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A fiança à locação e a Súmula nº 214 do STJ

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2. A exegese da Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça

            2.1. A controvérsia

            Há profunda divergência na doutrina e jurisprudência quanto à possibilidade do fiador duma locação se libertar do encargo prestado na hipótese em que o contrato tiver passado a viger por tempo indeterminado.

            Para alguns, ainda que o contrato de locação passasse a viger por tempo indeterminado ao fiador seria impossível libertar-se do vínculo se, quando da assinatura do contrato, tivesse renunciado à faculdade de exoneração prevista no artigo 1.500 do Código Civil de 1916 [16], inclusive por conta do disposto no artigo 39 da Lei n° 8.245/91, o qual determina que a fiança prestada na locação vigerá, salvo estipulação contratual em contrário, "até a entrega das chaves". Assim, a renúncia antecipada à faculdade de exoneração somada a vigência da garantia até a devolução do imóvel impediriam a liberação do garante. Nesse sentido [17]:

            "FIANÇA - EXONERAÇÃO (ARTIGO 1500 DO CÓDIGO CIVIL) - RENÚNCIA - VALIDADE – RECONHECIMENTO

            É hígida a cláusula em que fiador renuncia direito à exoneração da fiança, que tampouco resulta da inadimplência da afiançada ou do rompimento da relação trabalhista que ela mantinha com os fiadores. Com o advento do Código Civil de 2002, porém, tornou-se bizantina a questão. (Ap. c/ Rev. 687.676-00/9 - 4ª Câm. - Rel. Juiz CELSO PIMENTEL - J. 23.11.2004)".

            Colhem-se os seguintes fundamentos do v. acórdão:

            "O preceito do artigo 1.500 do Código Civil de 1916 trata de tema de natureza privada, não pública. Quer dizer, constitui regra não cogente, cuja disponibilidade harmoniza-se com a renúncia à exoneração da fiança manifestada, no caso, pelos fiadores, em cláusula que nada tem de nula e que lhes veda a pretendida exoneração, bem repelida na r. sentença."

            E seguem a mesma linha outros julgados emanados da mesma Corte:

            "E porque a obrigação eternizou-se, à falta de um termo fatal para o contrato é que os apelantes entendem ter inteira aplicação o ad. 1500 do Código Civil, para verem-se desonerados da responsabilidade que assumiram. Acrescente-se a isto o fato de a situação financeira dos fiadores ter sofrido modificação, e para pior, além de não mais existir izade entre eles, fiadores e afiançado, justamente pelo fato de nteriormente, o inquilino ter deixado de pagar locativos, obriga o os garantes a saldarem a dívida.

            A r. sentença guerreada desacolheu a pretensão dos apelantes, tendo em vista que, no contrato que firmaram, renunciaram expressamente a faculdade prevista no art. 1500 do Código substantivo.

            E bem andou o magistrado "a quo" julgando improcedente a ação. Realmente, pela cláusula 14ª do contrato, os autores deixaram consignado expressamente que "sua responsabilidade continuará até a entrega real das chaves à Locadora", além do que renunciavam "a qualquer eventual direito no sentido de restringir somente ao prazo ora ajustado, a garantia de sua fiança" (v. fI. 06).

            Assim contratando, outra coisa não fizeram os fiadores que renunciará aplicação do artigo 1500 do Código Civil.

            A questão é saber se aos apelantes era ou não lícito renunciarem.

            E forçoso é reconhecer ter sido lícita tal renúncia, pois essa norma, além de não proibir a renúncia ao poder que confere, dirige-se aos contratos de Direito Privado, como o é o próprio instituto da fiança.

            Lembre-se que somente não é lícito às partes contratantes disporem de maneira diversa se as normas ampararem interesses sociais, os chamados interesses de ordem pública. ‘O art. 1500 é norma de conduta dispositiva que deixa ao destinatário o direito de dispor de maneira diversa, até de renúncia às faculdades que confere. A todo o direito está ínsita a faculdade de disposição e, por conseguinte, se a isto não se opõe motivo de ordem pública, persiste o poder de}bafldono ou de abdicação do próprio direito (Ap. 170.268 - SP, declaração de voto eminente juiz Meilo Junqueira)" (Ap.186.498-7 – 5ª Câm. - rel. juiz ISIDORO CARMONA - j. 11.12.85).

            Sendo lícito renunciarem á aplicação do art. 1500 do Código Civil, incompreensível que os próprios renunciantes venham a juízo, agora, pleitear a exoneração da fiança que livremente pactuaram, ao argumento de que a garantia subsistiu somente durante o prazo inicialmente estipulado no contrato.

            Também a jurisprudência desta Corte já assentou que "é perfeitamente legítima a cláusula contratual de renúncia ao direito de exoneração da fiança, posto que o preceito do art. 1500 do C.C. não tem caráter dispositivo de ordem pública" (RT 612/147).

            Em resumo: os apelantes somente poderiam ver-se desobrigados da fiança se não tivesse havido renúncia à faculdade de exoneração. E como renunciaram, sua responsabilidade deve perdurar até a efetiva entrega das chaves, como pactuado.

