28. DIREITO DE FAMÍLIA
O direito de família inicia esta terceira e última parte de nosso trabalho, que seguirá com o direito das sucessões e as disposições finais e transitória do livro especial que encerra o Código Civil.
Primeiro aspecto que chama a atenção é a topologia da tratativa da matéria, depois do direito das coisas e antes do direito das sucessões. Outrora, no regime do revogado código, o direito de família iniciava a parte especial. Esta posição, a atual, é muito mais lógica, de modo que agora pode-se dizer que a seqüência do Código corresponde à seqüência pela qual as matérias são ministradas nas faculdades de direito.
Alguns tópicos do direito de família sofreram notórias modificações nos últimos trinta anos, podendo se citar, ad exemplum, a questão do divórcio102 e da união estável103. Outras questões não menos importantes foram sendo tratadas pela jurisprudência e pela doutrina, que à luz do texto constitucional de 1988, construíram um sólido esteio para as soluções apontadas, como é o caso dos filhos "ilegítimos"104.
Muitas expectativas foram depositadas no novo código, e o fato de ter preponderantemente codificado o que já constava da legislação extravagante ou da jurisprudência gerou alguma frustração.
Mas é preciso compreender que os códigos são normalmente marcados pela prudência, ficando eventuais alterações posteriores relegadas para legislação extravagante. Esta fórmula de prudência assegura longevidade ao diploma.
O livro IV do Código Civil divide-se em quatro títulos a saber: direito pessoal, direito patrimonial, união estável e tutela e curatela. O primeiro título divide-se em dois subtítulos: do casamento e das relações de parentesco. O título II também se subdivide em três subtítulos: do regime de bens entre os cônjuges, do usufruto e da administração dos bens de filhos menores, dos alimentos, e por fim, do bem da família. A fim de facilitar o estudo e propiciar melhor memorização, estas divisões serão observadas em nossa abordagem, de acordo com as conveniências expositivas.
29. CASAMENTO
A perda da importância do casamento na sociedade moderna é uma realidade irrecusável, sem que, contudo, se possa afirmar que tenha perdido toda sua projeção. Mas o certo é que os fatores morais e culturais que tornavam o casamento praticamente uma regra muito se esmaeceram.
Ao início dos dispositivos legais, já observamos uma mudança no código vigente em relação ao anterior, pois não principia diretamente pelo trato das formalidades da habilitação.
O artigo 1.511 determina que o casamento implica comunhão plena de vida com base na igualdade de direitos de deveres dos cônjuges.105 A menção à igualdade de direitos e deveres representa uma mudança de paradigma na tratativa do casamento pelo direito civil, e reflete o princípio da igualdade consagrado no artigo 5, caput, e inciso I, do texto constitucional. O revogado código ainda espelhava uma época em que era cultivado culturalmente um injustificável ranço de desigualdade no tratamento das mulheres. Tinha-se a idéia do cônjuge varão como o chefe, o "cabeça" da família. Ora, o texto constitucional é bastante claro em vedar qualquer espécie de discriminação em relação ao sexo, ressalvadas as decorrentes de critérios relativos ao desempenho de certas funções profissionais106. Realmente não havia mais espaço para tratamento diverso entre os papéis dos cônjuges.
O artigo 1.512 repete disposição constitucionais, mais precisamente ao artigo 226, § 1, que determina que o "o casamento é civil e gratuita sua celebração". Não o são porém, a habilitação, o registro, e a primeira certidão, salvo para os comprovadamente pobres.
Nenhuma pessoa, seja de direito público ou privado, pode interferir na comunhão de vida estabelecida pela família (art. 1.513). Esta disposição, contudo, não invalida as intervenções que resguardem direitos dos próprios cônjuges ou de terceiros, não servindo de óbice, por exemplo, para ações de afastamento cautelar do lar ou interferências estatais para resguardo dos direitos dos filhos.
O casamento se perfectibiliza pela manifestação livre e consciente da vontade dos nubentes (homem e mulher)107 perante a autoridade competente, momento em que esta os declara casados. Para tanto, pode ser considerada a cerimônia religiosa, desde que observados os requisitos legais, in casu, os estabelecidos pelos artigos 71 a 75 da Lei nº 6.015/73 (Lei de Registros Públicos).
Em caso de cerimônia religiosa, precedida de habilitação regular, o registro civil da união deve ser solicitado em até noventa dias após a cerimônia. Se não houve habilitação prévia ou se expirado este prazo, o pedido de registro pode ser feito a qualquer tempo, mas deverá ser precedido de habilitação.
