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A escravidão institucionalizada?

06/09/2005 às 00:00
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No ano de 2004, a imprensa divulgou fato ocorrido na cidade de Unaí, no noroeste mineiro, que teve grande repercussão nacional. A morte de fiscais do Ministério do Trabalho foi o estopim de uma investigação que envolveu o maior produtor de feijão do país. O inquérito, segundo fontes da imprensa, leva à conclusão que o assassinato se deu por interesse de manutenção de trabalhadores em condições análogas a de escravos.

O que se percebe, nesse contexto, é um enfraquecimento do Estado, iniciado pelo liberalismo econômico, criando-se uma idéia, entendida como falsa por uns ou não, por outros, de que o Estado deve intervir minimamente na vida das pessoas. Então, o Estado passa a ser desafiado por todos, sejam traficantes, sejam fazendeiros, sejam "sem-terra", e outros.

A condição análoga a de escravo, segundo a maioria dos doutrinadores, e citando o especialista Damásio, encontra-se no fato de "o sujeito transformar a vítima em pessoa totalmente submissa à sua vontade, como se escravo fosse". 01

Ora, a escravidão contemporânea é diferente da antiga, não obstante roubar a dignidade da pessoa humana da mesma forma. Veja que no sistema antigo a propriedade de um escravo era permitida por lei, o que não ocorre nos dias atuais. Ainda, era muito mais caro comprar um escravo e mantê-lo à época, do que nos dias atuais, já que o custo hoje é quase zero.

A agência de notícias Carta Maior traz um dossiê 02 do trabalho escravo no Brasil. Assim esclarece sobre a escravidão hodierna: "Na escravidão contemporânea, não faz diferença se a pessoa é negra, amarela ou branca. Os escravos são miseráveis, sem distinção de cor ou credo. Porém, tanto na escravidão imperial como na do Brasil de hoje, mantém-se a ordem por meio de ameaças, terror psicológico, coerção física, punições e assassinatos."

No mesmo diapasão, há pouco tempo a revista Época publicou: "Em troca de R$ 25,00 por dia, o grupo arrancava raízes da terra arada para receber sementes de capim. A jornada de trabalho era de dez horas diárias, com intervalo de uma hora para almoço, invariavelmente sob o sol inclemente do cerrado. Pelas três refeições diárias – um copo de café pela manhã e carne e arroz mal cozido no almoço e no jantar – o patrão descontava R$ 10,00. Sem carteira assinada, não tinham direito a descanso no fim e semana(...)" 03.Em poucas palavras, o cidadão citado na entrevista recebia um total de R$ 450,00 por mês.

Mas existe uma categoria no Brasil que não pode ser olvidada neste contexto de escravidão, semi-escravidão ou situação análoga. Sob um manto de legalidade, também sofrem coerções físicas, punições e baixa remuneração de seu trabalho. Eles são os cidadãos que prestam o serviço militar obrigatório.

Recebendo como soldo o montante de R$ 168,00, atualizado pela Medida Provisória n.º 215, de 16 de setembro de 2004, o que equivale a R$ 5,06 por dia de trabalho, considerando-se os mesmos trinta dias, chegam a trabalhar vinte e quatro horas ininterruptas, como se verá mais adiante. Note-se que a Medida Provisória atualizada foi a de n.º 2.215-10, de 31 de agosto de 2001, até hoje não apreciada pelo Congresso, demonstrando a menor importância dada aos militares brasileiros.

O salário mínimo no Brasil, desde maio de 2005, é de R$ 300,00. A diferença é gritante, mais de cem reais. Mais tudo isso tem uma explicação, pelo menos legal. A Constituição Federal de 1988, chamada de "Constituição Cidadã", estipulou algumas regras especiais para os militares das Forças Armadas e especialmente para os recrutas, também conhecidos como conscritos, ou seja, aqueles que prestam o serviço militar obrigatório.

Em primeiro lugar, tratou de negar-lhes o alistamento eleitoral, conforme preceitua o Art 14, § 2º daquela Carta Política, apesar de o alistamento eleitoral ser possível a partir dos dezesseis anos e o serviço militar obrigatório ser aos dezoito anos. O TSE, em interpretação do Exmo Sr Ministro Nilson Naves, assim estabeleceu:

"Uma vez que a Constituição Federal, em seu Art 14, § 2º estabeleceu vedação aos conscritos para o alistamento eleitoral, pressuposto para o exercício da capacidade eleitoral, entendo cabível a manutenção do impedimento do voto aos conscritos já alistados, na forma da reiterada jurisprudência dessa c. Corte."

(PA 16337, Resolução n.º 20165, 07.05.98, Relator: Ministro Nilson Naves, Publicado no Diário de Justiça, Data 14/05/1998, Página 85.)

Entendo que a plenitude do gozo dos direitos políticos é o que deve prevalecer. Um cidadão é arquitetado pela pertinência desses direitos. Ainda, o art 15 da Constituição Federal indica os casos em que os direitos políticos serão perdidos ou suspensos, não se encontrando nelas a situação de conscrição. Na mesma linha de interpretação, vê-se que o § 1º do art 14 cita o alistamento eleitoral e o voto, enquanto o § 2º fala apenas de alistamento.

Algumas regras, como a proibição de sindicalização e greve ou filiação a partidos políticos são estabelecidas por motivos óbvios. Outras, nem sempre são facilmente entendidas, como a proibição do voto e a proibição de habeas corpus para punições disciplinares 04.

