Prevenção e correção no controle da disciplina de servidores.

Servidor não é máquina ou matrícula: tem hormônios, fisiologia e esqueleto como os demais trabalhadores

09/02/2019 às 11:14
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A gestão pública deve buscar os referenciais do mundo corporativo no que diz respeito aos recursos humanos, implantando meios de prevenção e correção como primeiras ferramentas de controle da disciplina.

Os administradores devem sair do estreito canal da burocracia, em uma prática de providências mecânicas, robotizadas, repetitivas, na qual meramente cumprem formalidades inúteis para dar satisfação aos superiores, sem avaliar o impacto de resultado. A gestão pública deve buscar os referenciais do mundo corporativo no que diz respeito aos recursos humanos, porque as pessoas que trabalham para o Estado ou para as empresas privadas têm a mesma formação esquelética, a equivalente composição de hormônios e igual sistema fisiológico. Logo, tratar servidores como máquinas ou matrículas, sem visão holística e humana é fazer de conta que administra.

O controle da disciplina não é exercido unicamente por instrumentos sancionadores. A administração deve implantar uma política de controle, privilegiando a prevenção e a correção, como prevê a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei n° 101/2000):

Os meios da prevenção

A prevenção é realizada inicialmente pela orientação sobre como bem executar o serviço. É sabido que os funcionários recebem treinamento naquilo que diz respeito às suas atribuições, para que, se for o caso, possam ser responsabilizados pelo descumprimento das orientações recebidas, pelo não seguimento das normas que lhes foram transmitidas, pela falta de zelo e por eventual desídia. Em segundo momento – e esse é o ponto nuclear – previne-se ao se dar conhecimento aos agentes acerca das suas responsabilidades (proibições, deveres, crimes contra a administração pública, improbidade administrativa e ética.

É uma ficção acreditar que os servidores tenham completo discernimento dessas matérias; é uma irresponsabilidade deixar para enfrentar a ignorância em autos de processos.

O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso, sob a consultoria do autor, foi pioneiro a regulamentar essa matéria em 2008, o que fez por meio do Provimento nº 05 do Conselho de Magistratura[1]:

Programa complementar de prevenção

Art. 4º. À Corregedoria, à Coordenadoria de Controle Interno e às comissões permanentes de sindicância e de processo disciplinar, em parceria, compete implantar, programa complementar de prevenção, com realização de reuniões setoriais, visando padronizar procedimentos e esclarecer situações de risco

A estatística também é ferramenta de prevenção. Por meio de dados numéricos, busca-se compreender os fatores internos e externos que contribuem para a incidência de irregularidades e ilícitos funcionais. Nesse contexto, é fundamental que a administração:

  • tenha um mapa real das ocorrências;

  • realize estudos acerca das causas determinantes ou que, de alguma forma, influenciaram o resultado;

  • analise o perfil dos agentes infratores;

  • execute uma avaliação crítica da legislação e das normas internas;

  • faça uma aferição da eficácia dos meios de controle;

  • identifique e avalie os mecanismos de prevenção e correção.

Não é razoável que todo o esforço se concentre unicamente no enfrentamento dos casos concretos, desencadeando sindicâncias e processos disciplinares que se repetem, pelo mesmo motivo, mês após mês, ano após ano. O dinheiro público será, assim, consumido para nada, sem que se perceba um resultado que permita, pelo menos, manter as infrações sob controle.

Vale aqui citar novamente o modelo do Judiciário do Mato Grosso, no mencionado Provimento nº 05/2008:

Art. 5º. Para adoção de mecanismos de prevenção e correção, a Corregedoria e a Coordenadoria de Recursos Humanos terão sistema integrado de informações que permitam, estatisticamente, identificar pontos vulneráveis na regularidade dos serviços, tipos de infrações e possíveis causas, além do perfil dos infratores.

Por fim, a prevenção deve contemplar a implantação de programa sério de valorização dos funcionários. O reconhecimento público de servidores tem a sua origem na psicologia, a partir de um estudo clássico conhecido como “pirâmide das necessidades”, avança pelos critérios da ciência da administração e se estabelece em comandos legais (por exemplo, art. 237 da Lei nº 8.112/90).

Marcelo Caetano, primeira referência do Direito Administrativo português, escreveu que “o cumprimento normal e corrente dos deveres corresponde a rotina. Já o facto de alguém (...) fazer vingar e progredir os objectivos comuns e em melhorar os métodos de os alcançar é digno de recompensa”.

