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A evolução do princípio da legalidade e o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa

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4 A INTERPRETAÇÃO DOS CONCEITOS JURÍDICOS

            Adiante será objeto de análise a relação entre a discricionariedade administrativa e os "conceitos jurídicos indeterminados", "conceitos práticos" fruto de expressões vagas, fluidas, elásticas, que não comportam um único entendimento, "contrario sensu", variam de sentido tanto no aspecto temporal como no espacial.

            Expressões como "moralidade pública", "notório saber", "bem comum", "tranqüilidade pública", "relevância e urgência" e incontáveis outras que, por sua imprecisão conceitual, acabam por aceitar significações diversas e, em certos casos, conflitantes.

            Parece, portanto, de extrema relevância a definição do que se entende por conceitos jurídicos e a delimitação do alcance de sua interpretação como meio hábil à averiguação da legitimidade da atuação da Administração Pública, quando da atividade discricionária oriunda da imprecisão dos conceitos jurídicos prescritos na hipótese da norma.

            Sob o prisma material, o conceito é o núcleo irradiador de um significado, isto é, o elemento identificador de algo, o significado do termo, do signo. Todo conceito tem uma compreensão (conotação), donde emana o conteúdo formal do termo, e uma extensão (denotação), pela qual se revela a propriedade que o termo tem de ser aplicável a vários objetos, significações (29).

            Os conceitos jurídicos são, portanto, termos de significação, expressões ou sinais que objetivam uma significação, que pode ser atribuída a uma coisa, a um estado de coisas ou a uma situação que tenha relação com o direito. Os conceitos jurídicos pretendem expressar o significado de uma coisa ou de uma situação, atuando como sinais de significação, meios pelos quais podem ser expressos determinados elementos. Os conceitos jurídicos, em última análise, são a medida significativa, o sentido explicativo de determinado termo jurídico (30).

            O objetivo dos conceitos jurídicos não é o conhecimento ou a descrição da essência de coisas, estados ou situações, mas a viabilização da aplicação de uma norma jurídica ou de um conjunto de normas à realidade de uma coisa, estado ou situação. Os conceitos jurídicos são sinais valorativos, ou, na expressão de Eros Roberto Grau "signos de predicados axiológicos" (31).

            Nesta linha de entendimento cabe deduzir que, "apenas e tão somente na medida em que o ‘objeto’ – a significação – do conceito jurídico possa ser reconhecido uniformemente por um grupo social poderá prestar-se ao cumprimento de sua função, que é a de permitir a aplicação de normas jurídicas, com um mínimo de segurança e certeza" (32).

            Desta dependência do reconhecimento por um grupo social para o cumprimento de suas funções, consequentemente, os conceitos jurídicos, segundo Regina Helena Costa, têm por características básicas a não correspondência com a realidade e a constante mutabilidade de sua compreensão. Divergem do real, em decorrência de ser o Direito uma criação cultural, que freqüentemente se vale da ficção em função da aplicação de um juízo de valor (33).

            Passada esta rápida exposição atinente à expressão "conceitos jurídicos", já se nota a extensão da importância que toma o tema da interpretação dos conceitos jurídicos, interpretação no sentido da compreensão do conteúdo material das regras jurídicas, do ato de atribuir um sentido ou um significado aos termos constantes da norma jurídica.

            Como afirma Celso Antônio, "nos casos de discricionariedade, o administrador também interpreta, mas não se esgota nisso sua função.(…) Concluído o ‘iter’ interpretativo, defronta-se com possibilidades plúrimas, justamente pelo fato da norma admitir soluções múltiplas, suscetíveis quaisquer delas de dar implemento à finalidade proposta e satisfação à vontade legal (…)" (34).

            Segundo Paulo Bonavides, interpretação é uma "operação lógica, de caráter técnico mediante o qual se investiga o significado exato de uma norma jurídica, nem sempre clara ou precisa (...) Em verdade, a interpretação mostra o direito vivendo plenamente a fase concreta e integrativa, objetivando-se na realidade" (35). Trata-se da vinculação da norma geral, genérica, às conexões concretas, a aplicação do abstrato ao concreto, a inserção do fato à hipótese da norma.

