3 A LEI Nº. 8.742/93 – LOAS E SUAS PECULIARIDADES
A assistência social sempre foi tida como uma maneira de proteger os assim denominados grupos vulneráveis, neste estudo inclui-se; idosos, pessoas com deficiência e àqueles que estão abaixo da linha da pobreza, que independente da causa, vive às margens da sociedade.
Lembrando que a população idosa aumentou consideravelmente no País, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2017 havia 28 milhões de idosos (13,5%) da população, segundo projeções do instituto em dez anos, chegará a 38,5 milhões (17,4% do total de habitantes). Com a edição da Lei n º 8.742/93 do LOAS e redação dada pela Lei nº 12.435/2011, o art. 20 considera-se idoso a pessoa com: “[...] 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família”. Significa que a renda familiar não pode ultrapassar ¼ do salário mínimo.
Já no que tange a população de deficientes, no último Censo Demográfico (2010), 45,6 milhões de pessoas declararam ter pelo menos um tipo de deficiência, seja do tipo visual, auditiva, motora ou mental/intelectual (BRASIL, 2010). Apesar de representarem 23,9% da população brasileira em 2010, estas pessoas não vivem em uma sociedade adaptada. Porém, para fazer jus ao beneficio assistencial implica que a incapacidade para a vida independente e para o trabalho (grifo nosso) por 2 (dois) anos ou mais.
Incapaz para a vida independente e para o trabalho no entendimento de Miranda (2007, p. 277), “é aquele que não pode se sustentar, necessitando do auxílio ou atenção de terceiro para a execução de tarefas que lhe exija maior esforço”. Contudo, para fazer jus ao beneficio a pessoa com deficiência necessita preencher alguns requisitos, como bem explana julgado da Segunda Turma Recursal do Tribunal Regional Federal (TRF), in verbis:
[...] A concessão do benefício assistencial encontra-se atrelada ao preenchimento dos requisitos previstos no art. 6º, incisos I e II do Decreto nº 1.744/95, quais sejam, a deficiência incapacitante para a vida independente e o trabalho, e a falta de meios do grupo familiar para prover subsistência. [...] (TRF5 – APELAÇÃO CIVEL Nº 341013 PB (2004.05.99.0010360) – ORIGEM: VARA ÚNICA DA COMARCA DE CONCEIÇÃO – PB – RELATOR: JUIZ FRANCISCO CAVALCANTI – Segunda Turma).
O LOAS, segundo Pierotti (2011), representa 12,4% do total de benefícios concedidos à pessoa com deficiência, isso reforça a sua importância para o Estado brasileiro e para àqueles que o recebem, pois contribui para aumentar a distribuição de renda, especialmente para às pessoas menos favorecidas.
Já em relação do beneficio estendido ao idoso, antes de procurar ajuda do Estado, cabe a família prover a subsistência dos seus, como bem estabelece a CF/88 no artigo 229, a responsabilidade dos filhos maiores a amparar os pais, in verbis: “Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. A responsabilidade do Estado, desse modo, é subsidiária, no que concerne a concessão do benefício assistencial.
Adversamente, é inegável admitir que na velhice as despesas do cotidiano sejam bem maiores, remédios, alimentação adequada, vestuário, sem contar logicamente com planos de saúde. Visando suprir essa condição, Pierotti (2011, p. 54), destaca que: “a Lei 10.741, de 01/10/2003, abrandou pra os idosos a comprovação do requisito da hipossuficiência, no que concerne à exigência da renda per capita ser inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo”.
Esse abrandamento está positivado no parágrafo único, do artigo 34, do Estatuto do Idoso, que assim dispõe: “art. 34. [...]; Parágrafo único: o benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere o LOAS”.
Desse modo, a condição que mais se adapta ao interesse do Estado Social de Direito, pois assim entendem Folmann e Soares (2012), a interpretação deve ser feita da Lei do LOAS, no artigo 20, § 3º como presunção iuris et de iure a ser complementada por outros meios probantes que comprovem a necessidade dos idosos e dos deficientes.
Esse também é o entendimento do STJ que, reiteradamente tem adotado essa interpretação, conforme relatado no texto a seguir:
A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo (RESp. 1.112.557/MG – 3ª Seção – Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho – Dje 20.11. 2009).