A idade núbil foi unificada em 16 anos (art. 1.517) e mantida a necessidade de autorização dos pais para os menores de 18 anos. Esta idade pode ser desconsiderada, diz o código, em caso de gravidez ou para evitar a imposição ou cumprimento de sanção penal.108 A autorização para o casamento pode ser revogada pelos pais ou tutores até a celebração, mas não é ato que fique sem possibilidade de controle judicial, pois pode ser suprido em juízo, quando "injusta". Mas em caso de divergências entre os pais, diferentemente do que ocorria no revogado código, onde preponderava a vontade paterna, qualquer dos dois pais poderá recorrer a juízo em busca do suprimento do consentimento do outro, na forma do artigo 1.631.
29.1. Irregularidades
O tratamento das irregularidades (lato sensu) relativas ao casamento recebeu algumas modificações mais de cunho dogmático do que propriamente de conteúdo. Realmente, o artigo 183 do revogado código tratava genericamente dos impedimentos e irregularidades (stricto sensu). Os primeiros eram divididos em impedimentos dirimentes e impedimentos impedientes. Os dirimentes, que eram os dos incisos I a VIII, conduziam à nulidade do casamento. Os impedientes eram os dos incisos IX a XII, e conduziam à anulabilidade. Ambas as categorias poderiam ser opostas por qualquer pessoa maior, instruindo a argüição com provas, pelo que presidisse a cerimônia e pelo oficial.
Os casos dos incisos XIII a XVI compunham-se de irregularidades que não interferiam na validade ou eficácia do casamento, e tinham por corolário único a aplicação de sanções civis.
No código vigente, há uma separação entre impedimentos e causas de suspensão. Os impedimentos correspondem aos impedimentos dirimentes. O rol de sete incisos do artigo 1.521 corresponde ao do artigo 183 do revogado código, com pequenas modificações de redação, salvo a menção do inciso VII do dispositivo revogado109. Mantendo a mesma disciplina do revogado Codex, tais impedimentos poderão ser opostos por qualquer pessoa capaz, pelo oficial e pelo juiz, que estão obrigados a "declará-los".
As causas suspensivas, de seu turno, correspondem parcialmente as irregularidades do artigo 183 do revogado código. O inciso I do artigo 1.523 corresponde ao inciso XIII do artigo 183. O inciso II, ao inciso XIV, sem a ressalva que antes constava "salvo se antes de findo este prazo der a luz a um filho". O inciso III refere-se ao divorciado, enquanto não ultimar a partilha dos bens. Não tinha igual dispositivo o código anterior, até porque não previa o divórcio. O inciso IV corresponde ao inciso XVII do artigo 183. As demais hipóteses, ou seja, os impedimentos impedientes, não se repetiram na nova legislação.
As causas suspensivas dos incisos I, II e IV podem ser afastadas a pedido dos nubentes desde que comprovada a ausência de prejuízo para o herdeiro, o ex-cônjuge e tutelado ou curatelado. No caso do inciso II, a aplicação da causa suspensiva fica afastada se comprovado o nascimento de filho ou a inexistência de gravidez.
Assim como ocorria no artigo 190 do código de 1916, as causas suspensivas somente poderão ser opostas pelos parentes em linha reta de um dos nubentes, consangüíneos ou afins, e colaterais, até segundo grau, sejam consangüíneos ou afins.
29.2. Habilitação e Celebração
Antes da celebração, os nubentes sujeitam-se a um processo ou procedimento administrativo de habilitação, iniciado por um requerimento, que após vista ao Ministério Público, é homologado pelo juiz, seguindo-se a publicação de edital (proclamas). Opostos impedimentos ou causas de suspensão, aos nubentes será concedida ciência, para que possam, querendo, fazer prova contra em prazo razoável. Não havendo oposição ou se rejeitada, será extraída certidão de habilitação com eficácia de 90 dias a contar da data de extração.
No que tange à celebração, notam-se poucas alterações. Continua podendo ser realizada na repartição própria (agora indicada como sede do cartório) ou em outro local, público ou particular. No caso de realização na sede do cartório, há necessidade de duas testemunhas. Se em edificação particular, são quatro as testemunhas. Qualquer que seja o local escolhido, deverá ter acesso franqueado durante a realização do ato.
