A inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para maiores de setenta anos

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08/02/2019 às 17:00
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RESUMO:O atual ordenamento jurídico brasileiro modificou o conceito de família, onde se entende que este está intimamente ligado ao de afeição. Diante disso, a autonomia privada para contrair e desfazer matrimônio restou muito mais fácil que nos últimos anos. Ocorre que apesar de o conceito de família e casamento tenha evoluído, ainda há discriminação quando os idosos pretendem contrair matrimônio e formar uma íntima relação afetiva. Dentre os vários desrespeitos com seus direitos, se encontra a obrigatoriedade destes contraírem casamento com o regime de separação de bens, quando um dos nubentes contarem com idade igual ou superior a setenta anos. Diante disto indaga-se: é constitucional o regime de separação obrigatório de bens para pessoas maiores de setenta anos? Este estudo foi concebido para proporcionar ao leitor um entendimento em relação ao regime de separação legal de bens, mencionando para tanto, conceitos e teorias de vários juristas com a finalidade de demonstrar que este regime de bens não guarda relação com o atual ordenamento jurídico constitucional.

Palavras Chaves: Casamento. Dignidade da Pessoa Humana. Idosos. Inconstitucionalidade. Regime de Separação Obrigatório de bens.

ABSTRACT:The current Brazilian legal system has modified the concept of family, where it is understood that it is closely linked to that of affection. Faced with this, private autonomy to contract and undo marriage has remained much easier than in recent years. It happens that although the concept of family and marriage has evolved, there is still discrimination when the elderly intend to contract marriage and form an intimate affective relationship. Among the various disrespections with their rights, it is the obligation of these to contract marriage with the separation of property regime, when one of the spouses have an age equal or superior to seventy years. In view of this, we ask ourselves: is the regime of compulsory separation of assets for persons over seventy years old constitutional? This study was designed to provide the reader with an understanding of the legal separation of property system, mentioning the concepts and theories of several jurists for the purpose of demonstrating that this property regime is not related to the current constitutional legal order.

Keywords: Marriage. Dignity of human person. Seniors. Unconstitutionality. Compulsory Separation of Goods.

SUMÁRIO:INTRODUÇÃO.. 1. DOS DIREITOS DOS IDOSOS.. 1.1. DO DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.. 1.2. DO DIREITO À NÃO DISCRIMINAÇÃO.. 1.3. DO DIREITO À LIBERDADE.. 2. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASAMENTO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO.. 2.1. CONCEITO JURÍDICO DE CASAMENTO.. 2.2. DA CAPACIDADE PARA O CASAMENTO.. 2.3. CAUSAS SUSPENSIVAS E IMPEDITIVAS.. 3. DOS REGIMES DE BENS PREVISTOS NO CÓDIGO CIVIL. 3.1. CONCEITO E PRINCÍPIOS NORTEADORES SOBRE REGIME DE BENS.. 3.2. DO REGIME DE COMUNHÃO PARCIAL DE BENS.. 3.3. DO REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS.. 3.4. DO REGIME DE PARTICIPAÇÃO FINAL NOS AQUESTOS.. 3.5. DO REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS..4. DO REGIME DE SEPARAÇÃO OBRIGATÓRIA OU LEGAL DE BENS.. 4.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS.. 4.2. DA INCONSTITUCIONALIDADE DO REGIME OBRIGATÓRIO DE BENS PARA IDOSOS  .CONSIDERAÇÕES FINAIS.. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..


INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como foco a questão da inconstitucionalidade do regime de separação obrigatória de bens para maiores de setenta anos, com enfoque principal na problemática jurídica de o dispositivo previsto no artigo 1.641, inciso II, do Código Civil ferir o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, sendo desta forma inconstitucional.

Este estudo não pretende trazer conceitos novos, e nem o poderia, pois este tema é recorrente, seja na jurisprudência, seja na doutrina, seja em trabalhos científicos, seja no próprio Legislativo. Destarte a preocupação deste assunto se justifica como forma de contribuição ao estudo do Direito, e também para demonstrar que a imposição do regime de separação de bens para pessoas idosas vai de encontro à Magna Carta da República.

Antes de abordar efetivamente do tema proposto pelo trabalho, tratou-se inicialmente de evidenciar os direitos inerentes aos idosos no atual ordenamento jurídico, dentre os quais se destacam o direito à dignidade da pessoa humana, à não discriminação e à liberdade.

