CAPÍTULO II – MODALIDADES DE LEGÍTIMA DEFESA
2.1 Legítima defesa real, própria ou autêntica
Em linhas gerais, a legítima defesa real, própria ou autêntica é a tradicional defesa legítima, como o próprio nome traz a observação, configurando uma modalidade de excludente de ilicitude, aquela que permite ao agredido se proteger de uma ação ilegítima e que pretende causar-lhe graves lesões e até a morte; ou ainda, para melhor compreensão, o conceito se depreende da segunda característica legal do estudo de um delito pela teoria do crime ou do conceito analítico do crime, a antijuridicidade.
Tal excludente é uma proteção positivada no dispositivo legal que tem por finalidade a proteção da pessoa contra agressão injusta, atual ou iminente, a direito próprio ou alheio (de terceiros), e com vontade e intenção de defender-se, repelindo o ataque com o uso de qualquer meio para isso, desde que seja moderado e razoável, para que, no exato momento possa fazer cessar qualquer dano injusto, físico ou psicológico, que lhe possa ser causado.
Assim, para ser considerada uma defesa legítima real e ser o agente beneficiado com a exclusão de qualquer crime tipificado pelo ordenamento jurídico, a ação de defesa terá que cumprir todos os requisitos e exigências legais previstos no Código Penal, em específico dos artigos 23, inciso II e 25, caput, já descritos no decorrer do presente trabalho, ou seja, há que se agir perfeitamente dentro da previsão para se atingir o objetivo disciplinado pela lei, conforme estabelece Cesar Roberto Bitencourt: “a) Legítima defesa real ou própria – é a tradicional defesa legítima contra agressão injusta, atual ou iminente, onde estão presentes todos os requisitos da sua configuração”.[41]
E também pronuncia-se com clareza Rogério Greco ao conceituar a legítima defesa real ou autêntica: “Diz-se autêntica ou real a legítima defesa quando a situação de agressão injusta está efetivamente ocorrendo no mundo concreto. Existe, realmente, uma agressão injusta que pode ser repelida pela vítima, atendendo aos limites legais”.[42]
2.2 Legítima defesa putativa (imaginária)
A legítima defesa putativa é aquela que só existe na mente do agente, e ocorre quando alguém pensa estar prestes a ser agredido, a sofrer agressões injustas; ou seja, ela imagina uma suposta iminente agressão a seu bem jurídico que possa causar uma lesão e até mesmo ceifar sua vida. Isso pode ser decorrente de medo ou desespero, ou fruto de ameaças que o indivíduo tenha recebido, contra as quais só pensa em defender-se, sendo ofuscado por esse sentimento e, para tanto, adquira uma arma, ou qualquer outro meio e acabe agindo por erro de tipo ou de proibição imaginando receber uma injusta agressão.[43]
Portanto, se faz necessário entender o que é o erro de tipo e erro de proibição na legítima defesa putativa com base no artigo 20, parágrafo 1°, do Código Penal Brasileiro:
Art. 20. O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.
§ 1° É isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima. Não há isenção de pena quando o erro deriva de culpa e o fato é punível como crime culposo.
Art. 21. O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.
Parágrafo único. Considera-se evitável o erro se o agente atua ou se omite sem a consciência da ilicitude do fato, quando lhe era possível, nas circunstâncias, ter ou atingir essa consciência.[44]
Então, embora equivocado praticando tal ação de defesa, o indivíduo estará amparado pela excludente de ilicitude; dependendo, porém, do grau da defesa, se houve graves lesões à pessoa que se imaginou como agressor.
Importante ressaltar a importância da interpretação dos artigos. A princípio, o primeiro artigo citado trata da legítima defesa putativa considerando as chamadas descriminantes putativas, que são, segundo Rogério Greco:
Descriminar quer dizer transformar o fato em um indiferente penal. Ou seja, para a lei penal, o fato cometido pelo agente não é tido como criminoso, uma vez que o próprio ordenamento jurídico-penal permitiu que o agente atuasse da maneira como agiu.