            A interpretação da norma deve cingir-se à busca do seu conteúdo correto, sua intenção e extensão, o fim a que se propôs a lei com o uso de determinada expressão, determinado termo jurídico. Deve o executor da lei, valendo-se de regras de hermenêutica (36), questionar acerca da intenção da norma, quando se valeu do termo empregado, ainda que impreciso. Que fim pretendeu a lei quando resguardou a "moralidade pública", quando exigiu o "notório saber".


5 DISCRICIONARIEDADE E CONCEITOS JURÍDICOS INDETERMINADOS

            Como ficou consignado quando se discutiu a discricionariedade na norma jurídica e no caso concreto, o poder de discrição administrativa pode aparecer de formas distintas: ou expressamente previsto na norma, ou na insuficiência do texto legal, ou na ausência de fixação da conduta a ser adotada, ou, e é este aspecto que agora interessa, quando a lei usa certos conceitos indeterminados, imprecisos, ensejando uma esfera de liberdade à Administração na solução da situação concreta.

            Os conceitos jurídicos são expressões que comportam termos significativos. Estes termos ou signos jurídicos podem ser vagos, imprecisos, plurissignificativos. A indeterminação não reside no conceito jurídico, mas em sua expressão, em seu termo significativo. Não se pode falar, ainda, de imprecisão da palavra usada, uma vez que a fluidez reside na significação do conceito, no seu conteúdo plurissignificativo (37).

            Segundo Afonso Rodrigues Queiró, os conceitos jurídicos podem ser divididos em "conceitos práticos", aqueles que apresentam certa imprecisão, pluralidade de significados, indeterminação e, "conceitos teoréticos", que, por oposição, são aqueles conceitos jurídicos compostos de expressões precisas, unissignificativas, determinadas. A discricionariedade surge, destarte, circunscrita aos "conceitos de valor" utilizados na norma jurídica, aos "conceitos não-teoréticos". Os conceitos teoréticos são aqueles das ciências empírico-matemáticas, de contornos absolutamente individualizáveis, com valor objetivo e universal. Vale dizer que, quando a lei adota conceitos teoréticos não remanesce discricionariedade à Administração. Pode restar margem a dúvidas, sanáveis mediante interpretação, segundo os processos de hermenêutica administrativa, mas nunca poder discricionário à atividade administrativa, discrição na aplicação do conceito jurídico ao caso concreto (38).

            Como esclarece o jurista alemão Martin Bullinger, espelhando a atual doutrina alemã a respeito da discricionariedade e da "margem de apreciação" da Administração Pública na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, a "concretização de preceitos legais de valor, assim como sua aplicação ao caso concreto constitui, em maior ou menor medida, um fenômeno normal da aplicação do direito e fica, assim, reservada à última instância judicial, seja no direito civil, no direito penal ou no direito administrativo" (39).

            Não é, por conseguinte, aceitável a isenção de controle jurisdicional das decisões da Administração, fundada na sua "margem de apreciação" acerca dos conceitos práticos. Deve o Poder Judiciário revisar a aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados pela Administração, examinando sua adequação à lei.

            Diversamente, existem autores que não aceitam a indeterminação dos conceitos jurídicos como explicação à possibilidade de discrição na atividade administrativa. Entendem que a moldura normativa definida como conceito indeterminado ou prático, só possibilitaria uma escolha, a melhor à persecução da finalidade legal. A fluidez ou indeterminação dos conceitos jurídicos só existiria "in abstracto", não subsistindo nos casos concretos, por ocasião de sua aplicação. Para estes autores, "a indeterminação do enunciado não se traduz em uma indeterminação das aplicações do mesmo, as quais só permitem uma ‘unidade de solução justa’ em cada caso" (40).

