I – Com a mesma unção de Moisés ao receber, no topo do Sinai, as duas tábuas de pedra, escritas com o dedo de Deus[1], acabam os advogados de saudar a promulgação da Lei nº 8.906, de 4/7/94, que dispõe sobre o Estatuto da Advocacia, de muito esperado como exigência dos tempos e efeito da nova ordem constitucional, que imprimiu justo e merecido relevo à mais bela carreira humana[2].
Dentre as disposições que mais interessaram os advogados, inscreveu-se a que lhes proclamou a inviolabilidade: “No exercício da profissão, o advogado é inviolável por seus atos e manifestações, nos limites desta Lei” (art. 2º, § 3º).
Este princípio, de tão significativa relevância, já o havia consagrado, em seu art. 133, a Carta Magna de 1988. Mas — curioso paradoxo! — antes parecia tirar aquilo mesmo que concedia: em confirmação da velha parêmia, ao cabo trazia oculto o clássico veneno, pois condicionava sua eficácia plena à edição de norma infraconstitucional, de traço legislativo ordinário (inviolável, nos limites da lei).
Tais limites afinal se deram a conhecer pelo Estatuto da Advocacia; por ele é que doravante se regerão os atos do advogado, “no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele”. “Legem habemus”!
II – Às expansões de regozijo dos advogados pela notável conquista que lhes representou o novo diploma estatutário contrapuseram-se, é verdade, algumas vozes, que, à feição de pruridos reacionários, o acoimaram de carta ou foral de privilégios; o que não estranha, pois nenhuma coisa houve ainda debaixo do céu, contra a qual se não atrevesse algum sacrílego[3].
Tanto, porém, que esses críticos inexoráveis entrem no conhecimento de que são eles próprios, não os advogados, os destinatários daquele a que chamam privilégio corporativo, mudarão certamente de parecer.
Sirvam a desenganá-los estas judiciosas palavras do insigne presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Dr. José Roberto Batochio: “O destinatário da franquia da inviolabilidade profissional é o cidadão, titular dos direitos patrocinados, não o advogado, mero intermediário”[4].
Até aquelas matérias que uns poucos tomaram por outorga de regalias e mercês, com ofensa do dogma constitucional da isonomia, passarão, no ânimo de quem as considerar com imparcialidade, por simples proclamação de um direito inerente ao múnus da advocacia: a ampla liberdade de seu exercício.
Todo aquele que desempenha mandato de natureza pública, foi sempre seu apanágio que não sofresse restrição de nenhum gênero, exceto as especialmente estabelecidas em lei. Fiel cumprimento de mandato e limitação arbitrária da atuação de quem o recebeu são ideias que se encontram.
Com maioria de razão isto se deve entender do advogado, para quem o mesmo é trair a grandeza de seu ministério que não poder servir a ele com independência. Donde o forçoso corolário: para advogar é mister ampla liberdade. Ou, como sentia aquele sujeito de raro espírito e talentos que foi Alfredo Pujol: “O advogado tem de ser inteiramente livre, para poder ser completamente escravo de seu dever profissional: O único juiz da sua conduta há de ser a sua própria consciência (…)”[5].
Sobretudo a liberdade de expressão há sempre de garantir-se aos advogados, que, dentre todos os profissionais, são os únicos a quem tocou a palavra por instrumento de luta[6].
III – Em obséquio da grandeza de seu ofício, houve quem reputasse dignas de tolerância as palavras do advogado, ainda nos seus excessos[7]. E não lhe faltaram, que nos conste, carradas de razão. Naquelas defesas onde se reclama certa vivacidade e animação de linguagem, que mais fácil com efeito que ir o advogado além da marca?! Excelentemente, o conspícuo Sobral Pinto: “É que o patrono de uma causa precisa, muitas vezes, para bem defendê-la, assegurando assim o seu êxito, ser veemente, apaixonado, causticante. Sem que o advogado revista a sua defesa de tais características, a sorte do seu cliente estará, talvez, irremediavelmente perdida”[8].
Ao criticar decisão desfavorável ao cliente, nem sempre haverá o advogado de empregar termos afáveis e lisonjeiros, antes lhe notará com vigor os defeitos e erronias, como o permite o estilo do foro ao vencido (…) Mas a liberdade de censura pública (“libertas conviciandi”) não poderá descair em doestos ou baldões, os quais, se não constituem injúria ou difamação (art. 142, nº I, do Código Penal) nem desacato (art. 7º, § 2º, do Estatuto) penalmente puníveis, sujeitam contudo seu autor a ásperas sanções disciplinares.
Tomara nenhum advogado (que, primeiro que o Código Civil, aprendeu o de civilidade) jamais necessite invocar em seu prol o instituto da imunidade profissional. No caso, porém, que venha a achar-se um dia no coração da tormenta (“quod Deus avertat”), a ele recorra como a eficiente salva-vidas!
Notas
[1] Apud Jayme de Altavila, Origem dos Direitos dos Povos, 3a. ed., p. 26.
[2] “Le plus bel état du monde” (Voltaire; apud Carvalho Neto, Advogados, 1946, p. 83.
[3] Aqui vem a ponto um lugar de Vieira: “Não há cousa boa sem contradição, nem grande sem inveja” (História do Futuro, 1992, p. 177).
[4] A Inviolabilidade do Advogado, p. 20.
[5] Processos Criminais, 1908, p. 128.
[6] “Seu rude labor, penosíssimo, de todas as horas, de toda a vida, o advogado o desempenha com a palavra” (J. Soares de Mello, Perfis Acadêmicos, 1957, p. 96). “O advogado luta usando como única arma a palavra” (Ruy A. Sodré, Ética Profissional e Estatuto do Advogado, 1977, p. 163).
[7] “O advogado precisa da mais ampla liberdade de expressão para bem desempenhar o seu mandato. Os excessos de linguagem, que porventura cometa na paixão do debate, lhe devem ser relevados” (Rafael Magalhães, in Revista de Jurisprudência, vol. I, p. 375).
[8] Carvalho Neto, op. cit., p. 481.