As causas legais que afastam a ilicitude (ou antijuridicidade) da conduta do agente, fazendo que se torne permitida ou lícita, encontram-se previstas no art. 23 do estatuto repressivo. Quando falamos em putatividade, queremos nos referir àquelas situações imaginárias que só existem na mente do agente. Somente o agente acredita, por erro, que aquela situação existe.
Conjugando as descriminantes previstas no art. 23 do Código Penal com a situação de putatividade, isto é, aquela situação imaginária que só existe na mente do agente, encontramos as chamadas descriminantes putativas. Quando falamos em descriminantes putativas, estamos querendo dizer que o agente atuou supondo encontrar-se numa situação de legítima defesa.
Não há, por exemplo, no caso da legítima defesa putativa, agressão alguma que justifique a repulsa pelo agente. Somente ele acredita que será agredido e, portanto, imaginando encontrar-se numa situação que permitia a sua defesa legítima, ofende a integralidade física do suposto agressor. Na verdade, não havia qualquer agressão que justificasse a repulsa levada a efeito pelo agente.[45]
E na lição de Cezar Roberto Bitencourt:
b) legítima defesa putativa (hipótese de erro – arts. 20, § 1°, e 21 do CP) – ocorre legítima defesa putativa quando alguém se julga, erroneamente, diante de uma agressão injusta, atual ou iminente, encontra-se, portanto, legalmente autorizado a repeli-la. A legitima defesa putativa supõe que o agente atue na sincera e íntima convicção da necessidade de repelir essa agressão imaginária. Essa modalidade de legítima defesa só existe na representação do agente, pois, objetivamente, não existe. Se o autor supõe erroneamente a ocorrência de uma causa de justificação – independentemente de o erro referir-se aos pressupostos objetivos da causa justificante ou à sua antijuridicidade -, a conduta continuará sendo antijurídica. No entanto, se esse erro, nas circunstâncias, era inevitável, exculpará o autor; se era evitável diminuirá a pena, na medida de sua evitabilidade.[46]
Seguem algumas hipóteses de ocorrência da legítima defesa putativa, julgadas pelo Tribunal de Justiça:
LEGÍTIMA DEFESA - Putativa - Ocorrência - Hipótese em que, à noite, policiais dirigiram-se à porta da residência do réu, chamando-o, sem se identificarem - Recorrido que disparou várias vezes para o alto - Excludente reconhecida - Recurso não provido. (Relator: Egydio de Carvalho Recurso em Sentido Estrito n. 139.447-3 - Campinas - 30.05.94);
LEGÍTIMA DEFESA - Putativa - Caracterização - Efetuado um único disparo, com intenção de repelir agressão injusta e iminente - Semelhança entre as vestes da vítima e do agressor - Local de pouca visibilidade - Absolvição mantida - Recurso não provido. (Recurso em Sentido Estrito n. 154.804-3 - Aparecida - Relator: JARBAS MAZZONI - CCRIM 1 - V.U. -10.04.95);
LEGÍTIMA DEFESA - Putativa - Reconhecimento - Réu que após haver desentendido com a vítima viu que esta se aproximou armada, e acreditando que o fosse agredir, sacou de sua arma e realizou disparos - Absolvição mantida. (Relator: Alberto Marino - Recurso em Sentido Estrito n. 133.225-3 Jaboticabal - 02.05.94).[47]
2.3 Legítima defesa sucessiva
A excludente de ilicitude da legítima defesa é uma das mais importantes e antigas a proteger os instintos do ser humano natural, aquele que busca o convívio em sociedade e vive como cidadão em uma coletividade. Haverá legítima defesa sucessiva quando à agressão configurada na legítima defesa real com o elemento subjetivo do animus defendendi, que é a vontade única e importantíssima do agente defender seu bem jurídico tutelado representando pela sua integridade física, a própria vida ou de terceiros, sucede-se uma nova agressão do primeiro agressor, desta vez para defender-se da defesa do inicialmente agredido.
Assim, quando se fala em legítima defesa sucessiva deve-se levar em conta o termo suceder, entendendo-se que um determinado direito que antes era de uma determinada pessoa, passará a ser de outra, ocorrendo, portanto, a sucessão; que, no caso, é um fenômeno que ocorre em instantes.