A dignidade da pessoa humana é um princípio fundamental, inerente a todo o ser humano, onde a Constituição Federal cuidou de tratar logo em seu primeiro artigo, demonstrando sua importância para o Legislador Constitucional. Da mesma forma o direito à não discriminação está inserido na Magna Carta da República, onde decorre o princípio da isonomia. Quanto à liberdade, este direito vai muito além da liberdade de ir e vir, contando com uma liberdade de pensamento e de autonomia. Todos estes direitos estão inseridos no Estatuto do Idoso, o qual inovou a ordem jurídica ao tratá-los como sujeitos vulneráveis.

Vencido esta parte inicial, onde o leitor terá uma noção maior dos direitos inerentes aos idosos e os efeitos práticos destes, o estudou buscou conceituar de forma sucinta o que é casamento e os regimes de bens.

Casamento é uma relação íntima de afeto regulado por um negócio jurídico solene, onde às partes têm autonomia de vontade, em regra, para regular dentre outras, o regime de bens que será utilizado pelos nubentes.

Verificado a capacidade para casamento e não havendo nenhuma causa suspensiva ou impeditiva matrimonial, os nubentes terão que escolher o regime de bens que irá regular a união, onde o Código Civil de 2002 previu serem basicamente quatro hipóteses, quais sejam: o regime de comunhão parcial de bens; o regime de comunhão universal de bens; o regime de participação final nos aquestos; e o regime de separação de bens.

O último capítulo deste trabalho reserva-se ao estudo do regime de separação obrigatório de bens, onde conforme irá se verificar, o Código Civil tratou de três hipóteses, dentre estas pelo fato de um dos nubentes ser maior de setenta anos.

A norma que obriga os idosos a se casarem com um regime diferente do que estes possam querer é uma clara ofensa à dignidade da pessoa humana e do princípio da autonomia da vontade. O legislador infraconstitucional a justifica informando ser uma norma protetiva, o que é um absurdo, uma vez que isto acaba por gerar uma discriminação injustificada.

Para demonstrar a inconstitucionalidade do dispositivo, o presente estudo utilizou-se do método exploratório, onde se faz uso de pesquisas científicas sobre o assunto, tais como, Legislações, Doutrinas, Jurisprudências, Artigos Jurídicos, Informativos Eletrônicos, Projetos de Leis, dentre outros.


1. DOS DIREITOS DOS IDOSOS

1.1. DO DIREITO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

A dignidade da pessoa humana é um direito inerente a todos indistintamente, previsto na Constituição Federal, logo em seu artigo 1

º, inciso III, onde informa ser um fundamento da República Federativa do Brasil:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

Inicialmente, é importante frisar que não há um conceito jurídico pacífico sobre o tema, existindo diversas concepções doutrinárias. E não podia ser de outro modo, uma vez que a dignidade da pessoa humana é um direito conquistado através da história, o qual abrange princípios e garantias de vários ramos dos direito, tendo vários significados e concepções através do tempo e da esfera jurídica estudada.

Em que pese tais afirmações, ainda sim é possível traçar características inerentes à dignidade humana, onde SILVA[1] elucida serem basicamente, as seguintes:

(1) Historicidade. São históricos como qualquer direito. Nascem, modificam-se e desaparecem. Eles apareceram com a revolução burguesa e evoluem, ampliam-se, com o correr dos tempos. Sua historicidade rechaça toda fundamentação baseada no direito natural, na essência do homem ou na natureza das coisas;

(2) Inalienabilidade. São direitos intransferíveis, inegociáveis, porque não são de conteúdo econômico-patrimonial. Se a ordem constitucional os confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis;

(3) Imprescritibilidade. O exercício de boa parte dos direitos fundamentais ocorre só no fato de existirem reconhecidos na ordem jurídica. Em relação a eles não se verificam requisitos que importem em sua prescrição. Vale dizer, nunca deixam de ser exigíveis. Pois prescrição é um instituto jurídico que somente atinge, coarctando, a exigibilidade dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade de direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso. Se são sempre exercíveis e exercidos, não há intercorrência temporal de não exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição;

(4) Irrenunciabilidade. Não se renunciam direitos fundamentais. Alguns deles podem até não ser exercidos, pode-se deixar de exercê-los, mas não se admite sejam renunciados.

Ao conceituar a dignidade humana TARTUCE[2] é categórico ao afirmar que:

Reconhecendo a submissão de outros preceitos constitucionais à dignidade humana, Ingo Wolfgang Sarlet conceitua o princípio em questão como sendo “o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana” (A eficácia…, 2005, p. 124). A partir desse conceito, entendemos que a dignidade humana é algo que se vê nos olhos da pessoa, na sua fala e na sua atuação social, no modo como ela interage com o meio que a cerca. Em suma, a dignidade humana concretiza-se socialmente, pelo contato da pessoa com a sua comunidade.