Com efeito, os funcionários são compensados no seu labor de duas formas: a) pela pecúnia (remuneração e vantagens financeiras decorrentes de funções e do tempo); b) pelo reconhecimento. Assim se faz na caserna, onde o militar, além do soldo e dos acréscimos pecuniários da carreira, recebe condecorações e gestos de reconhecimento, no mínimo publicados em Boletim e comunicados perante a tropa.

Os gênios da ciência da administração Henry Fayol e Frederick Taylor identificaram como uma das primeiras qualidades a serem exigidas de quem comanda equipes a capacidade de reconhecer as habilidades dos subordinados. O bom comando não se faz pela depreciação, mas pelo reconhecimento de méritos. Isso, evidentemente, está associado à estrutura psicológica dos indivíduos, como bem descreveu Abraham Maslow[1].

O homem tem exigências fundamentais, que começam com as necessidades fisiológicas, e evolui em expectativas, até chegar ao topo, que é a necessidade de realização pessoal.

Abraham Maslow:

NECESSIDADE DE AUTORREALIZAÇÃO

(Aproveitamento das potencialidades)

NECESSIDADE DE ESTIMA

(Aprovação – reconhecimento)

NECESSIDADE DE AMOR

(Aceitação – fazer parte do grupo)

NECESSIDADE DE SEGURANÇA

(Moradia – emprego)

NECESSIDADES FISIOLÓGICAS

(Alimentação – repouso)

Nessa linha, a hierarquia de necessidades, também conhecida como pirâmide de Maslow, é uma divisão hierárquica em que as exigências de nível mais baixo devem ser satisfeitas antes das necessidades de nível mais alto. Cada um tem de "escalar" essa hierarquia para atingir a autorrealização. Seguindo essa projeção, Maslow define um conjunto de cinco necessidades descritas na pirâmide.

  • necessidades fisiológicas (básicas), tais como a fome, a sede, o sono, o sexo, a excreção, o abrigo;
  • necessidade de se sentir seguro, seja pela segurança de dentro de uma casa, seja a segurança do emprego e da renda;
  • necessidades sociais ou de amor, afeto, afeição e sentimentos tais como os de pertencer a um grupo ou fazer parte de um clube;
  • necessidade de estima, que passam por duas vertentes: o reconhecimento das capacidades pessoais e o reconhecimento dos outros em relação a essas qualificações;
  • necessidade de autorrealização, traduzida pela procura do indivíduo para se tornar aquilo que ele pode ser.

Existem variações na teoria de Maslow, assim como há aqueles que a contestam. O certo, entretanto, é que essa pirâmide é largamente empregada em sistemas de TQC (Total Quality Control - Controle de Qualidade total). É usada pelo setor de recursos humanos nas empresas mais qualificadas do mundo, que nela se orientam para o desenvolvimento e o bem estar dos empregados, a fim de deles poder recolher o melhor em potencial de produção.

Pode-se afirmar que a imagem do serviço público não se resgata com punições. Este é um método populista, que ganhou corpo no Brasil a partir dos anos 1920, com o crescimento da doutrina positivista que inspirou vários governantes brasileiros. Nem por isso o país atingiu nível de qualidade no que diz respeito à prestação dos serviços públicos. Mais das vezes se prestou para semear terror entre funcionários mal aproveitados. Vez por outra, candidatos demagogos ensaiam medidas contra servidores e empregados públicos, como se eles fossem os culpados por históricos desmandos e aos quais se debitam a incompetência e a irresponsabilidade de governantes fajutos.

A imagem dos ofícios administrativos é realçada pelo reconhecimento daqueles que, com denodo, com entusiasmo, saem de casa para dignificar o trabalho e melhorar as instituições. É lícito crer que integram a maioria das pessoas vinculadas às folhas de pagamento das repartições. Muitas, entretanto, ao longo do caminho, perdem perspectivas. São desestimuladas tanto pela truculência do sistema quanto pela falta de horizontes.

Correção

No plano da correção tem-se como eficaz a intervenção dos chefes imediatos, que devem cumprir o dever de reação direta. Não se admite, em um ambiente comprometido com resultado, que as chefias “resolvam” os incidentes por meio de memorandos, com os quais entulham os gabinetes dos superiores em comunicações não raramente risíveis.