Rogério Greco diz que tendo o agente alcançado o objetivo da lei, qual seja, fazer cessar a agressão injusta, já não poderá ir além. Ou seja, se o agente que repeliu e cessou a agressão for além do que a lei lhe permite, incorrerá em excesso na defesa legítima.[48]
Com isso, pelo excesso praticado na repulsa, o agredido inicial transforma-se em agressor injusto e o agressor inicial passa, nesse exato momento, a agredido.
Cezar Roberto Bitencourt ensina:
c) legítima defesa sucessiva – haverá legítima defesa sucessiva na hipótese de excesso, que permite a defesa legítima do agressor inicial. Verifica-se quando, por exemplo, o agredido, exercendo a defesa legítima, excede-se na repulsa. Nessa hipótese, o agressor inicial, contra o qual se realiza a legítima defesa, tem o direito de defender-se do excesso, uma vez que o agredido, pelo excesso, transforma-se em agressor injusto.[49]
Da mesma forma, Rogério Greco traz um relevante exemplo afirmando que o agressor inicial que viu ser repelida a sua agressão poderá alegar a excludente de ilicitude a seu favor, porque o agredido passou a ser considerado agressor, em virtude de seu excesso:
A agressão praticada pelo agente, embora inicialmente legítima, transformou-se em agressão injusta quando incidiu no excesso. Nessa hipótese, quando a agressão praticada pelo agente deixa de ser permitida e passa a ser injusta, é que podemos falar em legítima defesa sucessiva, no que diz respeito ao agressor inicial. Aquele que viu repelida a sua agressão, considerada injusta inicialmente, pode agora alegar a excludente a seu favor, porque o agredido passou a ser considerado agressor, em virtude de seu excesso. Exemplificando: André, jogador de futebol profissional, injustamente, agride Pedro. Este último, pretendendo se defender da agressão que estava sendo praticada contra sua pessoa, saca seu revólver e atira em André, fazendo-o cair. Quando André já não esboçava qualquer possibilidade de continuar a agressão injusta por ele iniciada, Pedro aponta a arma para seu joelho e diz: “Agora que já não pode mais me agredir, vou fazer com que você termine sua carreira no futebol.” Nesse instante, quando Pedro ia efetuar o disparo, já atuando em excesso doloso, André saca seu revólver e o mata. André, no exemplo fornecido, agiu em legítima defesa, uma vez que a agressão que seria praticada por Pedro já não mais se encontrava amparada pela excludente da ilicitude prevista no artigo 25 do Código Penal, uma vez que começaria a se exceder, e o excesso, como se percebe, é considerado uma agressão injusta.[50]
Damásio E. de Jesus também preconiza que “Legítima defesa sucessiva é a repulsa contra o excesso. Ex.: A, defendendo-se de agressão injusta praticada por B, comete excesso. Então de defendente passa a agressor injusto, permitindo a defesa legítima de B”.[51]
Para melhor compreensão do que é uma legítima defesa sucessiva e de como se portar diante de situações e determinações existentes no ordenamento jurídico brasileiro para estar dentro dos limites legais, Guilherme de Souza Nucci cita outro exemplo importante de legítima defesa sucessiva:
É situação perfeitamente possível. Trata-se da hipótese em que alguém se defende do excesso de legítima defesa. Assim, se um ladrão é surpreendido furtando, cabe, por parte do proprietário, segurá-lo à força até que a polícia chegue (constrangimento admitido pela legítima defesa), embora não possa propositalmente lesar sua integridade física. Caso isso ocorra, autoriza o ladrão a se defender (é a legítima defesa contra o excesso praticado).[52]
Diverge desse entendimento Fernando Capez, dizendo que o praticante da agressão inicial e causador da situação terá que dominar o excesso praticado contra ele sem poder ao final alegar em seu favor a legítima defesa:
a) legítima defesa sucessiva: é a repulsa contra o excesso. Como já dissemos, quem dá causa aos acontecimentos não poderá arguir legítima defesa em seu favor, razão pela qual deve dominar quem se excede sem feri-lo.[53]
Esse é o foco deste trabalho e será tratado no próximo capítulo; mas é oportuno dizer agora que a hipótese de excesso doloso ou culposo na legítima defesa é perfeitamente punível conforme o artigo 23, parágrafo único do Código Penal[54], com vários doutrinadores corroborando esse enfoque.