PROCESSUAL CIVIL PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL, AFERIÇÃO DO ESTADO DE MISERABILDIADE POR OUTROS MEIOS QUE NÃO A RENDA FAMILIAR “PER CAPITA” INFERIOR A ¼ DO SALÁRIO MÍNIMO.
1. A terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no regime do art. 543-C CPC, uniformizou o entendimento de que possível a aferição da condição de hipossuficiência econômica do idoso ou do portador de deficiência, por outros meios que não apenas a comprovação da renda familiar mensal “per capita” inferior a1/4 do salário mínimo (AGA 1. 164.852, DE26.10.2010).
Consoante recurso especial repetitivo 1.112.557/MG, a limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada s única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para provar a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo (AgRg no AREsp 379927, de 15/10/2013).
Entende-se, portanto que o idoso ao receber o amparo social e tendo outra pessoa na mesma condição em seu domicilio os valores não devem constar para calcular a renda per capita, logo, pode-se dizer que isto comprova que a justiça social está sendo feita.
3.1 Sistemas classificatórios da condição da miserabilidade
De acordo como já exposto, o benefício de prestação continuada pé estendido às pessoas com deficiência, idosos e àqueles que vivem na linha da pobreza e não tenham condições de prover seu sustento ou de tê-lo provido pela sua família.
3.1.1 Sistema Relativo
Ferreira e Litchfield (2003), dizem que na Europa, questões relacionadas à pobreza são vistas como um conceito relativo, pois a sua definição de família pobre se resume naqueles no qual a renda é inferior a estabelecida percentualmente a uma renda média.
Já no Brasil, não há essa relatividade, visto que existe uma desvinculação do grau da pobreza e da desigualdade, isso demonstra um critério mais apropriado para aqueles que fazem jus ao benefício assistencial conforme a Lei nº 8.742/93. A condição pode ser destacada por um cálculo da linha de pobreza, que segundo Rocha (2003, p. 48), pode ser assim sintetizada:
A primeira etapa consiste em determinar, para a população em questão, quais são as suas necessidades nutricionais. A etapa seguinte objetiva derivar, a partir das informações de pesquisa de orçamentos familiares, a cesta alimentar de menor custo que atenda às necessidades estimadas. O valor correspondente a essa cesta é a chamada linha de indigência (LI), parâmetro de valor associado ao consumo alimentar mínimo necessário. [...] Esse valor associado é obtido de forma simplificada, correspondendo geralmente à despesa não-alimentar observada quando o consumo alimentar adequado .
Por esse entendimento, entende-se, por ser um Brasil um país de enorme diversidade cultural entre as regiões, esse cálculo deveria ser feito de maneira regional, mas isso não é feito, logo o sistema relativo para calcular a miserabilidade não se adota no território brasileiro.
3.1.2 Sistema Legal-Constitucional
O sistema legal-constitucional é o que se adota no Brasil para fins de aferição da miserabilidade. O art. 203, inciso V, da CF/88 era um dispositivo com eficácia limitada, significa dizer que, para produzir eficácia plena havia a necessidade da edição de uma lei regulamentando este dispositivo constitucional.
Assim, a Lei nº 8.742/93 da LOAS, regulamentou o artigo dando-lhe status de norma constitucional de eficácia plena, conforme disposto no § 3°, do artigo 20, da Lei em comento, regulando à concessão do benefício cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ do salário mínimo
Os requisitos básicos exigidos para essa concessão de acordo com a LOAS, art. 20, § 12, são: “[...] a manutenção e a revisão do benefício as inscrições no Cadastro de Pessoas Físicas - CPF e no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal - Cadastro Único, conforme previsto em regulamento”. (Incluído pela Medida Provisória nº 871, de 2019). Não há exigência de filiação à Previdência Social, pois trata-se de um benefício assistencial e não previdenciário.
Pierotti (2011), aduz ser preciso, mormente, avaliar a situação concreta de condições de vida do idoso ou da pessoa deficiente. Para tanto, é imprescindível a visita de um assistente social, ou de quem lhe faça às vezes, quer seja o benefício requerido no âmbito administrativo ou judicial. A visita tem o condão de verificar as condições de vida e a pobreza em que vivem essas pessoas e sua família.