            Irrepreensível a r. sentença hostilizada, que deve ser mantida por seus próprios fundamentos." [18]

            "Os autores são fiadores em contrato de locação de bem imóvel para fim não residencial, e, do que consta do instrumento contratual, renunciaram expressamente à faculdade conferida pelo art. 1.500 do Código Civil (cf. cláusula n.° 15, parágrafo único — fi. 11). Isto é, abriram mão da possibilidade de se exonerarem da obrigação acessória de fiança (garantia fidejussória). O ato jurídico é válido porque o da manifestação livre e desembaraçada dos contratantes, res itando se, outrossim, o disposto no art. 82 do Código Civil e, nesse compasso, o princípio da vinculação das avenças (pacta sunt servanda). Significa, pois, que a vigência do pacto de fiança dar-se-á até a efetiva entrega das chaves, corno consta da referida cláusula contratual n.° 15, parágrafo único (fl. 11)." [19]

            Para outros, a faculdade de exoneração instiuída em favor do fiador seria de ordem pública, e, portanto, cogente, o que impediria a sua renúncia antecipada que, se acaso ocorrente, seria leonina ou abusiva. Nesse sentido [20]:

            "FIANÇA - EXONERAÇÃO (ARTIGO 1500 DO CÓDIGO CIVIL) - LOCAÇÃO - RESPONSABILIDADE ATÉ ENTREGA DAS CHAVES - CONTRATO PRORROGADO - CLÁUSULA DE RENÚNCIA - IRRELEVÂNCIA - CABIMENTO

            À vista dos pesados ônus que naturalmente sobrecarregam a fiadora solidária, pode ela, uma vez prorrogada a avença locatícia por prazo indeterminado, sempre que lhe convier, exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, neste conceito compreendida aquela prestada até a entrega das chaves, sendo-lhe inoperante, porque já e então insuportavelmente onerosa, a renúncia eventualmente manifestada em relação ao benefício de exoneração." [21]

            "Resolveram os fiadores desligar-se da fiança prestada através de contatos amigáveis, inclusive com notificação extrajudicial. Contudo, a tentativa resultou frustada. Pretendem, com a presente ação a declaração judicial de sua exoneração, o que mostra-se possível na hipótese em que já vencido e indeterminado o contrato original.

            A jurisprudência de nossos Tribunais tem considerado abusiva cláusula de renúncia à exoneração prevista no art. 1.500 do Código Civil, desde que prorrogada a avença locatícia por prazo indeterminado. Não há ofensa ao art. 39 da Lei n° 8.245/91, uma vez que por direito próprio podem os fiadores pleitear a exoneração.

            Inviável interpretação no sentido de que ficariam eles atados à garantia prestada, posto que seria o mesmo que admitir ficar o garante ligado perpetuamente a obrigação à obrigação, sujeita no tempo, ao arbítrio de terceiro, o que afronta o art. 115 do Código Civil que veda cláusula potestativa." [22]

            Como se pôde perceber, reinava profunda divergência no âmbito do extinto 2º TACivSP no que dizia respeito à validade ou eficácia da renúncia antecipada, pelo fiador de contrato de locação, à faculdade de exoneração dantes prevista no artigo 1.500 do Código Civil de 1916, faculdade essa ora estatuída no artigo 835 do Código Civil de 2002.

            Nesse sentir, percebe-se que longe de se encontrar pacificada tal questão, a mesma ainda é apta a gerar profunda divergência entre os operadores do direito, o que contribui para o clima de insegurança que baliza tão tormentoso tema.

            Em que pese tal fato, não podemos perder de vista que, na prática, a quase totalidade dos contratos de locação contém cláusula expressa de renúncia à faculdade de exoneração do fiador, situação essa que não se mostra negociável: ou o fiador assina o contrato nesses termos ou o inquilino não toma posse do imóvel.

            E assim sendo, como cabe ao locador a escolha da modalidade de garantia contratual que melhor lhe aprouver, aliada à cultura disseminada de que a fiança seria a melhor delas, ou o candidato a locatário arruma alguém para afiançar-lhe o contrato ou não aluga o imóvel desejado. E diante das dificuldades em se encontrar um garante disposto a enfrentar a gravidade das conseqüências que cercam a assunção do encargo, na absoluta maioria das vezes a escolha do fiador recai sobre um amigo próximo ou parente, por serem esses os únicos a demonstrarem (con)fiança na pessoa do afiançado ou, também, os únicos a se sentirem constrangidos diante do pedido que lhes é apresentado. Tal assertiva vem a ser confirmada pela análise dos julgados que abordaram a questão da exoneração do fiador, segundo os quais em nenhum deles os fiadores eram pessoas estranhas ao afiançado, mas, ao revés disso, eram pais, avós, tios ou amigos de longa data.

            Apesar de esse tema não ser o objeto de estudo neste trabalho, há que se dizer, já antecipando a nossa posição sobre o tema, que se se admitisse a renúncia antecipada à faculdade de exoneração ao fiador jamais seria possível libertar-se do encargo enquanto o imóvel objeto da locação não fosse devolvido ao locador. Neste caso, o vínculo se eternizaria porque, não havendo data assinalada para a devolução do imóvel, a permanência do ajuste fidejussório dependeria da manutenção da locação, que por sua vez estaria sob a influência exclusiva da vontade do locador ou do locatário que estipulariam se e quando a mesma haveria de cessar, a qual dependeria de denúncia unilateral, também conhecida como denúncia vazia, por força do disposto no artigo 46, § 2°, da Lei do Inquilinato.

            E essa era a controvérsia que grassava na doutrina e jurisprudência e que levou o STJ a editar Súmula 214, porque alguns julgados consideravam válida a renúncia a faculdade de exoneração, enquanto outros declaravam-na írrita.