2.4 Legítima defesa recíproca
Quando se trata de legítima defesa recíproca, a própria palavra traz o significado da modalidade. Seria uma hipótese de legítima defesa real contra outra legítima defesa real, as duas se configurando ao mesmo tempo, ou seja, um agente se autodefendendo de outro agente que também age acreditando estar em legítima defesa.
Esse tipo de legítima defesa não é admitido no ordenamento jurídico, pois falta o requisito da injusta agressão, já que não há como existir injusta agressão para ambos os agentes ao mesmo tempo, com isso não se pode falar em legítima defesa recíproca.
Neste sentido dá-se o entendimento de E. Magalhães Noronha:
Não existe legítima defesa recíproca. Têm sido apontados exemplos que aparentemente parecem contradizer o que se afirma, mas não procedem. Se, para haver legítima defesa, é mister existir agressão injusta, não se compreende como esta possa ser ao mesmo tempo justa e injusta: ilícita para caracterizar a justificativa do outro.[55]
E Cezar Roberto Bitencourt conceitua sobre o tema:
d) legítima defesa recíproca - é inadmissível legítima defesa contra legítima defesa, ante a impossibilidade de defesa lícita em relação a ambos os contentores, como é o caso típico de duelo. Somente será possível a legítima defesa recíproca quando um dos contentores incorrer em erro, configurando a legítima defesa putativa.[56]
Nessa modalidade de legítima defesa, diante de agressões injustas, de correspondência mútua ou dadas igualmente de ambas as partes, a questão complexa é concluir quem é o detentor da real defesa legítima. Entretanto, ela só será configurada se um dos agentes agredir injustamente o outro, abrindo-se ao ofendido a possibilidade de defender-se legitimamente ou quando uma das partes incorrer em erro, configurando a legítima defesa putativa ou imaginária.
Na mesma linha de pensamento, pondera Rogério Geco:
Pela simples leitura do art. 25 do Código Penal verificamos a total impossibilidade de ocorrer a chamada legítima defesa recíproca (autêntica versus autêntica). Isso porque as duas agressões são injustas, não se cogitando, nessa hipótese, em legítima defesa, pois ambas as condutas são contrárias ao ordenamento jurídico. Somente poderá ser aventada a hipótese de legítima defesa se um dos agentes agredir injustamente o outro, abrindo-se ao ofendido a possibilidade de defender-se legitimamente.
É muito comum depararmos com inquéritos nos quais a autoridade policial indica formalmente dois contendores que se agrediram reciprocamente, pois, durante a fase investigatória, tornou-se impossível descobrir quem, efetivamente, teria dado início às agressões, o que faria com que um deles agisse amparado pela causa de exclusão da ilicitude.[57]
Tendo em vista, a complexidade desta modalidade de legítima defesa ao constatar que houve reciprocidade de injustas agressões, aos detentores de poderes e deveres de investigar e fazer com que de acordo com a lei, alguém pague pelo ato ilícito cometido contra outrem, torna-se obscuro saber quem é detentor do direito amparado pela excludente de ilicitude por não ter, realmente, praticado ato ilícito e ter recebido a injusta agressão. Ou seja, ambas as partes terão que ser acusadas e responder como recíprocos agressores na fase inicial do processo, para que essa dúvida venha em benefício da sociedade ao conseguir apurar, ao final e durante a instrução do processo, quem foi o autor da agressão.