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O chefe é a ponta do controle. Por ele começa o enfrentamento de qualquer episódio que foge dos padrões. Deve ser o primeiro a tomar conhecimento, o primeiro a reagir e, sempre que for possível, é aquele que soluciona. Por isso diz-se que as chefias têm a obrigação de conjugar, na primeira pessoa do singular, três verbos: ordenar, controlar e corrigir.

Da doutrina do Direito Administrativo cubano, captada do Direito espanhol, retira-se o modelo da vigilância interna, pelo qual os chefes orientam prontamente os seus subordinados a bem cumprir os seus serviços.

Portanto, a correção é a ação imediata e obrigatória dos superiores aos quais os servidores estiverem diretamente subordinados, e dos demais gestores, diante das situações concretas consubstanciadas em irregularidades cometidas no exercício das funções ou com reflexo nelas. Essa correção é exercida, na primeira oportunidade, pelo esclarecimento verbal; seguindo-se, se necessário, de comunicação escrita, de caráter educativo, em que conste objetivamente o fato e a orientação sobre a forma correta de procedimento.

A comunicação escrita, com possível resposta do servidor, será arquivada por quem a emitiu, dela não podendo resultar aplicação de sanção, uma vez que toda penalidade disciplinar prescinde do respectivo processo. O valor desse instrumento será, sobretudo, psicológico, na medida em que o funcionário perceberá que existe controle; notará que a sua conduta e o seu serviço são acompanhados de perto; e de que, se afastar-se do tom, terá logo a reação correspondente. Pelo lado da chefia, o documento servirá para demonstrar a terceiros o cumprimento do seu dever; e, em se repetindo a conduta transgressora, poderá comprovar perante outras instâncias a renitência daquele subordinado em se ajustar à regra (isso para efeitos de juízo de admissibilidade de outras providências).

Obviamente independem de prévia comunicação escrita, podendo desde logo serem noticiadas, as ocorrências graves ou as que, pela sua natureza, não possam ser corrigidas.

Ainda no ambiente da correção, mas com status diferenciado, aparece o ajustamento de conduta, atualmente acolhido nas boas práticas administrativas.

O ajustamento de conduta sustenta-se no princípio da oportunidade, que por sua vez tem a sua origem na “discricionariedade da ação disciplinar”, do Direito alemão. Por esta referência as autoridades não são obrigadas a abrir processos ou a punir em todas as situações. Elas têm um espaço discricionário para escolher outra solução que atinja a finalidade do controle da disciplina: melhorar o funcionário e melhorar o serviço.

O autor plantou o modelo em janeiro de 2006, em histórico Encontro Nacional de Corregedores, em Natal – RN. A partir de então, passou a ser utilizado nas mais importantes estruturas administrativas do país, incluindo a Secretaria de Controle Interno da Presidência da República. Todas as oposições ou óbices legais apresentados por céticos foram superadas ao longo dos anos, seja pela prática, seja porque as razões apresentadas pelos incrédulos eram de pobre direito.

Léo da Silva Alves, conferencista com trabalhos na América do Sul, Europa e África,  é autor de 48 livros sobre responsabilidade de agentes públicos; há mais de 25 anos atua no Direito Disciplinar como advogado, como professor junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia, e como consultor de Corregedorias. ([email protected])


[1] Abraham Maslow foi um psicólogo comportamental, membro da Human Relations School.  Nasceu em Brooklyn, licenciou-se em Wisconsin e doutorou-se na Universidade de Columbia. No Jardim Zoológico de Bronx, estudou o comportamento dos primatas e, entre 1945 e 1947, foi diretor-geral da Maslow Cooperage Corporation. Em 1951, lecionava Psicologia Social na Universidade de Brandeis quando ficou conhecido pelo desenvolvimento da Teoria da Motivação Humana.

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Sobre o autor
Léo da Silva Alves

Jurista, autor de 58 livros. Advogado especializado em responsabilidade de agentes públicos e responsabilidades de pessoas físicas e jurídicas. Atuação em Tribunais de Contas, Tribunais Superiores e inquéritos perante a Polícia Federal. Preside grupo internacional de juristas, com trabalhos científicos na América do Sul, Europa e África. É professor convidado junto a Escolas de Governo, Escolas de Magistratura e Academias de Polícia em 21 Estados.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Como advogado, doutrinador da matéria e conferencista, tive contato direto durante anos com a realidade da administração pública no que diz respeito ao controle da disciplina de servidores. Conheço os gargalos que entravam o bom funcionamento das corregedorias e sei da inutilidade de processos disciplinares instaurados sem juízo de admissibilidade.

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