            Em que pese a maestria da tese mencionada, não parece a mais acertada. Os conceitos práticos, conduzindo a um exame valorativo de sua significação, resultam em faculdades discricionárias ao administrador, na escolha da solução ao caso concreto.

            Se a norma jurídica se vale de "conceitos de valor" para regular uma dada situação, os critérios a serem adotados pelas autoridades administrativas serão sempre necessariamente discricionários. Neste sentido, entende Luciano Ferreira Leite que "sempre que a hipótese legal contiver conceito de valor ou grau de imprecisão que obrigue a enunciar juízo subjetivo, estará ele no campo da discricionariedade" (41).

            Cabe assinalar que, independentemente de onde resida a discricionariedade administrativa, se na hipótese da norma ou em seu mandamento, se na finalidade, como quer Celso Antônio, a discrição administrativa vai se expressar em um único elemento que é o conteúdo do ato, já que é na ocasião em que se pratica o ato, na providência adotada, que realmente se traduz a discrição.

            O conteúdo do ato é, em última análise, a tradução do poder discricionário da Administração Pública, salvo nos casos em que a Administração tem a possibilidade jurídica de deixar de praticar o ato. Neste caso, a discricionariedade vai se traduzir nesta omissão (42).

            O conteúdo do ato administrativo (43), em verdade, traduz-se no confim último onde se revela a discricionariedade administrativa, o espaço decisório onde se personifica a discrição do agente administrativo na solução do fato concreto. Não importa se prevista na hipótese da norma ou em seu mandamento, se por expressa disposição normativa ou pela utilização de termos indeterminados e plurissignificativos, a discrição administrativa vai se manifestar na extensão dispositiva, decisória ou enunciativa do ato, enfim, em seu conteúdo.


6 LIMITES DA DISCRICIONARIEDADE

            Como defendido, a discricionariedade não é uma faculdade conferida pela lei ao administrador, possibilitando-lhe uma esfera de ilimitada liberdade na atividade administrativa. A liberdade posta ao administrador para eleger uma solução à situação prevista pela lei deve se mostrar adstrita aos contornos legitimados pelo ordenamento normativo, a fim de vedar a reforma jurisdicional, pois que o exame, como se verá, é sempre possível.

            Os conceitos jurídicos podem apresentar certo grau de indeterminação e imprecisão de significado. No entanto, pela própria natureza conceitual, têm limites de significação. Existe em cada conceito jurídico indeterminado uma zona de determinação positiva e uma zona de determinação negativa, donde não decorre qualquer discrição à atuação administrativa. A discricionariedade reside apenas naquela zona conceitual fronteiriça, cinzenta, faixa de dúvida entre a determinação positiva e a determinação negativa.

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            A discricionariedade possui, por conseguinte, limites bastante estreitos quando da confrontação da disposição imprecisa da norma com o caso concreto. Mas se vai além: ainda que na faixa cinzenta de indeterminação dos conceitos jurídicos, a Administração não é totalmente livre para eleger a solução ao caso concreto. Deverá obedecer a critérios de racionalidade e proporcionalidade (44) na prática do ato discricionário, sujeitando-se ao posterior exame jurisdicional do ato praticado.

            A Administração Pública, em última análise, somente atuará com discrição quando, no caso concreto, por expressa previsão legal ou por imprecisão conceitual do mandamento, restar a possibilidade de solucionar a situação por mais de uma maneira, sendo que não se mostre possível determinar, razoavelmente, qual o melhor ato a ser praticado.

            Se o ato praticado vencer o crivo da razoabilidade e racionalidade restará ilegal e inconstitucional sua reforma pelo Poder Judiciário, posto que, neste caso, o juiz estaria fazendo as vezes do administrador.

            Segundo Celso Antônio, há duas teorias que buscam "retraçar o perímetro da discricionariedade e detectar as distorções e abusos administrativos cometidos sob o abrigo de sua confortadora cobertura: a teoria do desvio de poder e o exame dos motivos do ato" (45). Por estes institutos se pretende, na esfera jurisdicional, delimitar as fronteiras da discricionariedade e contê-la dentro de seus legítimos limites, purgando eventuais excessos.