Segundo ensina Rogério Greco:
O promotor de justiça, por sua vez, ao receber os autos de inquérito policial e com base nas provas nele produzidas, por não saber apontar o autor inicial das agressões, oferece denúncia em face dos dois. A denúncia dirigida em face de ambos os contendores é tecnicamente perfeita, porque no início da ação penal a dúvida deve pender em benefício da sociedade (in dubio pro societate), a fim de que se permita, durante a instrução do feito e sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, tentar apurar o autor das agressões injustas.[58]
Contudo, se ao fim da instrução do processo para elucidação do fato que venha a caracterizar a legítima defesa verdadeira não seja possível determinar quem iniciou uma agressão injusta atual ou iminente; ou se a investigação para descobrir quem foi agressor e quem foi o agredido concretiza-se infrutífera, deverá o juiz valer-se do princípio in dúbio pro reo, absolvendo os dois agentes.
Nos dizeres de E. Magalhães Noronha:
É exato que na prática, tratando-se de lesões recíprocas, e não podendo o juiz estabelecer a prioridade da agressão, absolve os dois por legítima defesa. Trata-se de mero recurso, para não se condenar um dos protagonistas que é inocente. Isso, entretanto, não destrói a impossibilidade da legítima defesa recíproca.[59]
E também Rogério Greco: “Se ao final da instrução processual não restar evidenciado quem teria dado início às agressões, devem os dois agentes ser absolvidos, haja vista que, nessa fase processual deverá prevalecer o princípio do in dubio pro reo”; entendimento que ele ilustrou com a seguinte ementa. [60]
No caso em tela, havendo dúvida sobre quem teria começado as agressões físicas ou agido em legítima defesa, a absolvição se impõe, até porque a perícia apontou a ocorrência de lesões recíprocas. (TJ-RJ, AC 0010977-86.2010.8.19.0037, REL.ª DES.ª Mônica Tolledo de Oliveira, julg. 12/05/2015.
Lesão corporal de natureza grave. Absolvição. Recurso da acusação objetivando a reforma da sentença. Agressões físicas e lesões recíprocas entre vizinhos, após discussões sobre a destruição de plantas cultivadas na beirada do muro. Materialidade comprovadas. Inexistência, no entanto, de prova segura sobre o (s) responsável (eis) pelo início da contenda que se generalizou entre os familiares dos envolvidos (réus e vítimas). Insuficiência de provas para a condenação dos acusados. Exegese do art. 386, inciso VII, do Código de Processo Penal. Sentença absolutória mantida. (TJ-SC, AC nº 2011.038531-1, Rel. Des. Newton Varella Júnior, julg. 30/4/2013.[61]
Segundo o mesmo autor, a referida ementa representa a posição majoritária da doutrina e dos tribunais.
2.5 Legítima defesa da honra
A expressão honra é inerente ao ser humano desde os tempos mais antigos, quando ter vida desregrada, liberdade sexual e independência financeira proporcionava aos indivíduos do sexo masculino confiabilidade e boa fama perante os demais; e para as mulheres era o oposto, pois elas deviam manter-se recatadas e submissas, com o dever de castidade e fidelidade à família quando solteiras e ao esposo quando casadas. E aqueles que não seguiam tal padrão eram mal vistos e criticados no meio em que viviam.
Em uma breve consideração sobre o termo atualmente, pode-se dizer que a honra é parte integrante da conduta pessoal e social dos indivíduos, integrando um conjunto com a dignidade, a honestidade e com valores sociais em geral, representada pela conhecida dupla “moral e os bons costumes”, ou seja, possui fundamentos éticos.
Conforme Fernando de Almeida Pedroso, a honra é o preito que o ser humano presta às suas virtudes ou a consideração que a elas outorga a sociedade, considerada honra subjetiva, que é da própria pessoa, seus sentimentos internos, suas vontades; sendo a honra objetiva representada pela estima própria, ou seja, a dignidade ou o apreço social do homem, também conhecida como prestígio, fama ou bom nome, pois é preocupação do homem não apenas manter sua vida física, mas também a sua moral.
Se em um lado do corpo existe uma parte biológica e social, o lado da imagem física, em outro reside a personalidade; sendo necessário que se mantenha um corpo saudável e uma aparência física agradável ao lado de uma personalidade baseada nos valores sociais aceitos e exigidos pela sociedade para que o indivíduo seja aceito e se mantenha dentro dos padrões criados pela própria sociedade.