Como é possível verificar, a dignidade da pessoa humana, trata-se em realidade de um princípio fundamental que traz obrigações negativas e positivas para o Estado, conforme bem analisado por DIAS[3], onde informa que:

O princípio da dignidade humana não representa apenas um limite à atuação do Estado, mas constitui também um norte para a sua ação positiva. O Estado não tem apenas o dever de abster-se de praticar atos que atentem contra a dignidade humana, mas também deve promover essa dignidade através de condutas ativas, garantindo o mínimo existencial para cada ser humano em seu território.

O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741 de 2003), ao tratar sobre os direitos inerentes aos idosos, positiva de forma exemplar entre o rol exemplificativo do artigo 10, o direito à dignidade da pessoa humana, informando ser obrigação do Estado e dever de todos, assegurar tal direito:

Art. 10. É obrigação do Estado e da sociedade, assegurar à pessoa idosa a liberdade, o respeito e a dignidade, como pessoa humana e sujeito de direitos civis, políticos, individuais e sociais, garantidos na Constituição e nas leis.

[...]

§ 3º É dever de todos zelar pela dignidade do idoso, colocando-o a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Além disto, o Estatuto do idoso em seu artigo 2º informa que todo idoso goza de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo assegurado em lei o exercício deste direito.

Diante disto, verifica-se que a dignidade da pessoa humana é o núcleo constitucional do ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo, sendo desta forma um limite ao poder do Estado, além de também obrigá-lo de garantir o exercício de tal direito fundamental, sendo um princípio utilizado nos vários ramos do direito, como o Direito de Família e o Direito dos Idosos, objeto do presente trabalho.

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1.2. DO DIREITO À NÃO DISCRIMINAÇÃO

A Constituição Federal em seu art. 3º, inciso IV, informa que um dos objetivos da República é promover o bem de todos sem distinção de idade ou quaisquer outras formas de discriminação.

Este direito decorre do princípio da igualdade, previsto no o artigo 5º da Magna Carta, o qual informa que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.

O Estatuto do disciplinando tal direito, informa em seu artigo 4º que:

Art. 4o Nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei.

A legislação vai além, tipificando qualquer forma de discriminação aos idosos em razão da idade, conforme preceitua o artigo 96 da Lei n. 10.741 de 2003:

Art. 96. Discriminar pessoa idosa, impedindo ou dificultando seu acesso a operações bancárias, aos meios de transporte, ao direito de contratar ou por qualquer outro meio ou instrumento necessário ao exercício da cidadania, por motivo de idade:

Pena – reclusão de 6 (seis) meses a 1 (um) ano e multa.

O direito gera uma obrigação de todos em não discriminar o idoso simplesmente pela idade, negando-lhe o exercício regular de um direito. Decorre deste princípio, o da igualdade e o da isonomia, onde informa que se devem tratar os iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida de sua desigualdade.

Desta forma, é possível verificar que, apesar de haver limitações físicas por conta de uma idade avançada, o Estado não deve, apenas por estas limitações, discriminar os idosos, pois estes são capazes de direitos e deveres.

1.3. DO DIREITO À LIBERDADE

O direito à liberdade, também instituído na Magna Carta da República, vai muito além do direito de ir e vir da pessoa humana, estando intimamente ligado ao próprio princípio da igualdade constitucional, este regula a liberdade como pessoa humana.

DIAS[4], ao tratar sobre o direito à liberdade informa que:

A liberdade e a igualdade foram os primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, de modo a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana . O papel do direito é coordenar, organizar e limitar as liberdades, justamente para garantir a liberdade individual. Parece um paradoxo. No entanto, só existe liberdade se houver, em igual proporção e concomitância, igualdade. Inexistindo o pressuposto da igualdade, haverá dominação e sujeição, não liberdade.

O Estatuto do Idoso também deu especial atenção a esse direito, regulando no §1º, do artigo 10, que:

[...]

§1º O direito à liberdade compreende, entre outros, os seguintes aspectos:

I – faculdade de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;

II – opinião e expressão;

III – crença e culto religioso;

IV – prática de esportes e de diversões;

V – participação na vida familiar e comunitária;

VI – participação na vida política, na forma da lei;

VII – faculdade de buscar refúgio, auxílio e orientação.

Desta forma o direito à liberdade da pessoa idosa, visa garantir isonomia em relação a todos, estando este relacionado com o princípio da não discriminação supramencionado.

Posteriormente será verificado em capítulo próprio que, justamente pelo fato de todos os idosos terem garantidos os direitos à dignidade da pessoa humana, da não discriminação e da liberdade que o regime de separação obrigatória de bens à maiores de setenta anos se mostra contrário a ordem constitucional vigente.

Sobre o autor
Luciano Garcia Santos

Pós graduado em Direito Público pela Faculdade UnYLeYa

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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