            De qualquer maneira, fixemos desde já a premissa que guiou o presente escrito: entendemos que a análise das controvérsias oriundas das questões envolvendo o contrato de fiança não pode ignorar aquilo que acontece na vida real, a fim de serem evitadas situações por demais onerosas aos fiadores que, além de prestarem um favor de grande valia ao afiançado, acabam por comprometer integralmente o seu futuro, pois poderão arruinar todo o seu patrimônio numa operação jurídico-econômica que nenhuma valia ou proveito irá lhes trazer.

            Segundo entendemos, essa veio a ser a razão pela qual o Superior Tribunal de Justiça, ao ter apreendido a realidade da vida, editou a Súmula 214, cujo teor passou a proteger a posição jurídica do fiador sem que comprometesse os interesses do locador, o que promoveu o equilíbrio da posição jurídica das partes, conforme procuraremos demonstrar.

            Não obstante, a partir da edição da súmula em comento, as controvérsias e os debates que já existiam foram por demais acirradas, o que contribuiu para aumentar o clima de profunda insegurança que já cercava o tema.

            Tecidos os presentes esclarecimentos, passemos a analisar o sentido e alcance da Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça.

            2.2. Quais são as acepções dos termos aditamento e prorrogação?

            Analisemos os argumentos apresentados por três doutrinadores que se debruçaram sobre o tema, tendo buscado precisar o sentido da súmula sob enfoque.

            Em comentários à Súmula 214, Heitor Vitor Mendonça Sica [23] fez severas críticas à sua redação [24], entendendo que a palavra aditamento teria o sentido de novação. Escreveu o referido autor:

            "Por "aditamento", pode-se intuitivamente entender novação, em sua modalidade objetiva, prevista no art. 999, I, do CC de 1916 ("Art. 999. Dá-se a novação: I - Quando o devedor contrai com o credor nova dívida, para extinguir ou substituir a anterior."

            A fiança, contrato acessório de garantia que é, segue a obrigação principal. Se houve novação, e a obrigação principal originalmente garantida foi extinta ou substituída, a garantia não subsiste. Trata-se de exegese dos arts. 1.003 e 1.006 da lei civil pátria ("Art. 1.003. A novação extingue os acessórios e garantias da dívida, sempre que não houver estipulação em contrário" e "Art. 1.006. Importa exoneração do fiador a novação feita sem o seu consenso com o devedor principal")."

            Já o ilustre processualista Humberto Theodoro Júnior [25] assim se pronunciou sobre o tema:

            "Com efeito, proclama referida súmula que "o fiador na locação não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu". O enunciado, portanto, não cogitou de prorrogação do contrato, que, às mais das vezes, não decorre de aditamento algum, mas deflui da própria lei. Nem se referiu, obviamente, a prorrogações já previstas na convenção inicial das partes." (Grifamos)

            Sobre o tema, prossegue o Prof. Humberto Theodoro [26]:

            "Ainda que se lavre algum documento para registrar a prorrogação, em tais circunstâncias, o efeito da extensão do vínculo contratual é simples consectário daquilo que desde a origem haviam ajustado os contratantes. A estipulação dc que a fiança perduraria até a entrega das chaves, e não apenas durante o prazo certo de início avançado (sic), decorre do próprio contrato de fiança. Não se pode condicionar sua eficácia à assinatura do fiador no aditivo de prorrogação, porque já convencionado se achava que assim duararia a fiança. Impossível, destarte, exonerar automaticamente o fiador, em tais circunstâncias, por falta de anuência à prorrogação. Essa anuência já fora dada nos próprios termos da fiança em condições de validade inconteste porque autorizada por norma legal expressa (Lei do Inquilinato, art. 39)."

            No mesmo sentido veio a ser a posição adotada pelo e. Desembargador Luis Camargo Pinto de Carvalho [27]:

            "Trata-se de regra de intelecção aparentemente óbvia. O fiador, na locação, responde tão-somente pelas obrigações assumidas. Assim, por exemplo, se, no curso do contrato, locador e locatário deliberam elevar o aluguel acima do originalmente contratado, o fiador somente responderá por esse excedente se com ele houver anuído; ou, se no contrato ficou pactuado que responderia pelas obrigações até o termo final do contrato, para que continuasse a responder, no caso de prorrogação, somente com sua anuência, em aditamento sua responsabilidade prosseguiria.

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            Como, entretanto, em matéria de locação, o contrato se prorroga automaticamente por força de lei, o diploma inquilinário trouxe a regra expressa. como exposto, de que a responsabilidade do fiador se estende até a devolução do imóvel, ou seja, não tendo o fiador limitado sua responsabilidade, ela vai até a extinção da locação, com a devolução do prédio alugado.

            Isso se nos afigura de ululante obviedade. Não há se falar em anuência com relação a prorrogação legal do contrato e extensão das responsabilidades determinadas por lei. Não há aditamento do contrato para isso ocorrer e, por via de conseqüência, não há ao o que anuir. Quando se fala em aditamento, está-se falando em outro contrato, ainda que simples e complementar, com nova manifestação de vontade dos contratantes, com alteração da obrigação original. Como explicita De Plácido e Silva, aditamento significa "o aumento de cláusulas em um contrato já elaborado e mesmo registrado ou a parte acrescida ao final de um documento para alterar ou explicar algumas das condições ali exaradas, ou mesmo para corrigir omissões evidenciadas". Isso, repita-se, não existe em se tratando de prorrogação legal da locação, pois contrato prorrogado por lei não é contrato aditado." (Grifamos)

            Como se vê, a doutrina entende não possuírem o mesmo significado semântico as palavras aditamento e prorrogação. Para o primeiro autor citado, aditamento seria o mesmo que novação. Já para os dois últimos, infere-se que, além de entenderem possuírem diferentes significados semânticos, o aditamento decorreria da manifcstação de vontade dos contratantes, enquanto a prorrogação adviria da lei, razão por que o âmbito de incidência de ambos seria inconfundível.

