Apontamentos sobre a nova proposta de Reforma da Previdência (PEC 06/2019)

07/03/2019 às 14:24
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Neste artigo, propõe-se a análise de aspectos da proposta de Reforma da Previdência, em especial sobre as mudanças nas idades mínimas e as situações jurídicas de professores, servidores públicos e rurais, além de benefícios como o BPC e o abono salarial.

INTRODUÇÃO

Com a apresentação da proposta de Reforma da Previdência pelo novo governo, é natural o surgimento de várias dúvidas. Por entender ser oportuna a realização de alguns apontamentos sobre o tema, parti de algumas reportagens e estudos já publicados, acrescentei e concentrei outras informações, embora sem esgotar todos os detalhamentos possíveis, para priorizar uma análise mais direta de cada ponto.

Ressalto, de início, que não pretendo, neste espaço, dar um viés político ao tema. Entendo até que é necessária uma reforma da Previdência, especialmente pela mudança do perfil etário da população brasileira — agora mais idosa — mas, definitivamente, não esta reforma que está aí.

Da forma como anunciada, a proposta de reforma da Previdência (PEC 06/2019) é, por incrível que possa parecer, mais agressiva que a apresentada antes pelo governo Temer, e contém uma série de pontos bastante questionáveis e preocupantes — talvez não perceptíveis à primeira vista. Vou enumerar alguns.

BPC PAGO A PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Benefícios de prestação continuada (BPC) assegurados às pessoas com deficiência (e integrantes do cadastro único, das famílias mais pobres), no valor de um salário mínimo, serão cortados caso a família tenha um patrimônio de, no mínimo, R$ 98.000,00. Isso significa, na prática, que, por exemplo, se uma mãe tiver uma casa humilde em uma comunidade neste valor (o que pode ocorrer, dependendo do lugar), perderá o benefício pago ao seu filho com deficiência!

IDOSO SÓ PODERÁ RECEBER BPC NO VALOR DE UM SALÁRIO A PARTIR DE 70 ANOS

Idosos pobres que integram o CAD único só receberão um salário mínimo a título de BPC quando completarem 70 anos (atualmente, já conseguem receber o benefício a partir de 65 anos). Com a reforma, entre 65 e 70 anos, passarão a receber apenas 400 reais e não mais 998 reais, atual salário mínimo. Ainda que o “benefício” dos 400 reais passe a ser pago também a partir dos 60 anos, o pagamento de 598 reais mensais a menos para quem tem entre 65 e 70 anos e já é muito pobre, por certo, poderá significar muito. Será difícil se manter com 400 reais por um mês sem ir para as ruas.

Para piorar a situação, esses 400 reais não estão vinculados a um indexador, o que pode fazer com que, em breve, valham ainda menos.

RESTRIÇÃO DO ABONO SALARIAL

A reforma restringe o benefício do abono salarial do PIS/PASEP, atualmente pago no valor de um salário mínimo anual para quem recebe até dois salários mínimos por mês, apenas a quem recebe até um salário mínimo. Com isso, 91,5% das pessoas que recebem o abono, ou seja, cerca de 23,4 milhões de trabalhadores, perderão o benefício. Em poucas palavras: economia de recursos, retirando de quem já ganha pouco.

IMPLANTAÇÃO DO REGIME DE CAPITALIZAÇÃO

Ao contrário do regime atual de repartição, que preza pela solidariedade e se baseia na lógica simples de que aqueles que estão na ativa ajudam a arcar com os benefícios daqueles que já se aposentaram, o regime de capitalização surge como uma forma de estímulo do individualismo: cada contribuinte tornar-se-á responsável pela própria aposentadoria.

 O nome pomposo e a aparente possibilidade de cada um ter benefícios condizentes com os próprios esforços podem parecer atrativos, mas os resultados da experiência com esse regime ao redor do mundo não são nada animadores. Pelo contrário, no México, por exemplo, apenas três em cada dez trabalhadores recolhem para a Previdência; na Colômbia, somente 35% das pessoas têm algum tipo de Previdência. No Chile, 90% (isso mesmo: 90%) dos aposentados ganham menos de um salário mínimo por mês!

No Chile, aliás, são usuais as notícias de suicídios de idosos que não suportam a ideia humilhante de terem que ser sustentados pela família, após trabalharem por tanto tempo.

