito praticado e a dependência química do infrator.

De acordo com a psicóloga coordenadora da equipe do Justiça terapêutica(TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS,2018) (...) “o Justiça Terapêutica atendeu mais de 3,2 mil pessoas, atualmente são cerca 560 pessoas mensalmente, e 84% dos participantes que aderiram e cumpriram regularmente o programa não se envolveram novamente em novas ações penais.”(...)

Demonstrando assim, ser possível com uma única medida evitar o encarceramento e ressocializar o infrator.

Porém, o sistema de justiça terapêutica, ainda não é visto com bons olhos pelos operadores jurídicos(conservadorismo), ademais, enfrentamos o mesmo problema da Lei do JECRIM, apenas abrangendo os crimes de menor potencial ofensivo.

7. Limitação ao sistema de justiça restaurativa

Começo este conteúdo com o seguinte questionamento: Por que não pode ser aplicada a justiça restaurativa aos crimes de maior potencial ofensivo?

Aliás, como definir um crime de “maior potencial ofensivo”?

Utilizando como base a Lei do JECRIM, um crime será considerado de maior potencial ofensivo quando a pena máxima do tipo penal for superior a 2 anos.

Não vejo nenhum empecilho para a aplicação da justiça restaurativa aos crimes com pena máxima superior a dois anos. Até em crimes considerados “graves” há esta possibilidade. Senão vejamos o disposto no artigo 121 do Código Penal: (BRASIL. LEI Nº 2.848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940)

Artigo 121 do Código Penal: “Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos.”

Como vemos, o artigo supracitado trata-se do crime mais conhecido como “homicídio”, ou seja, um crime contra a vida. Ademais, pelo seu preceito secundário nota-se ser um crime grave.

Aí vem a questão, é possível aplicar a justiça restaurativa a este crime?

Eu respondo que sim e vou explicar minha posição!

Temos, dentro do Código Penal, uma modalidade de homicídio doutrinariamente denominado de “homicídio privilegiado”, que nada mais é do que uma causa de diminuição de pena, mais precisamente no §1º do artigo 121: (BRASIL. LEI Nº 2.848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940) § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Analisando o tipo penal acima mencionado, imaginemos a seguinte situação: “Um pai, ao descobrir o autor do estupro de sua filha, resolve mata-lo”. Importante ressaltar, este pai jamais cometeu nenhum outro delito em sua vida, e, além de ser muito querido pela comunidade, é o alicerce da família.

Tipificando a conduta, ele cometeu o crime do caput do artigo 121 do Código Penal acima mencionado, porém, pelo fato da situação ter ocorrido em consequência do estupro de sua filha, este tipo de delito foi cometido “por motivo de relevante valor moral”, e o pai responderá com o privilégio do §1º do artigo 121 do Código Penal, com pena reduzida de “um sexto a um terço”.

Veja a situação: Como já explicado no início deste artigo, os presídios estão superlotados, não há um programa de ressocialização e a maioria dos agentes que adentram no sistema carcerário saem piores. Será que é plausível colocar na prisão um pai de família que jamais cometeu um delito na vida e é a base da família?

Nesse caso, não seria mais coerente aplicar o procedimento da Justiça Restaurativa?

Óbvio que esse pai deverá ter alguma “punição”, não estou falando que restará impune, mas que seja uma modalidade de “pena” que fuja do “tradicional encarceramento” existente em nosso País. Nesse caso, a pena de reclusão poderia ser substituída por medidas restritivas de direitos, pagamento de indenização à família do ofendido ou outra medida definida nos termos do procedimento restaurativo, cumuladas ou não.

8.Necessidade da presença da vítima no procedimento restaurativo

Conforme definição exteriorizada no início deste artigo, para o procedimento restaurativo obter êxito é essencial a participação do ofendido. Porém, será mesmo necessária a participação da vítima no procedimento restaurativo?

Resta claro que o ideal no procedimento restaurativo é a participação da vítima, ofensor e membros da comunidade que se sentirem prejudicados ou que exerçam papel de liderança na mesma. Contudo, entendo que para que a Justiça Restaurativa detenha sucesso, o papel da vítima deverá ser, em alguns casos, irrelevante. Sendo assim, acredito que a participação da vítima no procedimento restaurativo deverá se dividir em três modalidades:

1ºimpossível;

2ºreduzida;

3ºo Estado como vítima.