A condição de pobreza deveria ser percebida como no ensinamento de Sen (2003, p. 142):
A pobreza deve ser e vista como privação de capacidades básicas em vez de meramente como baixa de nível de renda, que é critério tradicional da identificação da pobreza. Isso implica dizer que a “pobreza real” (no que se refere à privação de capacidades) pode ser, em um sentido significativo, mais intensa do que pode parecer no espaço renda.
No entanto, conforme apontam Pierotti (2010); Folmann e Soares (2012), não era a vontade de o legislador adotar de forma objetiva o critério do § 3°, do artigo 20, da LOAS, no que tange à renda per capita superior a ¼ do salário mínimo, que ora denomina-se sistema legal-constitucional e que posteriormente será analisada à luz do entendimento do Colendo STF.
3.2 Critério de Miserabilidade e os Programas Assistencialistas do Governo
Buscando atender ao Estado Social de Direito construído pela CF/88, o governo brasileiro implanta programas sociais visando atender ás condições mínimas do cidadão, que não reúne qualidades de subsistência por si mesma ou por sua família.
Por conseguinte, existem leis sucessoras da Lei 8.742/93, que regulam os programas assistenciais em múltiplas áreas que incluem: do auxílio-gás ao programa de erradicação do trabalho infantil.
Ocorre que, ao contrário do critério adotado pela Lei 8.742/93, suas sucessoras adotaram como instrumento de configuração de pessoas pobres para fins de concessão dos benefícios assistenciais, a renda familiar per capita ser inferior a ½ salário mínimo.
É cediço que o critério de ¼ do salario mínimo da LOAS deveria ser interpretada lógica-sistematicamente com leis assistenciais supervenientes que trouxeram requisitos mais elásticos para a identificação da miserabilidade. Folmann e Soares (2012), realçam que a lei em comento deveria ter a sua interpretação em face de uma nova realidade social, diferente daquela, existente em 1993. Os autores defendem ainda que, uma revogação tática do art. 20, § 3°, da Lei 8.742/93.
Como já visto o STF, por meio da ADI nº. 1.232/DF, declarou a constitucionalidade do parágrafo e do artigo mencionado. Esta constitucionalidade, finalmente, se refere ao critério objetivo de aferição da miserabilidade (renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo). Destarte, a presunção absoluta de miserabilidade sendo constitucional, nada obsta que o magistrado faça análise de outros critérios capazes de comprová-la.
Afinal, em 2013, o STF julgou improcedente a Reclamação 4.374-PE e negou provimento ao RE 567.985/MT, na qual transcreve-se parcialmente para fins contextuais:
A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo fosse concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovassem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. [...] Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade dos critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro) (STF, Rcl 4374, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 18/04/2013).
A função social do benefício assistencial incide em não deixar as pessoas menos favorecidas desamparadas, tendo em vista que detém a garantia constitucional de requerer ao Estado um salário mínimo mensal. Assim, estabelece o art. 204, I e II da CF/88:
Art. 204. As ações governamentais na área da assistência social serão realizadas com recursos do orçamento da seguridade social, previstos no art. 195, além de outras fontes, e organizadas com base nas seguintes diretrizes:
I – descentralização político‑administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e a execução dos respectivos programas às esferas estadual e municipal, bem como a entidades beneficentes e de assistência social;
II – participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis.
Parágrafo único. É facultado aos Estados e ao Distrito Federal vincular a programa de apoio à inclusão e promoção social até cinco décimos por cento de sua receita tributária líquida, vedada a aplicação desses recursos no pagamento de: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
I - despesas com pessoal e encargos sociais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
II - serviço da dívida; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
III - qualquer outra despesa corrente não vinculada diretamente aos investimentos ou ações apoiados. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003).
Acredita-se que no Estado Social, os direitos não visam somente tutelar os indigentes, longe disso, o intuito é trazer o indivíduo para o seio social, de tal sorte que esta representação é acima de tudo ter acesso à dignidade.
Essa constitui uma das maiores demonstrações do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pois, como bem explanado por Tavares (2013, p. 35), a sua efetividade implica, “consideração pela vida e pela integridade do ser humano, garantia de presença de condições básicas para uma existência na qual se possa exercer a liberdade e receber respeito como pessoa dotada de razão”.