Não é despiciendo mencionar, ademais, que, nesse regime, o aposentado receberá o benefício de acordo com o que tiver contribuído, mas estará sujeito ao severo risco de ficar sem nada ou ter diminuição drástica no seu benefício, caso sobreviva por tempo suficiente para esgotar a reserva que tiver formado. Noutros dizeres: aquele que "viver demais" poderá ficar sem recursos ou ter sensível redução destes exatamente quando estiver mais idoso e — provavelmente — mais necessitar deles. Ainda se discute a possibilidade de garantia de uma renda mínima nesses casos, o que, todavia, não afasta o problema e ainda deverá ser objeto de lei a ser editada posteriormente.

 A ideia do regime de capitalização, a bem da verdade, tende a favorecer largamente os bancos, ávidos para administrarem esses fundos e, ainda, oferecerem planos de previdência privada com elevadas taxas de administração a quem tiver condições e interesse de se sujeitar a eles.

IDADES MÍNIMAS E TEMPO MÍNIMO DE CONTRIBUIÇÃO

A reforma altera de 60 para 62 anos a idade mínima para mulheres, mantém em 65 anos a idade mínima para homens e passa o tempo mínimo de contribuição para ambos de 15 para 20 anos, não permitindo mais que homens e mulheres se aposentem com 35 e 30 anos de contribuição, respectivamente, sem idade mínima. Acaba, ademais, com a possibilidade alternativa de aposentadoria pelo sistema de pontos 86/96 (que somava idades e tempo de contribuição, favorecendo quem começou a trabalhar muito cedo e evitando o desconto do “fator previdenciário”, obtido por cálculo do IBGE que leva em conta a idade, o tempo de contribuição e a expectativa de vida do trabalhador no momento da aposentadoria, além de uma alíquota de contribuição).

Na minha opinião, isso é particularmente nocivo, se pensarmos que, em um país tão desigual como o Brasil, é natural que grande parte da população comece a trabalhar bem cedo, muitas vezes sem qualquer registro. Agora, mesmo que a pessoa tenha começado a trabalhar, por exemplo, aos 18 anos, terá que ter, no mínimo, 62 anos para se aposentar, se for mulher, ou 65 anos, se for homem. Alguns certamente nem chegarão a essas idades, até pelo grande desgaste sofrido no decorrer da vida. A propósito, em cerca de 53% dos municípios brasileiros, a expectativa de vida nem ultrapassa 65 anos.

Estão previstas, ainda, regras de transição (começa a idade mínima em 61 para homens e vai aumentando em seis meses a cada ano até chegar a 65 anos nos próximos 8 anos, e começa em 56 para mulheres e vai aumentando em seis meses a cada ano até chegar a 62 anos nos próximos 12 anos), mas essa é a ideia. Um novo sistema de pontos também estará disponível, começando em 86/96 até atingir 100/105 para mulheres e homens, respectivamente, mas não poderá mais ser usado ao final da transição.

A reforma acrescenta que, se a pessoa quiser se aposentar com a média de tudo que contribuiu, terá que trabalhar por pelo menos 40 anos. Em um país no qual o desemprego é recorrente, com dificuldades para pessoas trabalharem continuamente por tanto tempo, sobretudo após já estarem com mais de 50 anos, isso pode significar, na prática, que várias delas não poderão se aposentar.

Agrava esse quadro, ainda, a possibilidade de aumento das idades mínimas a cada 4 anos, conforme a ampliação da expectativa de vida.

Para o economista e professor da Unicamp, Eduardo Fagnani, em entrevista ao jornal dessa mesma universidade, com os impactos da reforma trabalhista e o já existente aumento de trabalhos temporários e intermitentes, será difícil que a maior parte dos trabalhadores consiga atender aos requisitos necessários para se aposentar. Entende que estamos seguindo um caminho em que, daqui a cerca de 20 anos, aproximadamente 70% dos trabalhadores não deverão conseguir ter acesso à Previdência.

PEDÁGIO PARA QUEM ESTÁ PRESTES A SE APOSENTAR

Para aqueles que estão a apenas dois anos da aposentadoria por tempo de contribuição, estará prevista outra regra de transição, que também considero demasiado rígida: trata-se de uma espécie de “pedágio”. Nesse caso, a pessoa apenas poderá se aposentar caso trabalhe por pelo menos mais metade do tempo que faltava.

Assim, com a mudança, para se aposentar, a título de exemplo, um trabalhador que está a dois anos da aposentadoria sem considerar a idade mínima terá que trabalhar não mais por dois, mas por, pelo menos, mais três anos. Importante salientar ainda que, nessa hipótese, o valor do benefício deverá ser diminuído pelo "fator previdenciário".

