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Inteligência moral:

mente, cérebro e o Direito

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Projeto acerca das implicações neurocientíficas vinculadas ao problema de interpretação e aplicação do direito

No Laboratório de Sistemática Humana da Universitat de les Illes Balears, estamos desenvolvendo um projeto de investigação cuja finalidade é a de identificar as áreas cerebrais ativadas (MEG e fMRI) durante tarefas de juízo em profissionais da magistratura e não profissionais.

O projeto consiste em identificar os circuitos cerebrais que se ativam quando realizamos determinados tipos de juízos. Em concreto, o objetivo do projeto reside no fato de estudar os juízos de natureza jurídica e contrastá-los com os de natureza unicamente moral, estes últimos sem consideração jurídica. Assim mesmo pretendemos comparar as ativações geradas por estes juízos em pessoas que exerçam sua profissão na magistratura com as causadas em pessoas alheias a esta profissão. Pretende-se investigar, em síntese: (I) se os chamados juízos (casos) "fáceis" e "difíceis" ativam os mesmos processos cerebrais; (II) se os circuitos cerebrais ativados por profissionais da magistratura ante um juízo são os mesmos ou similares aos que outros cidadãos ativam; e (III) se estes circuitos cerebrais coincidem em sua ativação durante juízos de caráter ético-jurídico e juízos sem carga jurídica.

A localização das redes neuronais implicadas nestes juízos será levada a cabo mediante magnetoencefalografía (MEG) e ressonância magnética funcional (fMRI), com o fim de estabelecer com a suficiente precisão os padrões temporais e espaciais. O projeto está relacionado com outros dois anteriores: um do triênio 2000-2003 em que se estudaram algumas chaves evolutivas da linguagem e dos juízos morais e estéticos, e outro obtido em 2003 dirigido a analisar com maior precisão a ativação cerebral durante os juízos estéticos (Cela-Conde et al, 2004). Neste projeto se abordará agora a análise dos circuitos cerebrais ativados em tarefas de juízos morais, centrando-nos especialmente nos de natureza ético-jurídica e introduzindo a experiência profissional dos magistrados como possível fonte de diferenças.

A idéia central é a de que os experimentos propostos permitam, em primeiro lugar, conhecer que circuitos neuronais intervêm no processo de juízos, tanto jurídicos como unicamente morais, tanto nos casos fáceis como difíceis, tudo isso em participantes sem transtornos clinicamente diagnosticados. Realizaremos, assim, uma localização que permita não somente estabelecer as pautas espaciais senão também sua distribuição temporal, de enorme importância à hora de entender as funções cognitivas (Bartels & Zeki, 2004). Em segundo lugar, caberia entender em que medida os profissionais da magistratura utilizam os mesmos processos cognitivos de juízo que os cidadãos sem responsabilidades judiciais.

Também permitirá definir se no ato de julgar (especialmente os denominados "casos difíceis") as respostas aos dilemas por parte dos distintos sujeitos implicados no experimento variam de maneira substancial, muito particularmente no que se refere aos juízos e às atividades levadas a cabo por magistrados pertencentes a um Tribunal (2º. Grau de jurisdição) e por juízes que exercem a atividade jurisdicional em primeiro grau de jurisdição (1ª. Instância). Nesse sentido, parece razoável supor que, no primeiro caso (de juízes pertencentes a um Tribunal), os correlatos neuronais ativados no ato de julgar sejam os mesmo encontrados no dilema tipo trolley (que implica uma maior distância pessoal para quem julga a ação), em que os magistrados, situados em uma posição distante das partes e dos fatos concretos, intervêm de forma não arbitrária e impessoal nos planos de vida dos indivíduos envolvidos na demanda.