A justiça ao reconhecer que, na esfera judicial, é possível buscar outros meios probantes ao reconhecimento da miserabilidade, demonstra que a Lei não é absoluta e, portanto é justo enquadrar essas pessoas, pois elas não detêm do mínimo para sobreviver.
Foi justamente tentando minimizar a situações das pessoas menos favorecidas que a Lei nº 8.742/93, versa sobre projetos de enfrentamento da pobreza e suas parcerias, essa questão encontra-se explicitadas nos artigos 25 e 26, que assim dispõem:
Art. 25. Os projetos de enfrentamento da pobreza compreendem a instituição de investimento econômico-social nos grupos populares, buscando subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio-ambiente e sua organização social.
Art. 26. O incentivo a projetos de enfrentamento da pobreza assentar-se-á em mecanismos de articulação e de participação de diferentes áreas governamentais e em sistema de cooperação entre organismos governamentais, não governamentais e da sociedade civil.
A lei em comento positiva ainda no art. 28, que o financiamento dos benefícios, serviços, programas e projetos serão feitos utilizando os recursos dos entes federativos e as demais contribuições sociais elencadas no art. 195 da CF/88[2], bem como, os recursos advindos do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).
Uma das fontes basilar do financiamento do programa assistencial da LOAS encontra-se na Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), que de acordo com Folmann e Soares (2012, p. 54),
[...] representou, em 2005, 20,55% do total repassado pelo Ministério da Fazenda” . Em outro estudo realizado no ano de 2007, pela mesma entidade, verificou-se que “a COFINS/LOAS, rubricas que suporta o pagamento de benéficos assistenciais do INSS, representou em 2006 cerca de 17,82% do total repassado pelo Ministério da Fazenda. E, em um novo relatório, realizado em 2008, constatou-se que a COFINS/LOAS representou cerca de 20,9% do total repassado pelo Ministério da Fazenda, havendo um fluxo de caixa do INSS, relativo a esta contribuição específica, de 12,9 bilhões de reais para o pagamento do citado benefício assistencial.
Desse modo, negar o benefício assistencial, como muitos fazem, com base na falsidade da ausência de fonte de custeio é, no mínimo, uma leitura errônea financeira do sistema da seguridade social.
3.3 Renda Per Capita Familiar e a Correta Interpretação à Luz dos Precedentes do STJ e STF
Um dos temas que mais existem discussões na atualidade quer seja em doutrinas ou nos Tribunais tem a ver com a concessão do benefício de prestação continuada, inserido no § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93. A redação do dispositivo em virtude de “suposições” de inconsistências constitucionais comparada com o art. 203, V da CF/88, foi impugnada ao STF através da ADIn nº 1.232.
No julgamento liminar, vale frisar, o Pretório Excelso advertiu que o dano decorrente da suspensão da norma objurgada seria maior do que a sua manutenção no sistema jurídico, pois “a concessão da liminar, suspendendo a disposição legal impugnada, faria com que a norma constitucional voltasse a ter eficácia contida, razão pela qual o pedido foi indeferido”. (PINHEIRO, 2012, p. 235).
O plenário do STF, seguindo o mesmo raciocínio concretizado por ocasião do indeferimento da medida liminar de suspensão do § 3º do art. 20 da LOAS, em 27/08/1998, por maioria de votos, julgou improcedente a ADIn, conforme ementa in verbis:
[...] Impugna dispositivo de lei federal que estabelece o critério para receber o benefício do inciso V do art. 203, da CF. Inexiste a restrição alegada em face ao próprio dispositivo constitucional que reporta à lei para fixar os critérios de garantia do benefício de salário mínimo à pessoa portadora de deficiência física e ao idoso. Esta lei traz hipótese objetiva de prestação assistencial do Estado (BRASIL, 2011, p. 1920).