IDADES MÍNIMAS PARA PROFESSORES

Historicamente sempre remunerados muito abaixo do que mereceriam, até pela relevância de sua atuação, os professores que comprovavam exclusivo tempo de contribuição à frente da educação infantil e no ensino fundamental e médio podiam usufruir de uma pequena concessão legal.

Na rede privada, não havia idade mínima. Para a aposentadoria, bastaria a comprovação de 25 anos de contribuição, para mulheres, e de 30 anos, para homens.

Já na rede pública, mulheres podiam se aposentar com 50 anos de idade e 25 anos de contribuição, e homens podiam se aposentar com 55 anos e 30 anos de contribuição.

Agora, para se aposentarem, tanto professores homens como mulheres que atendam aos requisitos mencionados terão de estar, com, no mínimo, 60 anos de idade, contando com 30 anos de contribuição.

O que mais chama a atenção é a falta de respeito à necessária isonomia do aumento da medida entre homens e mulheres. Enquanto homens terão que trabalhar mais 5 anos — o que já é muito — as professoras mulheres terão que trabalhar pelo menos por mais 10 anos, para se aposentarem! Não entendo a razão do aumento de exigências no setor, prejudicando sobretudo professoras mulheres.

SERVIDORES PÚBLICOS

Não quero falar em causa própria. Não é apenas por ser servidor público que eu vou tratar do tema, mas a reforma pode impactar muito negativamente o setor, como se já não bastasse a manutenção da Emenda Constitucional 95, que congela os investimentos públicos por 20 anos. Com base em informações difundidas sobre uma suposta responsabilidade maior do setor pelo alegado déficit previdenciário, a reforma agrava, ainda mais, as medidas contra todos aqueles que decidiram se dedicar a uma carreira pública (e, portanto — e, ao final, embora isso seja óbvio — para atender ao público que precisar dos seus serviços), após muitos anos de estudo e dedicação (em regra).

Com aumentos de alíquotas absurdamente altos (chegando a variar entre 3% e 11% em muitos casos), a reforma promove verdadeiro confisco nos salários de muitos na categoria, chegando ao ponto de dobrar a contribuição previdenciária de alguns.

A reforma traz, ainda, possibilidades de alíquotas adicionais progressivas e extraordinárias, conforme a necessidade atuarial (algo que traz imensa — e inconstitucional — insegurança jurídica), além de tornar o abono de permanência facultativo (medida atual que é importante para incentivar a continuidade de servidores na ativa e evitar gastos maiores com a sua substituição).

Nesse contexto, é importante destacar que, na maior parte do tempo, ao contrário dos trabalhadores da iniciativa privada, os servidores sempre contribuíram em relação a todo o salário e não apenas até o teto e já passaram por várias reformas estruturais. Ao reverso do que é divulgado por muitas vezes, a propósito, os servidores já não contam com possibilidade de aposentadoria integral desde a emenda constitucional 41, de 2003. Noutras palavras, até tinham condições melhores de aposentadoria, mas sempre pagaram bem mais por isso. 

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Oportuno frisar, aliás, que, também a partir da citada emenda 41, todos servidores públicos aposentados passaram a pagar contribuição previdenciária em relação à parte do benefício que exceda o teto — informação que costuma ser omitida pelos defensores da existência de um déficit maior no setor.

Desde 05/02/2013, inclusive, quem ingressa no serviço público já fica limitado ao teto e apenas poderá se aposentar em melhores condições se aderir a um fundo complementar de aposentadoria, conforme o regramento da Lei 12.618, de 2012.

Bom realçar ainda que, dependendo da remuneração, servidores já pagam até 27,5% de imposto de renda. Esse montante, aliado a um desconto de, por exemplo, 14%, 16,5%, 19% ou até 22% pode significar, na prática, que quase metade do salário estará sendo retirado do servidor, possibilidade inexistente para o restante da população.

E, quando digo que pagam impostos, pagam mesmo. É bom lembrar também que, ao contrário de muitos profissionais liberais, servidores públicos são descontados na fonte, isto é, só recebem o que sobra após a dedução dos descontos fiscais e previdenciários. Na prática, portanto, com o aumento de alíquotas, terão seus salários fortemente reduzidos. Por outro lado, é de conhecimento notório que vários profissionais liberais recebem rendimentos astronômicos, mas sonegam diariamente, pois oferecem serviços sem prestarem recibos (alguns apresentam isso como vantagem aos clientes: oferecem o serviço sem recibo, reduzindo um pouco o valor, para, assim, não declararem o que recebem ao Imposto de Renda).