Os impedimentos e as causas de suspensão poderão ser argüidos até o momento da celebração, através de declaração escrita e assinada, com indicação de provas ou de onde obtê-las (art. 1.546). O casamento, uma vez celebrado, é registrado pela lavratura de assento em livro próprio, nos termos do artigo 1.536, do qual é extraída certidão. Havendo necessidade de autorização, esta será integralmente transcrita na escritura antenupcial. É admissível que os nubentes sejam representados por procuração, constituída por instrumento público e com poderes especiais, cuja eficácia não poderá ultrapassar a 90 dias. A revogação, que também deve ser procedida por instrumento o público, não precisa chegar ao conhecimento do mandatário, mas a celebração do casamento sem ciência da revogação, embora ineficaz sujeitará o mandante a perdas e danos.
O casamento nuncupativo foi mantido, assim como a possibilidade de sua realização por procuração, sujeitos a posterior registro e confirmação.
A prova do casamento continua a ser, em regra, a certidão do respectivo registro, admitindo-se , por exceção, qualquer outra espécie de prova (art. 1.543), Se celebrado no estrangeiro, perante autoridade local ou consular brasileira, deverá, para lograr reconhecimento no Brasil, ser levado a registro até 180 dias após o retorno de um ou de ambos os cônjuges, junto ao cartório do domicílio ou da capital do Pais.
Também foi mantida a previsão do reconhecimento da "posse do estado de casado", antes prevista no artigo 203 do revogado código.
29.3. Invalidades
O tratamento conferido às invalidades do casamento é um tanto diverso, começar pela nomeclatura do capítulo, que é mais técnica110. No revogado código, o artigo 207 cominava nulidade à infringência dos incisos I a VIII do artigo 183, além do celebrado perante autoridade incompetente.111
No código vigente, o artigo 1.548 inquina de nulidade o casamento que infringir impedimento e o que for contraído por enfermo mental sem discernimento para os atos da vida civil. Esta nulidade poderá ser promovida por ação, sendo legitimados quaisquer interessados e o Ministério Público. Já o rol das anulabilidades está no artigo 1.550 e compreende: não implementação da idade núbil; falta de autorização dos pais ou responsável; vício da vontade; incapacidade para consentir ou manifestar de modo inequívoco o consentimento; celebrado por mandatário após revogação do mandato, ou após decreto de invalidade judicial deste, desde que não tenha havido coabitação dos cônjuges; e incompetência da autoridade celebrante.
Mas estas anulabilidades comportam temperamentos na sua aplicação. A idade, por exemplo, não é motivo para invalidação de casamento de que tenha resultado gravidez. Da mesma forma, não obstante contraído por menor que não está na idade núbil, pode o matrimônio ser convalidado ao atingir esta idade, seja com autorização dos pais ou suprimento judicial (art. 1553). O erro que justifica a anulação é o essencial, somente, na forma do artigo 556, observadas as delimitações do artigo 1.557. A falta de autorização dos pais ou responsável não pode ser invocada se estes estavam presentes, e sempre condicionada ao prazo decadencial de 180 dias, contados na forma do § 1º do artigo 1.555.
A boa-fé também é fator que interfere na possibilidade de convalidação de casamentos nulos ou anuláveis. Se ambos os cônjuges estão de boa fé, o casamento, seja nulo ou anulável, surte efeitos perante eles e os filhos até sentença de invalidade. A má-fé, por outro lado, torna os efeitos exclusivos ao filho ou ao cônjuge inocente.
O artigo 1.560 elenca os prazos a que se sujeitam as ações declaratórias de invalidade, em conformidade as espécies de causa de pedir. No caso de revogação ou invalidação do mandato, e de idade inferior a 16 anos, é de 180 dias. É de dois anos em caso de incompetência da autoridade celebrante. Nas hipóteses de erro essencial quanto ao cônjuge (artigo 1.557) é de quatro anos.
29.4. Efeitos do Casamento
Nos efeitos do casamento, mais uma vez se observa a intenção de afastar fórmulas antigas que consagravam injustificada desigualdade em relação á mulher. Na redação do artigo 240, com o casamento, a mulher assumia a condição de colaboradora do marido, devendo velar pela direção material e moral da família e podendo acrescer os apelidos do marido.
A dicção do artigo 1.565 coloca homem e mulher em condições de plena igualdade no que diz respeito ao seu papel na relação matrimonial. Tanto assim é, que o artigo 1.566 fala em deveres dos cônjuges, não havendo mais um capítulo "dos direitos e deveres da mulher".