Muitos citam que a hierarquia e a disciplina precisam ser mantidas, pois são pilares constitucionais das Forças Armadas, justificando a proibição do citado remédio jurídico. Obviamente uma punição injusta no mérito, questionada em sede de habeas corpus seria uma afronta à hierarquia e a disciplina, seguindo-se a linha de raciocínio de quem defende tal proibição.

Citei "no mérito", uma vez que os tribunais já pacificaram entendimento que é possível impetrar habeas corpus para punições disciplinares militares, quanto às questões formais, mas não quanto ao mérito.

Ainda, a Constituição deixou claro que "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei." O uso do singular e do plural no texto Constitucional já nos deixa claro que tanto o crime propriamente militar quanto a transgressão militar devem ser estabelecidos em lei para ensejar o cerceamento de liberdade do indivíduo. Note-se que somente os militares podem cometer ambas as transgressões citadas, enfatizando a teoria do "sub-cidadão".

Ora, os regulamentos disciplinares das Forças Armadas são, sem exceção, decretos, exarados pelo Presidente da República. Quando a constituição se refere ao termo "lei", deve-se interpretar sob o ponto de vista de lei formal, aprovado pelo Congresso Nacional e sendo observado todo o processo legislativo constitucionalmente previsto. É inadmissível que matéria destinada a ser regulada por lei, seja regulada por uma única autoridade não legitimada para tal ato. Não vou me aprofundar na matéria já que esta é objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade e em breve teremos a decisão do Supremo Tribunal Federal quanto a isto.

Em termos teóricos, já ficou claro que se torna difícil considerar um militar que esteja prestando seu serviço militar inicial como um verdadeiro cidadão, por mais que o atual Governo Federal se empenhe em produzir a imagem do "soldado cidadão".

E isto fica ainda mais claro quando lemos o art 142 da Constituição Federal. Mais especificamente os inciso VIII e X, ambos do § 3º. No primeiro inciso são enumerados os direitos dos trabalhadores, previstos no art 7º da Carta Magna, que se aplicam aos militares. Por exclusão podemos perceber que aqueles dispositivos não citados não se aplicam aos militares, entre estes: fundo de garantia do tempo de serviço; salário mínimo; garantia de salário nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta horas semanais; remuneração ao serviço extraordinário superior, no mínimo em cinqüenta por cento à do normal, entre outros. Estes são os principais.

Talvez por causa dessas disposições constitucionais nós vemos regulamentações da seguinte forma: "O horário da vida diária da unidade, compreendendo serviços, instrução, expediente, rancho etc, é estabelecido pelo Cmt U (...)" 05. Ou ainda: "O serviço interno abrange todos os trabalhos necessários ao funcionamento da unidade e compreende o serviço permanente e o serviço de escala.(...) § 3º O serviço de escala interno tem a duração de vinte e quatro horas (...)" 06.

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É certo que uma Força Armada não pode ficar presa a horários de funcionamento como se fosse uma repartição pública, por causa de sua destinação constitucional. Mas também é certo que o serviço de escala dura vinte e quatro horas e após segue-se o expediente normal da Unidade Militar, o que pode perfazer um total de 32 horas contínuas de trabalho, sem qualquer acréscimo salarial ou de descanso, vindo a ser desumano.

Além de não ter acréscimo salarial, os recrutas recebem soldo inferior a um salário mínimo, como fica claro no texto da Medida Provisória n.º 2.215-10, de 31 de agosto de 2001, que abaixo transcrevo:

"Art. 18. Nenhum militar ou beneficiário de pensão militar pode receber, como remuneração, proventos mensais ou pensão militar, valor inferior ao do salário mínimo vigente, sendo-lhe paga, como complemento, a diferença encontrada.

1o A pensão militar de que trata o caput deste artigo é a pensão militar tronco e não as cotas partes resultantes das subdivisões aos beneficiários.

2o Excluem-se do disposto no caput deste artigo as praças prestadoras de serviço militar inicial e as praças especiais, exceto o Guarda-Marinha e o Aspirante-a-Oficial."(grifei)

Por fim, deixo o pequeno artigo para pensarmos a respeito. Até que ponto temos envergadura moral para condenarmos uma situação de semi-escravidão quando isso ocorre bem próximo a nós, em instituições públicas, sem que nós nos manifestemos? Há não muito tempo o acoite era um castigo legalmente aceito, o que gerou a chamada "revolta da chibata". A sociedade brasileira deve olhar melhor para seus filhos uma vez que muitos procuram as Forças Armadas como válvula de escape, seja pelo problema do desemprego, seja para o combate a criminalidade.


Notas

  1. JESUS, Damásio E. de. Código Penal Anotado. 5. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 149.

  2. Agência de Notícias Carta Maior . <https://reporterbrasil.org.br/2003/12/nova-escravidao-e-mais-vantajosa-para-patrao-que-a-da-epoca-colonial>. Acesso em 15 dez. 2004.

  3. ARANHA, Ana. Escravos nas Terras do Prefeito. Época, São Paulo, n.º 343, p.42, 13 dez. 2004.

  4. Constituição da República Federativa do Brasil, art 142, § 2º.

  5. Regulamento Interno e dos Serviços Gerais, aprovado pela Portaria n.º 816, de 19 de dezembro de 2003, art 177. A abrviação Cmt U significa Comandante de Unidade.

  6. Idem, Art 192. Ainda, "Art. 188. Serviço de escala é todo o serviço não atribuído permanentemente à mesma pessoa, ou fração de tropa, e que não importe em delegação pessoal ou escolha(...)".

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Sobre o autor
Josué Teixeira

advogado em Brasília (DF)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TEIXEIRA, Josué. A escravidão institucionalizada?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 797, 6 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7245. Acesso em: 22 dez. 2024.

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