MILITARES

Mesmo sendo também servidores públicos (em sentido amplo), e responsáveis por quase metade do mencionado déficit da Previdência (em 2015, respondiam por mais de 44% do alegado rombo, conforme estudos de consultoria divulgados à época), os militares ainda estão fora da reforma.

Essa categoria de servidores tem peculiaridades que a tornam, inclusive, mais onerosa aos cofres públicos, já que, em regra, eles começam a contribuir cedo e, por conseguinte, aposentam-se também cedo, após 30 anos de serviço, ainda com direito a integralidade e paridade.

Não bastasse, por previsão legal, em caso de morte, caso tenham sido admitidos nas Forças Armadas antes de 29/12/2000 e tenham optado por pequena contribuição adicional de 1,5%, podem deixar a aposentadoria a filhas em forma de pensão, que continua sendo paga, independentemente da idade destas (Lei nº 3.765/1960, com redação da MP nº 2.215/2010). Estima-se que o custo com tais pensões, atualmente, seja de 6 bilhões anuais.

Os reformistas dizem que os militares vão entrar em outra fase da Previdência, mas, considerando a atual força política do grupo, entendo que, na melhor das hipóteses, até terão suas regras alteradas, mas isso deverá ocorrer de forma bem mais amena. A ver.

APOSENTADORIA RURAL

As mulheres, por mais uma vez, também foram vítimas de discriminação neste ponto. Antes, os trabalhadores rurais podiam se aposentar com 60 anos, se homens e 55, se mulheres, com 15 anos de contribuição mínima. Com a mudança, além dos homens, as mulheres também terão que ter, pelo menos, 60 anos de idade, com o mínimo de 20 anos de contribuição, para poderem se aposentar nesse caso.

A proposta é ainda mais digna de crítica neste ponto, porque, no regime atual, trabalhadores rurais considerados segurados especiais (que atendam a determinados requisitos legais e ganham de acordo com a produção) podem se aposentar comprovando quinze anos de atividade rural, isto é, não precisam necessariamente contribuir. Isso se justifica, já que esses trabalhadores rurais, por muitas vezes, estão sujeitos a sazonalidades de safras. Ora, conseguem mais, ora menos. Com a reforma, isso acaba, pois, para se aposentarem, esses trabalhadores considerados segurados especiais terão que contribuir com, no mínimo, 600 reais anuais, mesmo quando não tenham tido produção suficiente.

Importante lembrar que atividades rurais ainda costumam ser marcadas por grande informalidade, sobretudo em localidades mais afastadas do norte e do nordeste, onde trabalhadores dificilmente conseguem recolher contribuições por pelo menos 20 anos.

Logo, as mudanças penalizam muito os trabalhadores rurais, em especial, as mulheres.

 REDUÇÃO DRÁSTICA NAS PENSÕES POR MORTE e PENSÕES POR INVALIDEZ

Segundo o sistema atual, a viúva ou o viúvo, ao lado dos órfãos, recebem 100% da aposentadoria que aquele que morreu recebia. Com a reforma, o valor começará em 60% e só aumentará 10% por cada dependente.

Dá para imaginar que famílias mais pobres, sobretudo, sofrerão, também, grande impacto, a não ser que a viúva tenha, no mínimo, mais quatro dependentes com ela.  Não custa lembrar que, por muitas vezes, as pensionistas são mulheres que precisam cuidar de outros familiares após a morte do marido, que, usualmente, era quem mais levava dinheiro para casa.

Além disso, atualmente, as pessoas que se aposentam por invalidez conseguem se aposentar com 100% da média dos seus salários. Com a reforma, a aposentadoria por invalidez só será de 100% da média salarial caso o afastamento esteja relacionado a acidentes de trabalho ou doenças que resultem do trabalho. Nos demais casos, o beneficiário receberá apenas 60% da média, em regra, ou seja, terá uma redução de quase metade nos seus ganhos para lidar com uma eventual situação de invalidez não relacionada ao trabalho (E o detalhe ainda mais perverso é que essa regra também valerá para pessoas que adquiram deficiências).

DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO

Outra potencial mudança de gravíssimo impacto para toda a Previdência —  tanto no Regime Geral,  aplicável à iniciativa privada, quanto no Regime Próprio, que rege o setor público — é a desconstitucionalização das regras previdenciárias. Isso quer dizer que, uma vez aprovada a reforma, as futuras mudanças na Previdência não precisarão mais ser feitas na Constituição. 