            Em que pesem as opiniões dos estudiosos citados, com as mesmas não podemos concordar, permissa venia.

            A Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça é assim redigida:

            "O fiador não responde por obrigações resultantes de aditamento ao qual não anuiu."

            Por primeiro, vejamos as acepções que ambos os termos - aditamento e prorrogação - possuem na língua portuguesa, tanto na linguagem comum quanto na jurídica.

            Segundo o Dicionário Eletrônico Houaiss [28], a palavra aditamento teria se originado do latim additaméntum, e significaria adição, acréscimo. E uma das acepções desta palavra seria "2 aquilo que se acrescenta a (algo) a fim de se elucidar, complementar etc." (Grifamos) Portanto, este seria o significado usual da palavra aditamento.

            E na linguagem jurídica, qual seria a verdadeira acepção do termo aditamento? O clássico Vocabulário Jurídico DE PLÁCIDO E SILVA [29] indica que:

            "Tem a mesma significação de adição. Expressa aumento, ampliação. E neste sentido, aditamento tem a significação de: Aumento de cláusulas em um contrato já elaborado e mesmo registrado. Parte acrescida ao final de um documento para alterar ou explicar alguma das condições ali exaradas, ou mesmo para corrigir omissões evidenciadas."

            Portanto, conclui-se que tanto na linguagem comum quanto na jurídica a palavra aditamento expressa o significado de aumento, ampliação, a fim de se elucidar ou complementar algo. Em complemento, pode-se dizer que aditamento, no âmbito jurídico, vem a ser a modificação do conteúdo contratual supervenientemente à formação do vínculo, que tanto poderá redundar na inclusão, exclusão ou modificação de cláusulas contratuais.

            E qual seria o sentido da palavra prorrogação?

            A origem da palavra, conforme extrai-se do mesmo Dicionário Eletrônico Houaiss [30], seria a expressão latina prorogatio, e significaria adiar, demorar, prolongar.

            Com efeito, esclarece nesse sentido o já citado Dicionário Jurídico DE PLÁCIDO E SILVA [31]:

            "Do latim prorogatio, de prorogare (alongar, dilatar, adiar, ampliar), exprime, originariamente, o aumento de tempo, a ampliação do prazo, o espaçamento de tempo, prestes a extinguir, para que certas coisas possam continuar, em seguimento, sem solução de continuidade.

            Nesta razão, a prorrogação pressupõe prazo ou espaço de tempo, que não extinguiu nem se finou, e que é ampliado, dilatado, aumentado, antes que se fine ou se acabe.

            Não se prorroga o quc já se mostra terminado ou acabado, isto é, fora da vigência ou do exercício de um prazo, que não mais existe. Aí, ocorreria coisa nova, iniciar-se-ia um novo espaço de tempo, pela solução de continuidade entre o prazo antigo e o novo prazo, revelando-se, portanto, renovação, não prorrogação.

            A rigor, pois, a prorrogação é a dilatação do espaço de tempo, cujo fim não ocorreu, para que se continue a fazer o que dentro dele se permitia. E, portanto, deve ser promovida antes que termine o prazo ou aquilo que se quer prorrogar, para que o tempo prefixo se dilate ou se amplie.

            Na prorrogação, o antes e o depois ligam-se numa continuidade para se mostrarem como urna única e só coisa, isto é, para que se apresente como um prazo ou um espaço de tempo, em que não se registrou nem ocorreu a menor descontinuidade, o que não se registra na renovação, onde se anota a interrupção entre o passado e o novo ou presente.

            A prorrogação, portanto, tem por objeto precípuo não admitir interrupção nem promover uma solução de continuidade entre o espaço de tempo, que foi insignificante para cumprimento de certo fato, e o outro, que se concedeu ou veio aumentar o passado."

            Prorrogação, pois, teria o sentido de protraimento, dilação de prazo que se encontra prestes a terminar, a fim de se evitar solução de continuidade.

            Portanto, prorroga-se prazo que se encontra em curso; renova-se prazo que já se extinguiu.

            Tendo presente o real significado dos termos aditamento e prorrogação, agora analisemos as posições defendidas pelos doutrinadores dantes citados: Heitor Vitor Mendonça Sica, Humberto Theodoro Júnior e Luís Camargo Pinto de Carvalho.

            Para o primeiro autor, aditamento e novação seriam sinônimos. Data maxima venia, aditamento não é sinônimo de novação.

            A novação constitui modalidade de extinção de uma obrigação que vem ocupar o lugar da primeira. É uma forma de pagamento indireto que, ao mesmo tempo em que extingue o débito anterior, produz um novo débito, em um ato único, de modo que não apenas se assume nova dívida: se assume uma nova dívida em lugar de outra, que se extingue. Este é o mais relevante traço da novação, sem cuja compreensão é impossível a apreensão do instituto, da sua funcionalidade e da sua eficácia, que é a de criar e extinguir relação jurídica por efeito do mesmo ato jurídico [32].

            Portanto, a novação implica na assunção de nova obrigação visando a automática extinção da anterior. É, na verdade, a substituição de uma dívida por outra, substituição essa que implica na extinção da obrigação sucedida pela sucessora, a qual poderá vir a ser exigida do devedor pelo credor na data do seu vencimento. Vejamos que a obrigação sucedida desaparece, razão pela qual o único vínculo que passa a unir credor e devedor é o da obrigação nova, qual seja, a sucessora. É o que se extrai do artigo 360, inciso I, do Código Civil de 2002.