Por outro lado, já agora no caso de juízes de 1ª. Instância, os correlatos neuronais ativados no ato de julgar podem vir a ser os mesmos encontrados no dilema tipo footbridge (que implica uma maior proximidade pessoal com os interesses contrapostos), uma vez que, por se encontrarem em contato mais direto com as partes e os fatos concretos, a forma de intervenção não arbitrária implique um juízo pessoal no ato de intervir nos planos de vida dos indivíduos envolvidos na demanda. Tudo isso pese à obviedade de que o resultado final de ambos os casos é o mesmo: aplicar o direito a um caso concreto, intervindo por via institucional nos planos de vida das pessoas envolvidas em uma determinado conflito de interesses.

Por fim, nos permitirá identificar o papel que joga a racionalidade e a emotividade no ato de julgar para, a partir daí, elaborar o desenho de um modelo metodológico mais adequado para a tarefa do jurista-intérprete de dar "vida hermenêutica" ao direito positivo.


Mirando ao presente

O desenho do cérebro que está aparecendo graças aos estudos da engenharia cerebral aponta já algumas pistas dignas de menção. Em primeiro lugar, a confirmação daquelas hipótesis lançadas por Crick e Koch (1990) acerca da consciência como uma atividade sincronizada de neurônios que se encontram situados em lugares distintos da corteza cerebral, coisa que acaba por colocar em cheque algumas das ideáis mais firmes do funcionalismo computacional e da concepção estrita do suposto da modularidade dos processos cognitivos (Fodor, 1983), como por exemplo: o de um processador central e um progresso bottom-up da percepção até chegar aos processos superiores.

No que chamamos "conhecimento" intervêm sequências de ativação complexas cujas dimensões espaciais e, sobretudo, temporais não puderam ser postas de manifesto até o desenvolvimento de técnicas tão precisas como a da magnetoencefalográfica, capaz de detectar a ativação neuronal em lapsos de centésimos de segundo.

Por outro lado, a caracterização neurológica da moral sim que parece compatível com uma psicologia evolucionista que entenda que uns mesmos processos cognitivos intenvenham em diferentes tarefas ou para resolver diferentes problemas (Shapiro & Epstein, 1998).

Particularmente com relação ao direito, a investigação neurocientífica sobre a cognição moral e jurídica vem, de certa forma, revolucionando nosso entendimento acerca da natureza do pensamento e da conduta humana, com consequências profundas que podem vir a afetar o domínio próprio (ontológico e metodológico) do fenômeno jurídico. E como parece não haver uma instituição humana mais fundamental que a norma jurídica e, no campo do progresso científico, algo mais instigante que o estudo do cérebro, a união destes dois elementos (norma/cérebro) acaba por representar uma combinação naturalmente fascinante e estimulante, uma vez que a norma jurídica (sua interpretação e aplicação) e o comportamento que procura regular são ambos produtos de processos mentais.

Decerto que também resulta precipitado pensar que as primeiras investigações neurocientíficas acerca do juízo moral e normativo já nos abrem a porta a uma humanidade melhor. Temo-me que isso seria simplificar as coisas ao extremo. Assim como o criacionismo ingênuo pode condenar aos humanos a uma minoria de idade permanente, assim também um modelo neurocientífico incompleto pode levar-nos a conceber ilusões impróprias. Porque não é definitivamente certo que um maior e melhor conhecimento dos condicionantes neuronais dos humanos nos proporcione automaticamente uma vida humana mais digna. Oxalá fossem as coisas tão simples!

Pensar que a relação cérebro/moral/direito é tudo pode levar-nos a olvidar que a medida do direito, a própria idéia e essência do direito, é o humano, cuja natureza resulta não somente de uma mescla complicadíssima de genes e de neurônios senão também de experiências, valores, aprendizagens, e influências procedentes de nossa igualmente embaraçada vida sócio-cultural.

O mistério dos humanos consiste precisamente em advertir que cada um é um mistério para si mesmo. A neurociência nos ajudará a entender uma série de elementos que configuram o mistério, mas não o eliminará de todo.