Assim, eventuais alterações quanto ao tempo de contribuição necessário para a aposentadoria, às alíquotas, ou ao índice de reajuste aplicável (inclusive para evitar a corrosão inflacionária), por exemplo, serão possíveis de forma muito mais ágil — e perigosa —, já que é mais fácil conseguir aprovar leis complementares que emendas constitucionais (Para aprovação de leis complementares, por exemplo, são necessários apenas 257 votos favoráveis na Câmara dos Deputados e 41 no Senado Federal, isto é, metade mais um dos membros de cada casa, ao contrário das emendas, que exigem 3/5 dos votos de cada qual, ou seja, pelo menos 308 votos na Câmara e 49 no Senado).

APOSENTADOS QUE CONTINUAM NA ATIVA FICARÃO SEM NOVOS DEPÓSITOS DE FGTS

A legislação atual permite que os aposentados continuem a trabalhar, inclusive com possibilidade de percepção do FGTS — o que se justifica, já que, no Brasil, muitos aposentados ainda querem continuar a trabalhar para complementarem seus escassos rendimentos, enquanto ainda tiverem energia.

Se dispensados sem justa causa, aliás, os aposentados têm direito a receberem os seus depósitos de FGTS acrescidos de indenização de 40%, como qualquer outro trabalhador da iniciativa privada.

Com a reforma, porém, pode acabar esse direito, isto é, os aposentados deixarão de ter direito aos depósitos de FGTS e, por conseguinte, também a essa indenização de 40%.

Isso significa que os aposentados serão discriminados em relação aos trabalhadores que ainda não se aposentaram, outra grave ofensa ao princípio da isonomia.

REDUÇÃO NO VALOR DA APOSENTADORIA

Atualmente, o INSS calcula o valor da aposentadoria com base nos 80% maiores salários. Com a reforma, passará a calcular o valor a partir da média de todas as contribuições, desde 1994.

Considerando que, em regra, quase toda pessoa começa a trabalhar recebendo salários menores, naturalmente terá direito a um benefício menor ao se aposentar.

Em resumo: em regra, todos vão trabalhar bem mais para receberem bem menos.

NECESSIDADE DA REFORMA. DÍVIDAS DE GRANDES EMPRESAS. ISENÇÕES FISCAIS. AUSÊNCIA DE TRIBUTAÇÃO DE GRANDES FORTUNAS E LUCROS E DIVIDENDOS.

Muitos defensores da reforma têm argumentado que as mudanças são necessárias, porque o país passa por grave situação fiscal, e que, se a reforma não passar, “o país quebra”.

Em contrapartida, existem estudos sérios que atestam que o “déficit” é bastante questionável. Com efeito, os cálculos apresentados pelos reformistas geralmente não consideram que a Previdência integra um sistema maior, o da Seguridade Social (que abrange, além da Previdência, a Saúde e a Assistência Social) e desprezam as diversas fontes de receita da Seguridade (formada não apenas por contribuições de empregados e empregadores, mas também por verbas oriundas de cobranças da COFINS, do PIS, da CSLL e de concursos de prognósticos (como as loterias), entre outras, tudo na forma do artigo 195, I a IV, da Constituição da República em vigor).

Não bastasse, os reformistas também não costumam dar o devido destaque à DRU — desvinculação das receitas da União, mecanismo que, em suma, permite ao governo retirar da Seguridade, já há alguns anos, recursos da ordem de até 30% para pagamento de outras despesas, como a rolagem da dívida pública (Impossível não imaginar que tal possibilidade de "retirada governamental" não haja contribuído para a formação do alegado déficit, caso se admita a ocorrência deste). Para exemplificação, apenas em 2017, conforme documentos oficiais do governo, 159 bilhões foram desviados, via DRU, da Seguridade para outras áreas.

Logo, tais estudos têm embasamentos consideráveis e merecem apurações comprometidas, caso o governo realmente queira discutir a situação com seriedade, mas nem é esse o meu principal ponto aqui, porque isso renderia ainda mais discussões.

Ainda que se admita a existência de déficit nas contas públicas, por certo, haveria outras formas de geração de receita, que, muito provavelmente, ao menos reduziriam a necessidade de uma reforma tão severa, sobretudo para os mais pobres, as mulheres e os funcionários públicos, alvos prioritários, “bodes expiatórios” das mudanças.