            Como se vê, a finalidade da novação é obter a extinção de uma dívida, mediante a assunção de outra pelo devedor, podendo se dar de forma expressa ou tácia, mas que deve ser sempre inequívoca, ex vi do artigo 361 do Código Civil de 2002.

            A forma expressa é a que se dá por meio de palavras ou escritos; a tácita é que se deduz de fatos que, "com toda a probabilidade, a revelem". Mesmo assim, a forma tácita deve ser inequívoca, isto é, o que não se presta a equívocos, o que é de palmar constatação. Portanto, embora feita de modo indireto a exteriorização de vontade humana, não se admite a inferência, por presunção, do animus novandi [33]. Destarte, a inequivocidade da exteriorização do aninus novandi pode ser analisada sob o critério da incompatibilidade, segundo o qual haveria novação, quando a segunda obrigação fosse incompatível com a primeira, isto é, quando a vontade das partes milita no scntido de que a criação da segunda resultou na extinção da primeira [34]. A novação tácita exige uma mudança radical no objeto e na causa debendi [35], pois só nesse caso seria de se enteder que a segunda obrigação foi assumida tendo por finalidade a extinção da primeira.

            Assim, sendo o aditamento o meio de que se valem os contraentes para proceder a modificação do conteúdo contratual supervenientemente à formação do vínculo, que tanto poderá redundar na inclusão, exclusão ou modificação de cláusulas contratuais, o mesmo tanto poderá servir de instrumento de prova da novação quanto de mera alteração de cláusula do contrato, sem que se fale no ato de contrair-se nova dívida para extinguir e substituir a anterior.

            Logo, o conteúdo do aditamento contratual tanto poderá dizer respeito à extinção de dívida presente mediante assunção de nova que a substitui (= novação), quanto a inserção/exclusão/modificação de obrigações contratuais (= aditamento), sem que haja a intenção de novar, mas sim de modificar o vínculo contratual, total ou parcialmente, tal como a inclusão de cláusula contratual referente ao dever de conservação do imóvel locado (v.g. obrigação do locatário efetuar a pintura do imóvel).

            Como se pode perceber, a inserção de cláusula contratual referente à pintura do imóvel não extingue e substitui obrigação anterior do devedor, mas apenas lhe carreia novo encargo que passa a ser exigível, sendo, pois, mera alteração do conteúdo do contrato.

            Dessa forma, conclui-se que poderá haver aditamento sem novação, mas jamais haverá novação sem aditamento.

            Ora, parece intuitivo que aquele que cumpriu contrato de locação e decidiu manter a locação por novo período não novou, mas renovou o contrato. Neste específico caso, a nova locação não foi estabelecida visando extinguir a anterior, mas sim manter inalterado o estado das coisas: o locador continuar a receber aluguéis, enquanto o locatário permanecer na posse do prédio locado.

            Diante disso, as doutrinas de Humberto Theodoro Júnior e Luís Camargo Pinto de Carvalho, a despeito da força dos argumentos dos mestres, estão a merecer alguns reparos.

            Lembremos que, para os autores citados, aditamento não seria o mesmo que prorrogação porque aquele decorreria da vontade das partes, enquanto esta surgiria por força de lei.

            Com efeito, como se pôde perceber pela exposição anterior, aditamento é modificação do conteúdo do contrato. E modificação, no âmbito contratual, tanto pode se dar por escrito ou verbalmente; decorrer da vontade das partes ou da lei.

            Isso se dá porque vige no direito brasileiro o princípio do consensualismo, que é a liberdade da adoção da forma que revestirá os contratos e os negócios jurídicos unilaterais. Em especial quanto aos contratos, caracteriza-se o consensualismo dizendo que em regra basta o acordo entre as partes, para que estas fiquem vinculadas - consensus obligat [36], ao contrário do que ocorria no direito romano, no qual dominavam o formalismo e o simbolismo que submetiam a validade de determinado contrato ao aperfeiçoamento de determinado ritual.

            Assim, não havendo forma específica estabelecida em lei, nada impede que um contrato escrito venha a ser modficado por aditamento verbal. Da mesma forma, nada impede que um contrato verbal, venha a ser modificado por escrito. A dificuldade maior girará em torno da prova da modificação, não havendo qualquer influência sobre a modificação em si mesmo considerada.

            Como exemplo de aditamento (= modificação) por força de lei, podemos citar as alterações impostas aos contratos das sociedades empresárias em virtude da entrada em vigor do Código Civil de 2002 que em seu artigo 2.031 determinou a adaptação dos atos e contratos sociais à nova disciplina legal imposta ao regime das fundações, associações e sociedades. Em virtude disso, algumas cláusulas tiveram de ser acrescentadas, e outras, eliminadas. Houve total modificação dos conteúdos dos instrumentos sociais em geral por força de lei. Aditamento contratual, pois.

            Portanto, nada impede que a lei preveja a prorrogação ou renovação de contratos, imponha direitos e obrigações às partes, busque salvaguardar os interesses do contratante débil, dentre outros, o que se dá através de normas cogentes, as quais a vontade das partes não pode afastar.

            Nesse sentir, pode-se dizer que prorrogação contratual por força de lei aditamento é, haja vista provocar a alteração da cláusula de vigência do contrato independentemente da vontade dos contraentes, ainda que apenas incida ante a omissão dos mesmos.

