1. Duas coisas, ao aviso de graves autores, deve possuir o advogado, para que verdadeiramente o seja: bom senso e bom texto. Bom senso, porque nisto mesmo consiste o Direito, de que será sempre indefesso paladino; bom texto, porque de sua expressão verbal e literária penderá a sorte dos pleitos cujo patrocínio lhe tenha sido confiado.
É a própria dignidade de seu claro ofício a que pressupõe este notável predicado, que antes parece virtude que aptidão do espírito: o siso. Mesmo que não se tenha na conta de jurisprudente, o homem do Direito será prudente por força[1].
Noutros profissionais talvez se pudesse tolerar a falta de prudência no dizer e no obrar; nunca porém no advogado, que, no desempenho de seu augusto ministério, toma as vezes de conselheiro.
Poucos resultados, de fato, serão mais dignos de lástima do que aqueles a que der causa sua irreflexão ou desequilíbrio. Quer fale, quer escreva, o advogado haverá de mostrar-se em tudo varão de reto juízo e bom acordo.
Provas serão estas de que o advogado se guiou pelas regras da prudência: entre duas alternativas, escolheu a que se lhe afigurava melhor ou menos gravosa para o cliente; não relegou para o último dia do prazo fatal e peremptório a prática de ato que lhe incumbia; não fiou de outrem a guarda de autos de processo que lhe foram entregues mediante carga em livro próprio; recusou-se a orientar testemunhas que depusessem contra a verdade real e sabida; em face das injúrias e da incontinência de linguagem do adversário, conservou a serenidade de ânimo e repeliu com argumentos de razão e polidamente as invectivas que recebeu[2], etc.
Em pontos de bom senso, como em tudo o mais na vida, importa atender àquela “primeira máxima de toda a razão de estado, assim da providência divina, como da providência humana, que é saber concordar estes dois extremos: conseguir o intento e evitar o perigo” (Vieira, Sermões, 1959, t. I, p. 329).
2. Outra característica da formação profissional do advogado respeita à ciência da linguagem vernácula e da linguagem do foro. Espadachim da palavra, ao advogado cumpre cultivá-la com esmero, fidelidade e constância. Todo o seu arrazoado há de encerrar bom texto (que não contravenha às regras rudimentares da composição literária, mas se ajuste aos moldes da gramática e revele galas e primores de estilo). Sobretudo os princípios básicos da arte de escrever não pode ignorá-los o advogado, e entre esses a correção.
É intolerável se transforme sua petição em corpo de delito de infrações graves perpetradas contra as leis gramaticais[3]. A leitura (o estudo, fora melhor dito) dos manuais que ensinam a bem escrever, e a conversação dos autores que granjearam nomeada como padrões do dizer vernáculo[4], aliadas à vontade férrea de possuir em grau assinalável sua língua, satisfarão a essa dificuldade. Tudo vence o trabalho perseverante, já o afirmara quem pôde prová-lo[5].
Particular da profissão que abraçou, o advogado há de conhecer e praticar a linguagem forense, empregando-lhe os termos próprios. O frasear jurídico e o estilo do foro obtêm-se com a lição dos mestres; daqueles que se abalizaram igualmente na ciência do Direito que nos segredos de sua língua[6].
Só o advogado que não subestimou as prendas da linguagem e do saber jurídico pode-se afirmar que foi cabal em seu ofício, convindo-lhe pois o famoso conceito de Catão: “Vir bonus, dicendi peritus”. Homem de bem, perito na arte de dizer!
Notas
[1] “A prudência compõe-se de ciência e de experiência, encaminha para o bem e previne o mal, e na milícia é mais necessária que a força” (J. I. Roquete, Dicionário dos Sinônimos da Língua Portuguesa).
[2] A altercação que, no debate da causa, substitui pelos convícios a veemência da linguagem, não se concilia com os preceitos da urbanidade, a que nos havemos de sujeitar os advogados, se não por amor da convivência em sociedade, ao menos para não expor à fortuna vária o resultado que do pleito justamente esperamos. “Moderação e urbanidade na expressão, eis o melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz”, pontificou o egrégio Machado de Assis (Obras Completas, vol. VI, p. 149). E Ângelo Majorana: “Tu gritas? Logo, não tens razão!” (As Formas Práticas da Eloquência, 1945, p. 209; trad. Fernando de Miranda).