Da mesma forma, qualquer dos dois cônjuges poderá acrescer o nome do outro.112 O parágrafo segundo deste artigo 1.565 expressamente afasta a compulsória ingerência do Estado no planejamento familiar. A ação do Estado nessa área não fica inviabilizada. O que ocorre é que o Estado não poderá intervir na livre disposição acerca do planejamento familiar. Pode e deve, porém, atuar de forma educativa, com campanhas publicitárias, inserção do tema na formação escolar etc...
A direção da sociedade conjugal não é mais direito exclusivo do cônjuge varão. Deve ser exercida por ambos, em concorrência, cabendo recurso ao juiz em caso de divergência intransponível. A mesma igualdade vale para a escolha do domicílio e na obrigação de concorrer para o sustento familiar.
A possibilidade de administração exclusiva da sociedade conjugal existe, no entanto, para qualquer dos cônjuges quando o outro "estiver em lugar remoto ou não sabido, encarcerado por mais de cento e oitenta dias, interditado judicialmente ou privado, episodicamente, de consciência, em virtude de enfermidade ou de acidente."(art. 1.570).
29.5. Separação e Divórcio
No capítulo destinado à dissolução da sociedade e do vínculo conjugal, o código nada mais fez do que encampar o que já constava da Lei de Divórcio (Lei nº 6.015/77. As hipóteses de extinção da sociedade conjugal previstas no artigo 1.571 são as mesmas estabelecidas no artigo 2º da Lei nº 6.515/77.
A separação põe fim a sociedade conjugal, mas não ao vínculo matrimonial, de modo que o separado não pode, por exemplo, casar-se novamente. Poderá ser consensual ou litigiosa.
Três espécies de causas de pedir podem embasar a separação, quais sejam: a) imputação ao outro cônjuge de ato que importe grave violação dos deveres do casamento que tornem a vida insuportável (litigiosa); b) ruptura da vida comum a mais de um ano com impossibilidade de reconstituição; c) quando o outro estiver acometido de doença mental grave, manifestada após o casamento, que torne impossível a continuação da vida em comum, desde que, após uma duração de dois anos, a enfermidade tenha sido reconhecida de cura improvável (denominada de separação remédio). Estas hipóteses, hoje presentes no artigo 1.572 correspondem às declinadas no artigo 5º da Lei nº 6.515/77.
As hipóteses que podem caracterizar violação grave dos deveres conjugais estão determinadas no artigo 1.573 e incluem adultério, sevicias conduta desonrosa etc. Tais causas, porém, não são exclusivas, podendo ser reconhecidas outras que tornem "evidente" a impossibilidade de vida comum. 113
Em caso de reconhecimento da culpa de um dos cônjuges, perderá o direito de usar o nome do outro, mas para tanto é mister pedido do inocente e não acarretar: "evidente prejuízo para a sua identificação; manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida; dano grave reconhecido na decisão judicial" (art. 1.578).
A alegação de impossibilidade de reconstituição da vida em comum mencionada no parágrafo primeiro do artigo 1.572 não carece de comprovação cabal ab initio. Para legitimar o pedido, basta a mera invocação de uma causa plausível. A ocorrência ou não dos fatos invocados e o dimensionamento de sua repercussão serão resolvidos na sentença.
Após um ano de ruptura da vida conjugal, podem os cônjuges requerem a separação consensual, a qual poderá, porém, ser denegada se apurado que não preserva os direitos dos filhos ou de um dos cônjuges. 114
A sentença de separação implica separação de corpos e partilha de bens, pondo termo aos deveres de coabitação, fidelidade recíproca e regime de bens. O procedimento, na incapacidade de um ou mesmo de ambos os cônjuges, poderá ser iniciado e conduzido por curador, ascendente ou irmão. Enquanto não decretado o divórcio, a sociedade poderá ser reconstituída mediante pedido simples dos cônjuges.
Decorrido prazo de um ano da sentença de separação ou da ou da decisão que concedeu separação de corpos, ou, ainda, dois anos de separação de fato, poderá ser pedido o divórcio, pedido que é exclusivo dos cônjuges. A decretação do divórcio põe termo ao vínculo matrimonial, mas não altera os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos (art. 1.579).
Aliás, em caso de separação ou divórcio, ou mesmo em caso de separação de corpos, a guarda dos filhos irá ser determinada pelas condições financeiras, emocionais e morais dos cônjuges, não estando o magistrado adstrito ao que acordarem se tais disposições prejudicarem os interesse dos filhos menores ou maiores incapazes. O direito de visitas aos filhos é assegurado para aquele que não tiver a sua guarda.
A partilha de bens não é requisito para a separação ou divórcio, embora seja conveniente que a providência seja tomada por ocasião da primeira.