Ainda assim, dando por sentado que o mistério permanecerá sempre, a ciência talvez possa levar-nos a entender melhor que a busca de um adequado critério metodológico para a compreensão e a realização do direito pode considerar-se, antes de tudo, como a arqueologia dessas estruturas e correlatos cerebrais relacionados com o processamento das informações ético-jurídicas.

Poderá, inclusive, ajudar-nos a compreender que a atividade hermenêutica se formula precisamente a partir de uma posição antropológica e põe em jogo uma fenomenologia do atuar humano; que somente situando-se desde o ponto de vista do ser humano e de sua natureza será possível ao julgador representar o sentido e a função do direito como unidade de um contexto vital, ético e cultural. Esse contexto estabelece que os seres humanos vivem das representações e significados desenhados para a cooperação, o diálogo e a argumentação e processados em suas estruturas cerebrais. Que, em seu "existir com" e situado em um determinado horizonte histórico-existencial, os membros da humanidade reclamam continuamente aos outros, cuja alteridade interioriza, que justifiquem suas eleições aportando as razões que as subjacem e as motivam.

Estamos longe ainda de contar com um mapa preciso das ativações espaço-temporais relacionadas com os processos cognitivos, mas parece que vamos trilhando um bom caminho para começar a fazê-lo e a compreendê-lo. Já sabemos, por exemplo, que na tarefa de realização de juízos morais (assim como de juízos normativos no direito e na justiça) é essencial a conexão fronto-límbica (Damasio, 1994; Adolphs et al, 1998; Greene et alii, 2001 e 2002; Moll et alii, 2002 e 2003; Goodenough & Prehn, 2005). Sabemos que a percepção estética implica a ativação da corteza préfrontal esquerda (Cela-Conde et al, 2004). Sabemos como se realiza o processamento das cores a partir dos centros visuais primários da corteza ocipital (Zeki & Marini, 1998; Bartels & Zeki, 1999), assim como a ativação neuronal relacionada com a identificação de objetos percebidos mediante a visão (Heekeren, Marrett, Bandettini & Ungerleider, 2004). Em termos gerais vai aparecendo um panorama em que a corteza préfrontal joga um papel de primera ordem respeito do que são os processos cognitivos superiores, coisa que, por outra parte, havia sido já sugerida, ainda que fosse a título de hipóteses especulativa, pelos paleoantropólogos (Deacon, 1996; 1997).

Seja como for, e ainda que não saibamos grande coisa acerca do funcionamento de nosso cérebro, e muito particularmente dos correlatos cerebrais que ditam o sentido da moral e da justiça, converter esse mar de especulações em certeza é decerto a tarefa que se espera da ciência, no preciso sentido de que uma compreensão mais profunda das causas últimas (radicadas em nossa natureza) do comportamento moral e jurídico humano poderá vir a ser de grande utilidade para averiguar quais são os limites e as condições de possibilidade da ética e do direito no contexto das sociedades contemporâneas, assim como do caminho evolutivo que deu lugar à natureza e à moralidade humana.

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Sobre os autores
Atahualpa Fernandez

Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB/España; Independent Researcher.

Marly Fernandez

Doutora em Humanidades y Ciencias Sociales pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Cognición y Evolución Humana pela Universitat de les Illes Balears- UIB (Espanha). Mestra em Teoría del Derecho pela Universidad de Barcelona- UB (Espanha). Pós-doutorado (Filogènesi de la moral y Evolució ontogènica) pelo Laboratório de Sistemática Humana- UIB (Espanha). Investigadora da Universitat de les Illes Balears- UIB pelo Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog (Espanha). Membro do Grupo de Cognición y Evolución humana/Unidad Asociada al IFISC (CSIC-UIB) do Instituto de Física Interdisciplinar y Sistemas Complejos/UIB (Espanha).

Manuella Fernandez

bacharelanda em Direito pela Unaerp, bolsista do Laboratório de Sistemática Humana da UIB

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDEZ, Atahualpa ; FERNANDEZ, Marly et al. Inteligência moral:: mente, cérebro e o Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 803, 14 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7294. Acesso em: 23 nov. 2024.

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