Extraconcursalidade dos adiantamentos de contrato de câmbio na recuperação judicial de empresas.

Um panorama prático acerca das discussões que envolvem a classificação do crédito

20/02/2019 às 00:40
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Trata-se de artigo abordando aspecto prático atinente aos créditos derivados de adiantamento de contrato de câmbio no procedimento recuperacional de empresas, demonstrando seu patente enquadramento como não sujeito aos efeitos da Recuperação Judicial.

1 – DA CLASSIFICAÇÃO DOS CONTRATOS DE CÂMBIO E DE SEU ADIANTAMENTO

Conforme é sabido, segundo o entendimento majoritariamente doutrinário do país, consiste o Contrato de Câmbio para Exportação num contrato de compra e venda de moeda estrangeira celebrado entre um exportador – que receberá pelo produto exportado uma contraprestação em moeda diversa da local – e uma Instituição Financeira autorizada a operar no mercado de câmbio nacional pelo BACEN, que, ao adquirir a moeda estrangeira do referido exportador, pagará a este o valor correspondente em moeda pátria, considerados os índices da época da efetiva concretização do negócio (câmbio de moedas).

Trata-se, portanto, de compra e venda a termo, já que a concretização e perfazimento da operação de câmbio estipulada no contrato, somente se verá possível quando entregue a mercadoria pelo Exportador, e paga a contraprestação por ela, fixada pelo Importador.

Neste sentido, preleciona José Augusto de Castro, que em sua obra “Exportação: Aspectos práticos e operacionais”, diz que o Contrato de Câmbio se trata de:

“[...]um contrato de compra e venda de moeda estrangeira negociado e firmado entre um exportador, como vendedor da ‘mercadoria’ moeda estrangeira, e qualquer banco estabelecido no Brasil autorizado a operar em câmbio pelo Banco Central, como comprador dessa ‘mercadoria’ denominada divisa.”.

Diante deste panorama, verifica-se que o recebimento em moeda nacional somente se dará quando concretizada a avença paralela de Exportação de mercadoria, portanto, a longo prazo.

Entretanto, visando captação de capital de giro, bem como o aproveitamento de oportunidades negociais, pode ocorrer – acessoriamente ao contrato de câmbio firmado – o adiantamento em moeda nacional das divisas que futuramente seriam recebidas pela Instituição Financeira, o que se daria por meio da celebração de contrato denominado “Adiantamento de Contrato de Câmbio” – ACC.

2 – DO ADIANTAMENTO DE CONTRATO DE CÂMBIO E SUA NÃO SUJEIÇÃO AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL – DIREITO DE RESTITUIÇÃO DOS DIVIDENDOS ADIANTADOS

Considerando que os ativos adiantados à Exportadora se dão a título de cumprimento antecipado da obrigação contratual havida com a Instituição Financeira autorizada a operar no mercado de câmbio, entende-se que a natureza destes ativos recebidos se trata de dinheiro de terceiro que apenas se encontra em poder da Recuperanda/Falida, conferindo à Instituição Financeira direito de restituição aos dividendos disponibilizados.

Neste sentido, e visando resguardar as Instituições Financeiras que assumem notório risco ao procederem com a disponibilização antecipada da contraprestação das divisas, consagrou-se os ACC’s como ativos não sujeitos à Recuperação Judicial, conforme se vê abaixo:

Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.

[...]

§ 4o Não se sujeitará aos efeitos da recuperação judicial a importância a que se refere o inciso II do art. 86 desta Lei.

Art. 86. Proceder-se-á à restituição em dinheiro:

[...]

II – da importância entregue ao devedor, em moeda corrente nacional, decorrente de adiantamento a contrato de câmbio para exportação, na forma do art. 75, §§ 3o e 4o, da Lei no 4.728, de 14 de julho de 1965, desde que o prazo total da operação, inclusive eventuais prorrogações, não exceda o previsto nas normas específicas da autoridade competente;

Este entendimento, inclusive, foi o que motivou a totalidade dos votos que ensejaram a consolidação da Sumula 307 do STJ (segue abaixo), cujo teor aponta de maneira indiscutível a não sujeição dos adiantamentos de contrato de câmbio ao procedimento falimentar, sendo a interpretação totalmente compatível à Recuperação Judicial, dada a redação do Art. 75, §3º da Lei 4.728/65.