O STF ao consolidar a constitucionalidade da Lei nº 8.742/93 em sede de controle concentrado, gera importantes efeitos a toda nação brasileira. Vejamos o que reza o dispositivo da Lei n° 9.868/99, artigo 28, § único in verbis:
Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Diante desta disposição legal, percebe-se que o julgamento em sede de ADIn, ao transitar em julgado não pode ser contestado e a sua declaração tem eficácia erga omnes. Sem contar que é importante ressaltar, o fato da declaração possuir efeito vinculante para todos os órgãos do Poder Judiciário sob as questões arguidas acerca da matéria. Tal característica não permite que sentenças disponham de modo contrário daquele previsto pelo Pretório Excelso (PIEROTTI, 2012).
Embora o voto na ADIn 1.232, apontou a improcedência, e os seus efeitos erga omnes e vinculativos, não é possível deixar de lado os pareceres insertos nesse processo, tais como as manifestações da Procuradoria Geral da República (PGR) e dos demais ministros da Corte Constitucional, tendo por finalidade a definição real da intenção do legislador, ao indicar os parâmetros objetivos de renda per capita familiar, e a adequada interpretação constitucional, ambos importantes ao estudo ora proposto.
No parecer da PGR, corroborado, inclusive, pela decisão do Ministro Relator Ilmar Galvão ter presunção juris et de jure, mas, sim, relativa, tendo em vista a interpretação de acordo com a constituição que seria imperativa, isto é, “sem excluir a possibilidade de serem comprovados outros casos de efetiva falta de meios para que o portador família” (PINHEIRO, 2012, p. 236).
Comunga com o mesmo entendimento o voto do Ministro Sepúlveda Pertence que, salientou a possibilidade de haver outras situações caracterizadoras para completar a efetivação do programa normativo de assistência contido no artigo 203 da CF/88.
No mesmo sentido, o Ministro Gilmar Mendes proferiu as seguintes palavras: “não se declara a inconstitucionalidade do art. 20, § 3º da Lei 8.742/93, mas apenas se reconhece a possibilidade de que esse parâmetro objetivo seja conjugado, no caso concreto, com outros fatores indicativos do estado de penúria do cidadão” (STF – Reclamação 4374 MC/PE, DJ 06/02/2007).
Tendo em vista essa decisão do STF, diversas Reclamações Constitucionais, especialmente na esfera do INSS, foram ajuizadas com a aspiração de que a força normativa sobressaísse dos provimentos jurisdicionais divulgados pela Corte Constitucional, em virtude das proclamações jurisdicionais que, supostamente, não cumpriam, totalmente, a decisão da Suprema Corte no controle concentrado de constitucionalidade.
A problemática, entretanto, passou a sofrer, ao longo da marcha evolutiva jurisprudencial do STF, algumas ponderações/suavizações, haja vista, conforme dito pelo Ministro Marco Aurélio, a insuficiência dos critérios definidos pelo § 3º do art. 20 da Lei nº. 8.742/93 para fiel cumprimento do art. 203, inciso V, da Carta Constitucional.
Na decisão do Ministro Gilmar Mendes no julgamento da ADIn nº. 1.232/DF revela que o Supremo Tribunal Federal, não afirmou que, ao examinar o caso em concreto, o magistrado não poderia atribuir o que fosse necessário para que a norma constitucional do artigo e inciso em comento, bem como demais direitos fundamentais e princípios constitucionais se cumprissem de maneira rigorosa, prioritária e inescusavelmente (PINHEIRO, 2012).
Em harmonia com o assunto, é oportuno apresentar o posicionamento jurisprudencial consolidado pelo STJ:
[...] 3. O egrégio Supremo Tribunal Federal, já declarou, por maioria de votos, a constitucionalidade dessa limitação legal relativa ao requisito econômico, no julgamento da ADI 1.232/DF. 4. Entretanto, diante do compromisso constitucional com a dignidade da pessoa humana, especialmente no que se refere à garantia das condições básicas de subsistência física, esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente a o cidadão social e economicamente vulnerável. 5. A limitação do valor da renda per capita familiar não deve ser considerada a única forma de se comprovar que a pessoa não possui outros meios para prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, pois é apenas um elemento objetivo para se aferir a necessidade, ou seja, presume-se absolutamente a miserabilidade quando comprovada a renda per capita inferior a 1/4 do salário mínimo. 6. Além disso, em âmbito judicial vige o princípio do livre convencimento motivado do Juiz (art. 131 do CPC) e não o sistema de tarifação legal de provas, motivo pelo qual essa delimitação do valor da renda familiar per capita não deve ser tida como único meio de prova da condição de miserabilidade do beneficiado (STJ - REsp: 1112557 MG 2009/0040999-9, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 28/10/2009, S3 - TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 20/11/2009)
Assim, o STF teve por constitucional, em tese, a norma do art. 20, § 3º, da Lei nº 8.742/93, mas não afirmou inexistirem outras situações concretas que impusessem atendimento constitucional e não subsunção àquela norma, nos moldes taxados, igualmente, no voto do Ministro Sepúlveda Pertence, transcrito parcialmente alhures.