[3] Livros que servem de guia seguro em questões de linguagem há-os em barda. Ao leitor benévolo não é preciso que lhe refiramos senão os mais bem reputados: Mário Barreto (Estudos da Língua Portuguesa, Novos Estudos da Língua Portuguesa, De Gramática e de Linguagem, Últimos Estudos, etc.); José de Sá Nunes (Língua Vernácula, Aprendei a Língua Nacional, etc.); Cândido de Figueiredo (Problemas de Linguagem, Lições Práticas da Língua Portuguesa, O que se não deve dizer, etc.); Ernesto Carneiro Ribeiro (Serões Gramaticais, Ligeiras Observações, Tréplica, etc); Napoleão Mendes de Almeida (Gramática Metódica da Língua Portuguesa, Dicionário de Questões Vernáculas, etc.); Pedro Adrião (Tradições Clássicas da Língua Portuguesa).
[4] Por frequentes quanto errôneas, devem evitar-se estas construções ou grafias: a) “Penalizar” o réu (no sentido de apenar, impor pena a, etc.). Penalizar quer dizer causar pena, dor ou aflição a (cf. Caldas Aulete, Dicionário); b) “Haviam” (por havia) indícios veementes da autoria criminosa. Haver, com o significado de existir, não se flexiona. “Houveram” coisas terríveis — “Este solecismo é realmente feio, é quase bestial” (Camilo, in Polêmica de Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, 1966, p. 49). Outro tanto com referência ao verbo fazer, na acepção de tempo decorrido: Faz (e não “fazem”) 90 dias que o réu está preso; c) Vossa Excelência “fostes” injusto com o réu. Corrija-se: (…) foi injusto. Os pronomes de tratamento obrigam o verbo à terceira pessoa; d) Quero muito falar “consigo”. Falar contigo (com você ou com o senhor) é como se deve dizer. O pronome consigo refere-se ao sujeito do verbo. Ex.: O preso falava consigo, isto é, com seus botões, só, etc. São também dignas de nota estas cacografias: “meretríssimo” (meritíssimo), “previlégio” (privilégio), “indiscreção” (indiscrição), “interviu” (interveio), “exitar” (hesitar), “excessão” (exceção), “infrigir” (infringir: transgredir, desrespeitar, desobedecer a, etc.), “inflingir” (infligir: aplicar, impor, etc.), “frustar” (frustrar). Ainda que empregadas amiúde, carecem de foros de vernaculidade as locuções posto que, em sentido causal (porque), e “vez que” em lugar de uma vez que. Exemplos: O réu não merecia condenado, “posto que” nenhuma a prova de sua culpabilidade. Em vez de “posto que”, era para dizer porque, porquanto, por isso que, uma vez que, visto que, como, visto como etc. Posto que tem lugar só em frases deste feitio: Posto que (isto é, embora, suposto, ainda que, mesmo que, a despeito de que, etc.) levemente, o réu violou a ordem jurídica. Uma vez que (e não “vez que”): A defesa desistiu de suas testemunhas, uma vez que não compareceram à audiência.
[5] “Labor improbus omnia vincit” (Virgílio, Geórgicas, liv. I, v. 145).
[6] Copioso rol de insignes autores pudéramos desfiar aqui. Todavia, por não nos alongarmos demasiado, citamos apenas dois, que, sobre terem sido juristas exímios, foram também guapíssimos escritores: Rui (Parecer sobre a Redação do Código Civil, Réplica, Tréplica, Trabalhos Jurídicos, etc.) e Orosimbo Nonato (Da Coação como Defeito do Ato Jurídico, Estudos sobre Sucessão Testamentária, Curso de Obrigações).
Dos vivos sempre nos apraz arrolar os nomes destes autores cujas obras passam por imprescindíveis à boa formação jurídica e literária do advogado: Eliézer Rosa e Eliasar Rosa. Não vem para aqui a apreciação (que o não sofre a pouquidão do espaço) das excepcionais contribuições que às letras jurídicas do País têm dado estes irmãos, ambos sujeitos eminentes em saber, doutrina, letras e virtudes. Mencionamos-lhes somente as obras, e estas por maior, onde muito se achará que aprender, admirar e aplaudir: Eliézer Rosa (Dicionário de Processo Civil, Dicionário de Processo Penal, A Voz da Toga, etc.); Eliasar Rosa (Os Erros mais Comuns nas Petições, Glossário Forense, Dicionário Didático do Direito das Sucessões, etc).