Súmula 307/STJ - A restituição de adiantamento de contrato de câmbio, na falência, deve ser atendida antes de qualquer crédito.

Ademais, utilizando-se desse raciocínio, consolidou o STF que cabe a restituição de dinheiro em poder do falido nos casos em que, por lei ou por contrato, não possua este sua disponibilidade.

Súmula 417/STF - Pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido, recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a disponibilidade.

Deste entendimento, bem como de todos os outros acima elencados, extrai-se com precisão que os adiantamentos efetuados em favor da Recuperanda não se submetem ao procedimento falimentar, o que denota a possibilidade de sua execução por via individual, interpretação também compatível com a Recuperação Judicial por força do Art. 75, §3º da Lei 4.728/65.

3 – DA PROBLEMÁTICA ENVOLVENDO A TENTATIVA DE DESNATURALIZAÇÃO DO ACC PARA CONTRATO DE MÚTUO – IMPOSSIBILIDADE

Embora explicitamente demonstrada a extraconcursalidade dos créditos derivados de ACC’s, deparamo-nos com argumentos na vida prática que visam desconstituir sua condição, sobretudo em decorrência da controversa utilização da Circular nº 3.691/2013 do Banco Central do Brasil.

Com base no inciso II do Art. 104 da supramencionada circular (transcrição abaixo), é de costume das Recuperandas alegarem que, quando não efetuado o embarque das mercadorias a serem exportadas em decorrência da baixa da operação cambiária junto à instituição financeira, desnaturalizar-se-ia o adiantamento de contrato de câmbio celebrado para o converter em mero contrato de mútuo, medida que, por consequência, submeteria os valores adiantados aos efeitos da recuperação judicial.

Art. 104. Para os valores ingressados no País a título de recebimento antecipado de exportação, deve ocorrer no prazo de até 360 (trezentos e sessenta) dias:

 I - o embarque da mercadoria ou a prestação do serviço;

II - a conversão pelo exportador, mediante anuência prévia do pagador no exterior, em investimento direto de capital ou em empréstimo em moeda, e registrado no Banco Central do Brasil;

Referido posicionamento, de acordo com o estudo realizado, não merece prosperar, conforme se demonstrará abaixo:

3.1 – IMPOSSIBILIDADE DE DESNATURALIZAÇÃO DO CONTRATO POR VIOLAÇÃO À BOA-FÉ E À FORÇA OBRIGACIONAL DOS CONTRATOS

Antes de tecermos qualquer raciocínio mais complexo, é importantíssimo que se transcreva aqui o conteúdo do Art. 78 desta mesma circular, o qual aponta dois importantes argumentos que abordaremos:

Art. 78. A baixa na posição de câmbio representa operação contábil bancária e não implica rescisão unilateral do contrato nem alteração da relação contratual existente entre as partes.

Acima, nota-se que a baixa na posição de câmbio se trata de operação contábil bancária, o que significa dizer que se trata de ato meramente administrativo praticado pela instituição bancária junto ao BACEN, não atingindo – de qualquer maneira – a celebração contratual havida entre as partes.

Ainda, na segunda parte do artigo supramencionado, denota-se que referida baixa não implica em rescisão unilateral do contrato e nem em alteração da relação contratual existente entre as partes.

De pronto, sem tecer maiores comentários como os que serão levantados a seguir, depara-se com conteúdo normativo que, embora extraído da própria circular costumeiramente utilizada para o pleito de desnaturalização do ACC, põe notório óbice à possibilidade levantada.