[...] a miséria constatada pelo juiz é incompatível com a dignidade da pessoa humana, princípio garantido no art. 1º, inc. III, da Constituição da República; e a política definida a ignorar a miserabilidade de brasileiros é incompatível com os princípios postos no art. 3º e seus incisos da Constituição; a negativa do Poder Judiciário em reconhecer, no caso concreto, a situação comprovada e as alternativas que a Constituição oferece para não deixar morrer à mingua algum brasileiro é incompatível com a garantia da jurisdição, a todos assegurada como direito fundamental (art. 5º, inc. XXXV, da Constituição da República). [...] A meu ver, toda essa reinterpretação do art. 203 da Constituição, que vem sendo realizada tanto pelo legislador como por esta Corte, pode ser reveladora de um processo de inconstitucionalização do § 3º da Lei nº 8.742/93. Consoante dito pelo Ministro Relator da Reclamação n. 4.374/PE
Verifica-se, por conseguinte, que a Reclamação acima foi um verdadeiro divisor de águas da possibilidade de flexibilizar a norma inserta no art. 20, § 3º, da Lei n. 8.742/93, tendo em vista os princípios constitucionais, entre outros, da dignidade humana e da solidariedade constitucional.
De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), no ano de 2018, para uma família viver razoavelmente bem o salário mínimo deveria girar em torno de R$ 3.960,57. Ora, calculando ¼ do salário mínimo de 2018 o valor, perfaz em R$ 238,50. É inegável admitir que um ser humano consiga sobreviver com esse valor ao menos em relação à proteção da sua dignidade humana.
Diante das considerações elencadas acerca do critério de ¼ do salário mínimo parece oportuno contrapor sob a ótica de dois conceitos básicos: miséria e pobreza, como bem apontadas pelo agora Ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro, in verbis:
A linha da indigência é definida pela renda necessária para atendimento das necessidades calóricas mínimas de um indivíduo. A linha de pobreza é calculada como um múltiplo da linha de indigência, considerando a renda necessária para o atendimento de outras necessidades básicas mínimas, como vestuário, habitação e transporte (MORO, 2003, p. 146-7).
Analisando os dados do DIEESE, é possível dizer que ¼ do salário mínimo é extremamente inferior ao custo indicado e, por via de consequência, o benefício da LOAS, ao impor o critério objetivo, não tutela nem o indigente. Neste viés, ipsis litters interpretando a Lei, estaria apenas atendendo àqueles que estão abaixo da linha de miséria (FOLMANN; SOARES, 2012).
No que tange aos idosos, torna-se rotina usar frequentemente medicamentos que nem sempre o Estado fornece. Em Relação aos deficientes, estes necessitam de cuidados e tratamento médico, infraestrutura familiar, de móveis adequados à sua deficiência, além de medicamentos, que constituem elementos cruciais para avaliar a real circunstância econômica do grupo familiar (FARIAS, 2015).
Há, portanto, desvantagens quando se atinge uma determinada idade, comunga com esse mesmo pensamento Sen (2010, p. 110):
Desvantagens como a idade, incapacidade ou doenças reduzem o potencial do indivíduo para auferir renda. Mas, também tornam mais difícil converter renda em capacidade, já que uma pessoa mais velha, mas incapacitada ou mais gravemente enferma pode necessitar de mais renda (para assistência, prótese, tratamento) para obter os mesmos funcionamentos (mesmo quando essa realização é de algum modo possível).