E como a fama do indivíduo, seja ela boa ou ruim, irá influenciar nas suas relações, a legítima defesa da honra merece maiores atenções, visto que nela se encontram particularidades, minúcias e até ciladas porque dependendo do caso, pode ser objeto da legítima defesa, dado que, segundo o estabelecido no Código Penal Brasileiro no capítulo V, nos artigos 138, 139 e 140, a honra moral é um direito subjetivo do ser humano. [62]
Nesse sentido, porém, explica Fernando de Almeida Pedroso que a honra moral não permite a legítima defesa:
A expressão honra, contudo, apresenta diversas facetas ou ideias dentro do conceito supra expendido. Assim, pode-se falar em honra moral, tutelada penalmente através da descrição típica dos delitos de calúnia, difamação e injúria; em honra sexual, emergindo indiretamente sua proteção pela definição dos crimes contra os costumes; e até em honra conjugal.
Sob as diversas significações da palavra honra há de ser encarada a legítima defesa.
A honra, atacada verbalmente por agressão constitutiva dos crimes de calúnia, difamação ou injúria, não permite a legítima defesa. Não porque o bem jurídico seja desmerecedor de proteção, mas dada a própria natureza do ataque que se lhe dirige.
Para justificar a assertiva, há mister proceda-se a um estudo comparativo entre a legítima defesa e a tentativa.
Os crimes contra a chamada honra moral, quando perpetrados verbalmente, não admitem a tentativa. É praticamente unânime e uníssona a asserção dos penalistas nesse sentir. E o conatus, em hipótese tal, torna-se incompossível porque a palavra oral truncada ao meio nada significa ou, conforme o caso, já é apta para consumar o delito, revestindo-se, então, de idoneidade para ofender a incolumidade moral do agredido. Desta sorte, os crimes contra a honra, executados verbalmente, são delitos unissubsistentes, cujo summatum opus vem à realização em um único ato: são infrações penais que único actu perficiuntur. Não há cisão ou fracionamento em atos do processo executivo, de molde a possibilitar-se a tentativa.[63]
De acordo com Pedroso, para os chamados crimes de honra moral regulados pelo Código Penal Brasileiro não é permitido o amparo da legítima defesa, trazendo a posição de que como tais crimes são unissubsistentes, ou seja, são crimes que não precisam de fracionamento da conduta na fase do delito, ou no chamado iter criminis, sendo consumados em apenas um ato, diferentemente dos plurissubsistentes, que são crimes que necessitam de vários atos para se consumar.
Porém, o mesmo autor traz em sua obra casos em que haverá ocorrência de legítima defesa de honra, como exemplo em situações de ataques verbais feitos de forma reiterada ou continuada sendo possível a excludente de ilicitude, explicando que haverá relação entre as ofensas pertinentes com as que se fizerem continuamente presentes, havendo de reconhecer a iminência da agressão.
Reiterando-se que será possível a legítima defesa frente à injúria real, tendo em vista que esse tipo de delito porta feição plurissubsistente, ou seja, que a conduta se fraciona com o tempo dos atos praticados. Um exemplo trazido em seu livro é o do indivíduo que atinge com um soco outrem que já levantara o braço para esbofetear-lhe o rosto; ou aquele que conjurasse que outrem lhe atirasse recipiente contendo urina ou estrume.[64]
É subsequente a associação da legítima defesa da honra com honra conjugal e crimes passionais, havendo forte ligação do crime passional com a imagem masculina, embora seja certo que mulheres também praticam essa espécie de crimes.
Define-se crime passional como aquele cometido sob forte emoção, sob impulso, motivado pela paixão; e acreditava-se que o indivíduo que agia nestas condições não tinha controle de seus atos por estar acometido de uma loucura momentânea.
A legítima defesa da honra não está elencada no rol das excludentes de ilicitude do artigo 25 do Código Penal, nem nunca teve previsão legal; embora esse argumento de legítima defesa da honra tenha sido demasiadamente usado por juristas no passado para defesa nos crimes passionais, visando obviamente uma absolvição nos casos em que “marido fiel mata com crueldade a esposa adúltera”, atitude amparada desde a antiguidade.