            O desvio de poder consiste na utilização pelo agente público de uma competência para atingir finalidade diversa da natureza da competência exercida. O agente usa a competência outorgada para alcançar finalidade diferente da prevista em lei. No desvio de poder ocorre o que Seabra Fagundes chamou de "burla da intenção legal", situação em que "a autoridade agiu contrariando o espírito da lei. Não importa que a diferente finalidade com que tenha agido seja moralmente lícita. Mesmo moralizada e justa, o ato seja inválido, por divergir da orientação legal" (46).

            Sustenta Caio Tácito ser o desvio de poder "um limite à ação discricionária, um freio ao transbordamento da competência legal além de suas fronteiras, de modo a impedir que a prática do ato administrativo, calcada no poder de agir do agente, possa dirigir-se à consecução de um fim de interesse privado, ou mesmo de outro fim público estranho à previsão legal" (47).

            Outra via eficaz ao controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária, com sua circunscrição dentro dos limites legais, é o exame dos motivos do ato (48). "Por meio dele o que se põe em causa, o que se examina é a situação de fato em que se embasou a Administração para a prática do ato. Verifica-se, inicialmente, a materialidade do pressuposto de fato, isto é, se ocorreu ou não o acontecimento em que a Administração se estriba" (49). Deve-se examinar se o acontecimento em questão responde ao pressuposto normativo, se o fato objetivo se amolda à prefiguração hipotética contemplada na norma.

            Quando o motivo previsto na norma toca a realidades conceituais teoréticas, da sua confrontação à situação de fato não ressai discricionariedade à Administração, contudo, por vezes, o motivo legal comporta configuração imprecisa, vaga, fluida, donde resta ao administrador valorar a situação fática e decidir se está ou não dentro da moldura normativa predeterminada. Nestes casos, compete ao Poder Judiciário examinar se a atividade administrativa se conteve nos limites razoáveis de discricionariedade, quando da apreciação tangente à materialidade do pressuposto de fato exigido à prática do ato administrativo (50).

            Adiantando o assunto a ser abordado a seguir, o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa, o professor Celso Antônio entende que, quando couber ao administrador decidir se o motivo ocorrido tem ou não a relevância para ensejar a atuação administrativa, se presente o pressuposto de fato hipoteticamente prescrito na norma, "pelo fato da lei outorgar ao critério do agente a apreciação ‘ponderada’ do motivo, só é possível a correção jurisdicional do ato quando a decisão do administrador seja indisputadamente desarrazoada, contrária ao senso comum" (51). Nestes casos, excedendo a Administração aos limites da discricionariedade, cabe a revisão jurisdicional do ato.

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Sobre o autor
José Sérgio da Silva Cristóvam

Professor Adjunto de Direito Administrativo (Graduação, Mestrado e Doutorado) da UFSC. Subcoordenador do PPGD/UFSC. Doutor em Direito Administrativo pela UFSC (2014), com estágio de Doutoramento Sanduíche junto à Universidade de Lisboa – Portugal (2012). Mestre em Direito Constitucional pela UFSC (2005). Membro fundador e Presidente do Instituto Catarinense de Direito Público (ICDP). Membro fundador e Diretor Acadêmico do Instituto de Direito Administrativo de Santa Catarina (IDASC). ex-Conselheiro Federal da OAB/SC. Presidente da Comissão Especial de Direito Administrativo da OAB Nacional. Membro da Rede de Pesquisa em Direito Administrativo Social (REDAS). Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Público do CCJ/UFSC (GEDIP/CCJ/UFSC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRISTÓVAM, José Sérgio Silva. A evolução do princípio da legalidade e o controle jurisdicional da discricionariedade administrativa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 804, 15 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7257. Acesso em: 27 abr. 2024.

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