O texto, sem dúvida justificam a acolhida que o Judiciário dispensou ao cidadão e suas reais necessidades, firmando decisões como as já citadas. Logo, ao adotar objetivamente o art. 20 § 3º da LOAS estar-se-ia condenando essas pessoas a viverem à margem da sociedade. Inclusive existe decisão de abrangência nacional condenando o INSS a dedução das despesas supracitadas, como pode ser verificada a seguir:
Deduzir do cálculo da renda familiar, para fins de verificação do preenchimento do requisito econômico ao benefício de prestação continuada do art. 20 da Lei nº 8.742/93, as despesas que decorram diretamente da deficiência, incapacidade ou idade avançada, com medicamentos, alimentação especial, fraldas descartáveis e consultas na área da saúde, requeridos e negados pelo Estado (Ação Civil Pública-ACP nº 5044874-22.2013.4.04.7100/RS).
Harmonicamente, assim, se posiciona o STJ, em que pese o tema miserabilidade, “o preceito contido no ar. 20, § 3º, da Lei nº. 8.742/93 não é o único critério válido para comprovar a condição de miserabilidade. A renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo deve ser considerada como um limite mínimo [...]” (AGA 1.164.852, de 26.10.2010).
A Turma Nacional de Uniformização (TNU), em incidente de uniformização representativo de incongruência do ano de 2016, forneceu o seguinte entendimento: “a renda mensal familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo não exclui a utilização de outros elementos de prova para aferição da condição socioeconômica, em face da inexistência de presunção absoluta de miserabilidade [...]” (Processo Nº. 5000493-92.2014.4.04.7002, julgado em: 14.04.2016). Resta clarividente que para conceder o beneficio assistencial não se deve apenas restringir ao critério objetivo do art. 20, § 3º da LOAS.
Art. 1º Fica autorizada a desistência e a não interposição de recursos das decisões judiciais que, conferindo interpretação extensiva ao parágrafo único do art. 34 da Lei nº 10.741/2003, determinem a concessão do benefício previsto no art. 20 da Lei nº 8.742/1993, nos seguintes casos:
I - quando requerido por idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais, não for considerado na aferição da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/1993:
a) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por outro idoso com 65 anos ou mais, que faça parte do mesmo núcleo familiar;
b) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por pessoa com deficiência, que faça parte do mesmo núcleo familiar;
c) o benefício previdenciário consistente em aposentadoria ou pensão por morte instituída por idoso, no valor de um salário mínimo, recebido por outro idoso com 65 anos ou mais, que faça parte do mesmo núcleo familiar;
II - quando requerido por pessoa com deficiência, não for considerado na aferição da renda per capita prevista no artigo 20, § 3º, da Lei nº 8.742/1993 o benefício assistencial:
a) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por idoso com 65 anos ou mais, que faça parte do mesmo núcleo familiar;
b) o benefício assistencial, no valor de um salário mínimo, recebido por pessoa com deficiência, que faça parte do mesmo núcleo familiar.
Analisando o dispositivo é fato que a máquina judiciária pode buscar outras formas de manter a pessoas menos favorecida acobertado pela assistência social, pois como elenca João Carlos Espada (2009), que:
Os direitos de cidadania representam bilhetes de ingresso, oportunidade de acesso, removedores de barreiras, garantia de ingresso num universo de liberdades e, por conseguinte, de condições desiguais. O propósito dos direitos de cidadania não é promover a igualdade; é o evitar a exclusão de um universo de oportunidades. Porque as pessoas são iguais enquanto cidadãos, podem ser livres e diferentes enquanto indivíduos (ESPADA, 2009, p. 86-7).
Pode-se constatar que a hipossuficiência suplanta a condição real, ou seja, seu rendimento mensal. Igualmente, a assistência social na atualidade precisa de uma atenção especial a concessão dos benefícios, quer seja no campo administrativo ou judicial.
Em suma, como se observou em linhas anacrônicas, essa alteração de concessão do amparo assistencial, assinala, sim, uma evolução ativista do Poder Judiciário, aproximando, cada vez mais, seu entendimento com as transformações da sociedade e os anseios desta por direitos e garantias fundamentais não ideológicas, mas efetivas, ocasião em que corrobora o pensamento clássico de direito: “esforça-se encontrar o melhor caminho e, desde que se lhe depare, deve terraplanar toda a resistência que lhe opuser barreiras” (IHERING, 2009, p. 29). Esse é a verdadeira justiça social que se espera.