Além disso, diversas fontes confirmam que empresas devedoras da Previdência acumulam dívida que supera, em muito, o próprio déficit. Só até 2017, segundo a Revista Exame, por exemplo, os devedores da Previdência Social acumulavam uma dívida de mais de R$ 426 bilhões, quase três vezes o então déficit do setor, que foi de cerca de R$ 149 bilhões em 2016!

Atualmente, somente empresas ligadas a deputados e senadores devem cerca de 372 milhões ao INSS, conforme outra notícia recente. Por que não cobrar, com rigor, essas dívidas? A reforma até sinaliza nesse sentido, mas parece mais uma mera carta de intenções.

Os reformistas dizem, ainda, que, com a reforma, o país vai economizar por volta de um trilhão em 10 anos.

A título de informação, é bom saber que apenas uma lei (13.586, de 2017) — aprovada durante o governo Temer e oriunda da chamada “MP do Trilhão” — abre as portas para a concessão de cerca de um trilhão em isenções fiscais para empresas petrolíferas estrangeiras que queiram operar no país, até 2040. Por que não revogar essa lei?

Outrossim, o governo usualmente concede generosas isenções fiscais a banqueiros e grandes empresários. Só em 2017, por exemplo, o governo Temer concedeu cerca de 400 bilhões em isenções desse tipo! Essa prática não deverá ser suprimida pelo novo governo, que poderá conceder, só neste ano, mais 376 bilhões, todos fatos igualmente noticiados.

Ainda segundo o economista Eduardo Fagnani, o valor de cerca de um trilhão que o governo diz querer economizar em dez anos poderia ser economizado praticamente a cada ano se fossem evitadas sonegações da ordem de 500 bilhões e isenções fiscais de cerca de 400 bilhões, em média, por ano.

Por que não cobrar implacavelmente os sonegadores e acabar com tantas isenções, ou pelo menos reduzi-las?

Por que não fazer uma auditoria séria da dívida pública, além de tributar lucros e dividendos e grandes fortunas, ou mesmo aumentar alíquotas sobre heranças, doa a quem doer (como ocorre na maior parte dos países)? Por que não fazer uma reforma tributária que comporte tais mudanças, entre outras? 

Todas essas medidas, por certo, permitiriam a aproximação de um ideal de justiça social, com aumento na arrecadação de receitas e a conseguinte viabilização de uma reforma que não fosse tão agressiva para o povo e respeitasse mais as situações consolidadas, não penalizando sobretudo as pessoas mais pobres e aquelas que já estariam prestes a se aposentar, mas, agora, mesmo com regras de transição, terão que trabalhar bem mais.

CONCLUSÃO

Espero que algumas das alterações propostas que listei e analisei, entre outras, sejam barradas (ou, ao menos, alteradas) no Congresso Nacional, já que o texto ainda será discutido lá. Há, ainda, a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de algumas regras pelo STF, caso o texto seja aprovado da forma em que se encontra.

Com efeito, conforme mencionado, o alegado déficit da Previdência é questionável e, ainda que se admita a existência deste, não se justifica a aprovação da reforma na forma proposta, sob pena de graves prejuízos à esmagadora maioria da população, em especial aos mais carentes, aqueles que mais necessitam de uma rede de proteção social adequada.

Consoante também apontado, existem alternativas para geração de receita, que passam, sobretudo, por uma reforma tributária  — que se revela, a meu ver, mais importante e premente que a alteração das regras previdenciárias, caso a sociedade realmente deseje se aproximar de um ideal de justiça distributiva.

Pelas razões expostas, entendo que é de vital importância que todos procurem se informar ainda mais e participem do debate sobre esta reforma da forma mais intensa, comprometida e democrática possível. Agora é o momento de discutir e envidar esforços para evitar que, ao invés de equilibrar as contas, a proposta de reforma termine por sentenciar a Previdência a um inaceitável  — e inconstitucional  — retrocesso social ou, mesmo, ao seu desaparecimento. Depois, de fato, pode ser tarde demais.

REFERÊNCIAS

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Disponível em: <https://www.revistaforum.com.br/retirada-de-direitos-do-trabalhador-pode-elevar-deficit-da-previdencia-alerta-especialista/?fbclid=IwAR3-UeiFqVYxFugFab-b7Dtdrpgn51hOyObTrMt5qa4RBWjfZoe9z0cb498>. Acesso em 28 fev. 2019.

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Sobre o autor
Guilherme Viana Cavalcanti

Graduado em Direito e Pós-Graduado em Direito Público pela Faculdade de Direito Milton Campos. Analista Judiciário do TRT da 3ª Região.

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Análise crítica de alguns aspectos da proposta de reforma da Previdência.

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