            Logo, quando a Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça tratou de aditamento contratual também cuidou, ainda que de forma implícita, da "prorrogação" do vinculo por força de lei, razão pela qual a controvérsia que existe em tomo do tema não encontra qualquer justificativa.

            Não obstante, a questão da "prorrogação" legal do vínculo contratual está a merecer uma breve análise sob outro enfoque, o que faremos no tópico seguinte.

            2.3. Artigo 46, e §§, da Lei 8.245/91: hipótese de prorrogação ou renovação do contrato de locação?

            Com efeito, a questão da prorrogação legal do contrato de locação está a merecer uma breve análise sob outro ângulo, eis que a mesma, para as locações residenciais, vem prevista no artigo 46, e §§, da Lei 8.245/91:

            "Art. 46 - Nas locações ajustadas por escrito e por prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato ocorrerá findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso.

            § 1° - Findo o prazo ajustado, se o locatário continuar na posse do imóvel alugado por mais de trinta dias sem oposição do locador, presumir-se-á prorrogada a locação por prazo indeterminado, mantidas as demais cláusulas e condições do contrato.

            § 2° - Ocorrendo a prorrogação, o locador poderá denunciar o contrato a qualquer tempo, concedido o prazo de trinta dias para desocupação." (Grifamos)

            Com efeito, do ponto de vista técnico-legal com o advento do termo previsto para o término da locação opera-se a extinção do vínculo contratual existente entre locador e locatário. Todavia, por questões de política legislativa, tendo em vista que o déficit habitacional existente no país representa um grave problema social a ser enfrentado, o legislador, ao ter pensado nesse problema, procurou conciliar o interesse de ambos os contratantes: apesar da extinção do vínculo contratual, se o locatário permanecer no imóvel por mais de trinta dias sem oposição do locador, o contrato de locação, antes findo, estará automaticamente "prorrogado" por tempo indeterminado. Todavia, nesta hipótese o locador poderá denunciar [37] o contrato a qualquer momento, concedendo ao inquilino trinta dias para a desocupação, findo o qual sem atendimento poderá ser exigido o despejo do imóvel pela via judicial.

            Muito embora a lei tenha se valido do termo prorrogar, nestes casos ocorre, a bem dizer, a renovação do contrato de locação, porém por tempo indeterminado. E porquê não houve prorrogação, mas sim renovação?

            Porque prorrogação implica no aumento de prazo sem solução dc continuidade, ou seja, apenas se prorroga o que ainda está em curso, conforme já tivemos oportunidade de expor anteriormente. Logo, extinto o contrato de locação por força do advento do termo previsto para o seu término, não se cogita mais de se prorrogar o que já acabou; neste caso, ocorre a renovação do contrato de locação por força de lei e independentemente da vontade das partes, renovação essa que se dá sem que haja tempo determinado, a fim de se permitir a retomada do imóvel mediante denúncia vazia.

            Sobre o tema, doutrina Francisco Carlos Rocha de Barros:

            "Regra antiga de nosso direito, o art. 1.194 do Código Civil [de 1916] afirma que a locação por tempo determinado cessa de pleno dircito, findo o prazo estipulado, independentemente de notificação ou aviso. Isso significa que a locação cessa com a expiração do prazo estipulado, sem necessidade de notificação ou aviso (...) Ao analisar tal artigo, Clóvis dizia ser princípio geral, adotado pelo Código Civil, que o prazo final opera por si a resolução do ato, a que é aposto, não se desviando dessa norma a locação." (J. M. de Carvalho Santos, Código Civil brasileiro interpretado, Freitas Bastos, 1957, v. 17, p. 81)." [38]

            "Prorrogar", no caso, ressente-se de impropriedade, pois só se prorroga o que ainda vive. Se, com o término do prazo, cessou de pleno direito a locação, é impossibilidade lógica falar-se em prorrogação. Dizer que a locação se renova por declaração de vontade presumida pela lei seria mais adequado [39].

            Com efeito, vez mais esclarece nesse sentido o já citado Dicionário Jurídico DE PLÁCIDO E SILVA [40] no verbete renovaçao do contrato:

            "Exprime o restabelecimento de um contrato, que se havia extinto ou que se tinha vencido, mantendo-se as cláusulas originais ou se acrescentando a estas novas cláusulas.

            Importa a renovação do contrato numa dilatação ou aumento de prazo. Mas, difere da prorrogação porque esta somente ocorre quando o primitivo contrato não se tinha ainda vencido: a prorrogação tem que ser cumprida dentro da vigência do contrato. Em caso contrário, ocorrerá uma renovação: restabelecimento e revigoramento do contrato, cujo prazo se extinguira.

            Nos contratos, civis ou comerciais, a diferença traz sua importância, pois que, na prorrogação, não havendo um novo contrato não há pagamento de novo selo, enquanto que na revogação (sic), devendo ser composto um novo instrumento, tudo se faz como se nada existisse."

            E assim sendo, a Lei do Inquilinato não poderia ter prorrogado o que já não mais existia e, por conseguinte, ter imposto a mesma trilha ao contrato de fiança!

            Portanto, não se tratando de mera prorrogação do contrato de locação, mas antes de verdadeira renovação legal da locação por tempo indeterminado, tem-se que extinto o contrato, extinta também estará a fiança, ainda que o fiador tenha se comprometido a garantir o contrato de locação até que se desse a entrega das chaves do imóvel, como tem decidido sistemáticamente o Superior Tribunal de Justiça.

            Ora, falar em prorrogação do que já acabou revela uma insuperável contradição lógica, de modo que há, no caso, renovação do contrato de locação.