Antes de iniciar a explanação da participação da vítima no procedimento restaurativo, será exposta a classificação adotada por Benjamin Mendelsohn sobre o papel da vítima no delito: (apud FILHO, 2012, p. 76)

“A participação ou provocação da vítima: a) vítimas ideais (completamente inocentes); b) vítimas menos culpadas que os criminosos (ex ignorantia); c) vítimas tão culpadas quanto os criminosos (dupla suicida, aborto consentido, eutanásia); d) vítimas mais culpadas que os criminosos (vítimas por provocação que dão causa ao delito); e) vítimas como únicas culpadas (vítimas agressoras, simuladas e imaginárias).

No que tange a participação da vítima ser impossível no procedimento restaurativo, utilizarei o exemplo do “pai que matou o estuprador”. Se analisarmos a conduta do “estuprador”, e a classificação adotada por Mendelsohn, chegaremos à conclusão de que o “estuprador” se trata de uma “vítima mais culpada que o criminoso”.

Nesse caso, em que a vítima não existe mais, o procedimento será realizado entre o ofensor, representante estatal, membros que exerçam papel de liderança na comunidade e familiares do ofendido. Aliás, uma das punições ao ofensor poderia ser o pagamento de indenização à família do ofendido.

Já no caso de participação reduzida da vítima, posso citar o crime do artigo 171 do código penal: (BRASIL. LEI Nº 2.848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940)Art. 171 do Código Penal: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento.Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa”

O artigo supracitado é mais conhecido como “crime de estelionato”, trata-se do crime que, na maioria dos casos, ocorre devido à “torpeza bilateral”, que nada mais é que o comportamento de má-fé da vítima, que conhecedora da ilegalidade da vantagem prometida pelo ofensor, visando a vantagem ilícita, aceita participar da conduta.

Percebe-se que a vítima, nesse caso, e segundo a classificação adotada por Mendelsohn é “tão culpada quanto o criminoso”.

Entendo que no caso de ocorrer “torpeza bilateral”, o procedimento restaurativo deve contar com a participação da vítima, ofensor e um representante estatal com poder de decisão. O acordo será realizado de tal maneira que a vítima não tenha voz ativa como no procedimento restaurativo tradicional, aliás, ao agir de má-fé, a vítima é tão criminosa quanto o estelionatário. O representante estatal deverá tentar compor as partes e aplicará as medidas cabíveis ao caso, como por exemplo a devolução do valor empenhado pela vítima ao estelionatário, porém, sem necessidade de tipificar penalmente a conduta.

E, para finalizar, os casos em que a vítima é o Estado. Nesta situação, cito novamente o caso do agente que coloca fita isolante para alterar o último número da placa identificadora do veículo para burlar o “rodízio veicular” na cidade de São Paulo.

Caso a alteração ocasione prejuízo a outro motorista, no sentido de que ao alterar o número da placa, este fique idêntico com a de outro veículo, sendo assim, o proprietário deste veículo arcando com o prejuízo da sanção administrativa, o procedimento restaurativo deverá ocorrer entre o ofensor, a vítima e um membro do Estado com poder de decisão, sendo que, neste caso, haverá o dever do ofensor  indenizar a vítima(proprietário do veículo com placa regular).

Caso não haja outra vítima além do Estado, o acordo restaurativo deverá ser realizado entre o Estado e o ofensor, sendo a pena definida de acordo com um modelo inovador de procedimento restaurativo, onde poderá ser aplicada penas restritivas de direitos, multas ou qualquer outra medida acordada durante o encontro, porém, sem a necessidade de tipificar a conduta no artigo 311 do Código Penal, que prevê pena de reclusão, de três a seis anos.

Importante ressaltar, no caso concreto, a possibilidade de enquadramento da vítima “Estado” em duas definições trazidas por Mendelsohn. Pode-se classificar o estado como “vítima ideal” ou “vítima inocente”, se houver entendimento de que há “legalidade” no rodízio veicular em São Paulo. Porém, caso o entendimento de que o rodízio veicular fere o direito constitucional de “ir e vir” do cidadão, o Estado se enquadraria em “vítima tão culpada quanto o criminoso”.