Não obstante a isso, tem-se que a verdadeira finalidade do contrato celebrado entre a Instituição Financeira e Exportadora é o pagamento antecipado do valor do bem móvel (moeda estrangeira) adquirido, e não operação autônoma de empréstimo, conforme bem leciona Eduardo Salomão Neto:

“[...] o adiantamento sobre contrato de câmbio deriva sua natureza do próprio contrato de câmbio. Assim, constitui pagamento antecipado do valor do bem móvel (moeda estrangeira) adquirido e não operação autônoma de empréstimo. ”

Logo, sendo os agentes contratantes capazes, sendo o objeto lícito, possível, determinado ou determinável, bem como sendo a forma de contratação prescrita ou defesa em lei; tem-se que o negócio jurídico celebrado é válido, não padecendo que qualquer vício que possa o descaracterizar, denotando, por conseguinte, a anuência das partes à sua natureza e a aquisição das obrigações desta natureza advinda.

A pretensão de descaracterizar o Adiantamento de Contrato de Câmbio para fazê-lo de mútuo fere princípios basilares de direito contratual, tais como o da boa-fé contratual e da força obrigacional dos contratos.

A começar pela boa-fé, tem-se que foi da vontade das partes pactuarem o adiantamento, contraindo a parte Exportadora como condição da disponibilização dos ativos, a obrigação de – dentro do prazo delimitado – proceder com o embarque das mercadorias.

Pleitear a descaracterização do Adiantamento em benefício de Empresas Recuperandas, calcado na ocorrência de um descumprimento contratual por elas mesmo efetuado, consiste, nada mais, em tentativa de se beneficiar da própria torpeza, consistindo em patente “Venire contra factum proprium”.

Há julgados muitíssimo atuais tratando da violação da boa-fé em casos análogos, os quais se fazem pertinentes transcrever:

APELAÇÃO CÍVEL. NEGÓCIOS JURÍDICOS BANCÁRIOS. AÇÃO DE REVISÃO DE CONTRATO DE CÂMBIO. PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR.  ADIANTAMENTO DE CÂMBIO. ENQUADRAMENTO JURÍDICO. OBRIGAÇÃO CONTRATUAL. RESPONSABILIDADE DO DEVEDOR. FIANÇA. ABUSIVIDADES DAS CLÁUSULAS. VARIAÇÃO CAMBIAL. JUROS REMUNERATÓRIOS. [...] 3- Qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes: o ajuste entabulado entre as partes define-se como Adiantamento sobre Contrato de Câmbio, sujeito, assim, às regras específicas dadas pelo Regulamento do Mercado de Câmbio e Capitais Internacionais, expedido pelo Banco Central do Brasil, e não ao regramento dado pelo Código Civil. Descabimento da descaracterização da avença para contrato de mútuo, tendo em vista que a eventual inocorrência da exportação, após a captação de moeda estrangeira, não desvirtua o Adiantamento sobre Contrato de Câmbio. (APELAÇÃO CÍVEL DÉCIMA SEGUNDA CÂMARA CÍVEL Nº 70058132127 N° CNJ: 0005775-98.2014.8.21.7000; COMARCA DE PORTO ALEGRE).

RECUPERAÇÃO JUDICIAL – IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO – EXTRACONCURSALIDADE DE CRÉDITO ORIUNDO DE ADIANTAMENTOS DE CONTRATO DE CÂMBIO (ACC'S) – Extraconcursalidade do crédito prevista no art. 49, § 4º da Lei 11.101/2005 – Afirmada conversão da operação bancária em simples mútuo – Devedora que não pode se beneficiar da própria torpeza – Pedido de recuperação judiciária do coobrigado e comparecimento do credor em Assembleia de Credores que não implicam na qualificação do crédito como concursal - Decisão mantida – Recurso conhecido e desprovido.(TJ-SP - AI: 21667044220188260000 SP 2166704-42.2018.8.26.0000, Relator: Fortes Barbosa, Data de Julgamento: 17/10/2018, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Data de Publicação: 19/10/2018)

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Aproveita-se, ainda, para transcrever conteúdo extraído do inteiro teor do acordão do TJRS acima mencionado, que em um de seus parágrafos nos diz que “[...] caso se entendesse que o Acordo (leia-se, Adiantamento – erro de escrita) sobre Contrato de Câmbio pudesse restar descaracterizado e, portanto, inválido, pela inocorrência de exportação, posteriormente ao ajuste contratual, bastaria à devedora não efetuar o negócio de saída das suas mercadorias, para, com isso, eximir-se das obrigações consolidadas no vínculo contratual. Estar-se-ia, com fundamento nessa premissa, a chancelar a possibilidade de comportamento alheio ao princípio da boa-fé (art. 422, Código Civil), que não incide apenas na celebração do contrato, como também na sua execução”.