            Assim, como a extinção do contrato de locação se dá automaticamente com o advento da data fixada para o seu término, uma vez extinta a locação automaticamente também extinta estará a fiança, contrato acessório que deverá seguir a sorte do principal.

            Nestes casos, ocorrida a renovação da locação ante a omissão das partes em denunciá-la, se acaso o locador pretender manter a garantia no período de vigência por tempo indeterminado deverá obter a anuência dos fiadores, fazendo, assim, que o contrato de locação renovado por força de lei seja garantido durante esse período pela fiança.

            Portanto, ante o vencimento do contrato de locação o locador depara-se com 2 (duas) alternativas possíveis: a) obtém a anuência dos fiadores originários, e com isto mantém a garantia fidejussória, ou b) exige do inquilino a indicação de novos fiadores, sob pena de considerar resolvido o contrato por infração legal, em virtude da aplicação conjunta dos artigos 40, inciso IV e 9°, inciso II, da Lei do Inquilinato, sem prejuízo de poder exigir o pagamento do aluguel antecipadamente do inquilino até o sexto dia útil do mês vincendo, como previsto no artigo 42, da mesma Lei.

            Dessa maneira, protegido fica o fiador, que não terá a sua obrigação extendida além do vencimento previsto para o contrato de locação, bem como salvaguardado estará o locador que poderá exigir a indicação de novo fiador, sob pena de, na omissão do inquilino, agir para obter o despejo do imóvel. Com isso, equilibra-se a posição jurídico-econômica das partes sem que as mesmas sejam onerdas em demasia, o que foi feito pelo Superior Tribunal de Justiça com a edição da Súmula 214.

            2.4. Harmonização dos interesses em conflito: é possível a aplicação conjunta do artigo 819 do Código Civil e do artigo 39 da Lei do Inquilinato?

            Destarte, ainda que tenhamos procurado demonstrar as razões e a conveniência da Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça, uma questão ainda exige resposta: Como conciliar o princípio da interpretação restritiva do contrato de fiança previsto no artigo 819 do Código Civil de 2002, com a regra legal de vigência das garantias prestadas à locação de imóvel "até a entrega das chaves", prevista no artigo 39, da Lei do Inquilinato?

            Com efeito, diz o artigo 819 do Código Civil de 2002:

            "A fiança dar-se-á por

escrito e não admite interpretação extensiva." (Grifamos)

            Já o artigo 39 da Lei 8.245/91 assim dispõe:

            "Salvo disposição contratual em contrário, qualquer das garantias da locação se estende até a efetiva devolução do imóvel"

(Grifamos)

            Não vemos outra alternativa que não seja a transposição, para o campo das leis ordinárias, do critério de interpretação constitucional denominado de princípio da razoabilidade, que muito embora seja utilizado na seara da interpretação constitucional para valorar os atos do Poder Público à luz dos critérios de utilidade e justiça, nada impede a sua aplicação no campo das relações interprivadas, mormente porque a chave para bem aplicar os institutos jurídicos tem sido a (re)leitura dos textos legais ordinários à luz dos valores e princípios da Constituição Federal de 1988.

            Sobre o tema, doutrina o professor Luis Roberto Barroso:

            "O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de preposições que não o libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. Há autores, mesmo, que recorrem ao direito natural como fundamento para a aplicação da regra da razoabilidade, embora possa ela radicar-se em princípios gerais da hermenêutica. Sobre este ponto em particular, veja-se a passagem, inspirada em San Thiago Dantas:

            "Não é apenas a doutrina do Direito Natural que vê no Direito uma ordem normativa superior e independente da lei. Mesmo os que concebem a realidade jurídica como algo mutável e os princípios do Direito como uma síntese das normas dentro de certos limites históricos reconhecem que pode haver leis inconciliáveis com esses princípios, cuja presença no sistema positivo fere a coerência deste, e produz a sensaçao íntima do arbitrário, traduzido na idéia de lei injusta." [41]

            No campo do direito privado, pode-se considerar que o princípio da razoabilidade adota o nome de lógica do razoável.

            Segundo já explicou o jurista Alípio Silveira, "a determinação dos conteúdos do Direito, tanto das normas gerais das normas individualizadas dcve reger-se pelo logos do humano e do razoável.

            O legislador opera com valorações sobre tipos de situações reais ou hipotéticas em termos genéricos e relativamente abstratos. O essencial em sua obra nunca consiste no texto da lei, mas nos juízos de valor que o legislador adotou como inspiração para sua lei.

            O processo de produção do Direito continua na obra do órgão jurisdicional, o qual, em lugar de valorar. em termos gerais, certos tipos de situações, tem de valorar, em termos concretos, situações individuais. Para isso, tem que valorar a prova, valorar os fatos do caso apresentados, compreendendo seu sentido singular, qualificando-os juridicamente, e estimando qual seja a norma adequada. O conjunto dessas operações, travadas recíproca e indissoluvelmente entre si, é o plano dc solução mais justa dentro da ordem jurídica positiva." [42]

            Portanto, conclui-se caber ao intérprete da lei cscolher, dentre as interpretações possíveis, aquela que se revela a mais razoável no caso concreto, a qual deve sempre conduzir à idéia básica de utilidade e justiça, reflexos estas da solidariedade e justiça social proclamdas no artigo 3°, inciso I, da Constituição Federal.

            E no caso em análise, a visão principiológica do Direito permite a conclusão de que o princípio estatuído no artigo 819 do Código Civil, relativo à interpretação restritiva da manifestação de vontade do fiador, não poderia ter sido alterado pela regra do artigo 39 da Lei do Inquilinato, relativo à extensão da responsabilidade do fiador.

            Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo [43].

            Os princípios jurídicos constituem a base do ordenamento jurídico, a parte permanente e eterna do Direito e, também, o fator cambiante e mutável que determina a evolução jurídica; são as idéias fundamentais e informadoras da organização jurídica da Nação [44]. E, precisamente por constituirem a base mesma do Ordenamento, não é concebível uma norma legal que os contravenha [45]. Assim, ainda que lei posterior venha a dispor contra princípio exposto em lei anterior, e desde que esse princípio disser respeito à estrutura de uma determinada área da ciência jurídica, razão por que poderia ou não ter sido positivado, não se admite a derrogação, pois, como já o disse Gustav Radbruch, "há leis que não são Direito e de que há Direito acima das leis?" [46]

            Ora, e por ser o princípio da interpretação restritiva dos negócios jurídicos benéficos o fundamento basilar desta espécie contratual (art. 114, do Código Civil), e sendo a fiança uma modalidade de contrato benéfico, em cuja disciplina o legislador entendeu por bem reforçar o princípio da interpretação restritiva (art. 819 do Código Civil), a regral legal de extensão das garantias "até a entrega das chaves" na locação prevista no artigo 39 da Lei do Inquilinato deve ceder espaço à proteção do fiador, cuja garantia deve se entender ter sido prestada até o vencimento do contrato, porque essa seria a conclusão mais razoável se o fiador pudesse prever, no momento da apresentação da garantia, quais as graves conseqüências que lhe advirão se após o vencimento do contrato o inquilino deixar de pagar os aluguéis e encargos.

            Esse é um princípio fundamental dos contratos benéficos, universalmente aceito pela doutrina, de modo que em não tendo havido a sua derrogação expressa pela Lei do Inquilinato, há que ser interpretado de modo a harmonizá-lo com dispositivos que porventura se entremostrem colidentes. Outrossim, não poderia a Lei do Inquilinato ter alterado o fundamento em que se funda a tipicidade do contrato de fiança construída no Código Civil sem que a sua estrutura também tivesse sido alterada naquela lei.

            Ao ter comentado o artigo 39 da Lei do Inquilinato, o insígne Francisco Carlos Rocha de Barros assim escreveu:

            "Por outro lado, não é dificil sustentar que este artigo de lei do inquilinato não revogou o art. 1.483 do Código Civil [47]. Não houve declaração expressa nesse sentido e aqui não se cuidou de regular inteiramente o contrato de fiança (§ lº do art. 2° da LICC). Resta, apenas, alegar incompatibilidade, mas sem garantia de sucesso, pela maneira genérica e ligeira como a matéria é tratada neste artigo da lei do inquilinato. Para revogar preceito tradicional do Código Civil, que, aliás, reflete opinião universal da doutrina sobre interpretação dos contratos gratuitos, é de se ter como ineficaz a norma veiculada por este artigo, até porque existe norma geral de interpretação dos contratos, consignada no art. 1.090 do Código Civil [48], afirmando que os contratos benéficos interpretar-se-ão estritamente. Ainda que se admitisse a revogação do art. 1.483, não vemos como sustentar a revogação do art. 1.090." [49]

            Frise-se, nesse sentido, que o fundamento, a base indestrutível dos contratos gratuitos é a de que as manifestações de vontade deles oriundas deverão ser sempre interpretadas restritivamente, pois com isto o legislador buscou proteger a posição jurídica do sujeito que, ao ter manifestado uma liberalidade, visou beneficiar a outra parte sem nada receber em troca. Assim sendo, há que se ter em mente que todo o ato de disposição patrimonial há que ser interpretado de forma restritiva, a fim de que sejam equilibradas as posições jurídicas das partes. E equilíbrio das posições jurídicas das partes haverá se os riscos do negócios forem atribuídos aos contratantes de forma materialmente justa.

            E assim o é porque entendemos que um princípio fundamental de uma determinada área do conhecimento jurídico não pode ser alterado por lei especial sem que a própria estrutura do instituto seja também alterada, sob pena de causar uma situação de anomia, ainda que aparente, que mais do que proteger a pessoa do locador, acaba por gerar tremenda insegurança jurídica em face das profundas divergências que tem provocado na doutrina e jurisprudência, o que acabou por ser agravado com a edição da Súmula 214 do Superior Tribunal de Justiça.

            Com efeito, o intérprete da lei não pode ignorar a realidade das coisas, como é a dinâmica da vida, pois a imensa maioria dos fiadores não possui a menor noção da dimensão que a sua vinculação nessa condição representa, uma porque o objetivo principal é o de ajudar um amigo ou parente próximo; duas porque sendo o contrato de locação vínculo obrigacional de execução continuada, normalmente o inadimplemento se dá após o vencimento do contrato e durante o período de prorrogação da locação por tempo indeterminado, o que acontece muitas vezes após vários anos, sem que o fiador venha a se recordar da fiança quc prestara tempos antes. Esta é a realidade da vida que não pode ser ignorada pelo intérprete da lei.

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Sobre o autor
Alessandro Schirrmeister Segalla

advogado em São Paulo , especialista em Direito das Relações de Consumo com Extensão em Direito Processual Civil pela PUC-SP, Aluno Especial do Programa de Mestrado em Direito da USP.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SEGALLA, Alessandro Schirrmeister. A fiança à locação e a Súmula nº 214 do STJ. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 802, 13 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7281. Acesso em: 18 abr. 2024.

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