9.Conclusão

O presente trabalho buscou demonstrar que o modelo tradicional punitivo aplicado no Brasil está falido.

Infelizmente, o Direito Penal Brasileiro é regido pelo “populismo penal”, onde os legisladores tipificam condutas ou aumentam as penas pela pressão popular, não se preocupando com as consequências disso.

Diferentemente do que ocorre hodiernamente, os legisladores devem ter em mente que o direito penal é a “ultima ratio”, devendo ser aplicado apenas em último caso.

Outro ponto relevante é sobre o conservadorismo dos operadores jurídicos Brasileiros. Enquanto o Estado não mudar o pensamento punitivo dos membros do Ministério Público e dos do Poder Judiciário, o sistema não sofrerá alteração.

A justiça restaurativa vem como uma solução rápida e eficaz para o problema carcerário contemporâneo, porém, diferentemente do que ocorre com a “Lei do JECRIM” ou a denominada “justiça terapêutica”, deve-se positivar um modelo que amplie o rol dos crimes que poderiam ser abrangidos pelo procedimento restaurativo.

Sobre o papel da vítima durante o procedimento restaurativo, entendo que não seja, em todos os casos, tão primordial como estabelece os princípios da resolução da ONU(2002/12). O papel da vítima poderá sofrer restrições em determinados processos restaurativos.

Diante do exposto, posso afirmar que não resta outra solução senão a aplicação do modelo restaurativo no Brasil. Ademais, finalizo o presente Artigo Científico com a seguinte conclusão: “O Brasil, além de prender muito, prende errado!”

10.Referências bibliográficas

ACHUTTI, Daniel Silva. Justiça restaurativa e abolicionismo penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016

BRASIL. LEI Nº 2.848, DE 07 DE DEZEMBRO DE 1940. CÓDIGO PENAL, Rio de Janeiro, RJ, dez. 1940. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 10 mar. 2018.

BRASIL. LEI Nº 9.099, DE 26 DE SETEMBRO DE 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências, Brasília, DF, set. 1995. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9099.htm>. Acesso em: 10 mar. 2018.

BRETAS, Valéria. Educação pode(mesmo) aplacar a violência; veja como, 2016. Disponível em:<https://exame.abril.com.br/brasil/educacao-pode-mesmo-aplacar-a-violencia-veja-como/>. Acesso em: 10 de fev. 2018.

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 35. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA,2017. Disponível em:
<http://www.justica.gov.br/news/ha-726-712-pessoas-presas-no-brasil>. Acesso em: 14 de fev. 2018.

ITO, Marina. Função do Direito Penal é limitar o poder punitivo, 2009. Disponível em:<https://www.conjur.com.br/2009-jul-05/entrevista-eugenio-raul-zaffaroni-ministro-argentino>. Acesso em: 12 de mar. 2018.

FILHO, Nestor Sampaio Penteado. Manual esquemático de criminologia. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

RESOLUÇÃO DA ONU 2002/12. Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal. Disponível em: <http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf>. Acesso em: 14 de fev. 2018.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE GOIÁS. Disponível em: <https://tj-go.jusbrasil.com.br/noticias/479983782/programa-justica-terapeutica-e-pre-selecionado-para-concorrer-ao-premio-innovare>. Acesso em 16 de fev. 2018.

Notas de fim


[i] Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Paulista – UNIP(2016).  Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Nove de Julho-UNINOVE(2018).

 

[ii] Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Paulista - UNIP (2002). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2006). Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos - UNIMES (2015). Graduada em Pedagogia pela Universidade Nove de Julho - UNINOVE (2017). Professora das disciplinas de Direito Penal, Direito Processual Penal e Prática Penal da Uninove. Professora de cursos preparatórios para concursos e para o exame da OAB.

 

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Daniel Nazuti da Silveira

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O presente Artigo Científico foi realizado por este Autor como requisito parcial para conclusão do curso de Pós-graduação em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Universidade Nove de Julho-UNINOVE.

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