Desta feita, ante todo o acima mencionado, sobretudo frente às notórias violações principiológicas aqui abordadas, bem como conteúdo da própria resolução costumeiramente utilizada para fundamentar à possibilidade de desnaturalização do Adiantamento do Contrato de Câmbio em simples Contrato de Mútuo, tem-se que não há fundamentos suficientes a possibilitar referido pleito, sendo certo que os adiantamentos devem ser tidos por extraconcursais no procedimento falimentar e recuperacional.

3.2 - DO CONFLITO DE NORMAS – LEI 11.101/2005 HIERARQUICAMENTE SUPERIOR À CIRCULAR Nº 3.691/2013 DO BACEN – LEGALIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO NÃO OBSERVADA

Embora insuficientes os argumentos que visam possibilitar a desnaturalização dos ACC’s em Contratos de mútuo, importante se faz traçar tal panorama.

Considerando a utilização da Circular nº 3.691/2013 do BACEN, observamos que esta se trata de ato administrativo dito ordinatório, emanado de Ente descentralizado da administração pública denominado Banco Central do Brasil – BACEN, autarquia federal.

Logo, uma vez que referida circular é considerada ato administrativo, tem-se que está diretamente subordinado aos princípios constitucionais da administração pública, os quais se encontram delimitados no Art. 37, caput, de nossa Lei Maior, indicando como um de seus princípios basilares os da Legalidade.

O Princípio da Legalidade preceitua que o conteúdo normativo nacional deve obedecer escala hierárquica, sobrepondo-se as normas de hierarquia superior às de hierarquia inferior. Além disso, condiciona a prática dos atos administrativos à observância da legislação vigente, para que assim não confrontem e confundam sua aplicabilidade, sendo o referido princípio verdadeiro fundamento de validade do ato administrativo praticado/ a ser praticado.

Logo, caso realmente trate a lei em seu bojo da desnaturalização do adiantamento do contrato de câmbio, deve se ter por inválido a parcela do dispositivo legal que verse sobre o assunto, já que não respeitado o princípio da Legalidade na prática do ato pelo BACEN.

Neste mesmo compasso, ainda que desconsiderada a hipótese de inobservância da Legalidade na Circular nº 3.691/2013 do BACEN, fato é que referido dispositivo legal é hierarquicamente inferior a Lei 11.101/2005, razão pela qual, uma vez conflitantes, deve-se aplicar a regra de antinomia e sobrepor esta àquela.

Desta feita, ante o fato da Lei 11.101/2005 se tratar de Lei Ordinária, sendo, portanto, fundamento de validade das demais leis a ela inferiores, tais como a Circular nº 3.691/2013 do BACEN, temos que não deve ser acatada a hipótese de desnaturalização do Adiantamento de Contrato de Câmbio, mantendo, assim, sua não sujeição aos efeitos da recuperação judicial e falência de empresas.

REFERÊNCIAS

NETO, Eduardo Salomão. Direito Bancário. São Paulo. Atlas. 2007;

FALCONI, Anelise Santos Guimarães. O Contrato de Adiantamento de Câmbio e a Possibilidade (ou não) de Compra de Performance.

SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo. Saraiva. 2018.

NOVAES, Luiz Felipe Salgueiro. Execução de Contrato de Câmbio de Exportação. Trabalho de Conclusão de Curso. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.

CASTRO, Jose Augusto de. Exportação : Aspectos Práticos e Operacionais. São Paulo. Aduaneira. 2011.

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