O Código Penal que entrou em vigor em 1942 era produto de seu tempo e criminalizava o adultério no artigo 240, que foi expressamente revogado somente em 2005; mas diante do grande número de casos e decisões favoráveis a réus que matavam em nome do amor e da paixão, houve por bem desconstituir o argumento da legítima defesa da honra como excludente ao tipificar a conduta como homicídio privilegiado no Artigo 121, § 1°, que não excluiu a ilicitude, porém diminuiu a pena do crime.
Assim, a alegação de legítima defesa da honra para justificar os casos de homicídios passionais não é mais aceita, percebendo-se, com a evolução, que antes da honra vem a vida humana, em primeiro lugar, e que nada poderá se sobrepor a ela.
De acordo com Guilherme de Souza Nucci:
O que certamente não se deve tolerar jamais é a prática do homicídio contra o cônjuge adúltero como forma de “reparar” a honra ofendida, pois há evidente desproporcionalidade entre a injusta agressão e a reação. Encontra-se importante passagem em acordão citado por Marcello Jardim Linhares, apregoando ser inadmissível que se “possa ‘lavar’ a alvura da honra masculina, tingindo-a no sangue de uma vida, que nem por mal vivida é vida que nos pertença. Não se pode tolerar que o homicídio por adúltero passe a ser, contra a tradição civilizadora do país, ‘contra toda a doçura de nossos foros jurídicos’, o único delito punido com pena de morte. E morte infligida não pelo Estado, através das garantias e consectários do processo judicial, mas morte imposta pelo ofendido, sem forma e figura de juízo, num pretório de paixão, em que falam, apenas, as vozes cegas da cólera e da vingança” (Legítima defesa, p. 222-223).[65]
Todavia, se o cônjuge fiel não se utilizar de repulsas excessivas poderá estar amparado pela excludente, como diz ser possível o mesmo autor:
Por outro lado, é preciso verificar que a sociedade atual não coloca a questão da forma como, idealmente, deveria fazer. Vê-se o cônjuge inocente e enganado como o emasculado, o frouxo, aquele que teve a sua reputação manchada, mormente, se nada faz no exato momento em que constata o flagrante adultério. Admissível, pois, em nosso entender, que possa agir para preservar os laços familiares ou mesmo a sua honra objetiva, usando, entretanto, violência moderada. Exemplo: pode expulsar o amante da esposa de casa, mesmo que para isso deva empregar força física. Não deve responder por lesões corporais.[66]
Por fim, para que sejam configuradas as modalidades da legítima defesa é sempre necessário que a repulsa, ou seja, o ato praticado pelo agredido para se defender, o seja de maneira moderada ou proporcional às situações, pois sem conduta defensiva excessiva o agente será amparado pela exclusão do crime praticado; e que o meio utilizado seja apenas o necessário para concluir a repulsa ou revide de uma agressão injusta atual ou iminente.
2.6 Legítima defesa e aberratio ictus (erro na execução)
Entende-se por aberratio ictus, ou aberração no ataque como traduzido por Rogério Greco, o erro na execução; ocorrendo quando uma conduta atinge um alvo diferente do pretendido; no caso em análise, uma pessoa diferente daquela que se queria, até o momento, atingir com os atos defensórios; configurando o erro na execução da defesa pretendida.
É o caso de uma legítima defesa com o elemento subjetivo do animus defendendi na qual, no decorrer da repulsa, existem terceiros inocentes nas proximidades que, no calor da situação, vêm a ser feridos ou até mortos.
Essa é uma hipótese possível de ocorrer que é regulada pelo artigo 73 do Código Penal brasileiro, in verbis:
Art. 73. Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela, atendendo-se ao disposto no § 3° do art. 20 deste Código. No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender, aplica-se a regra do art. 70 deste Código.[67]
Sobre o que está descrito no Código, ensina Fernando Capez:
“Aberratio ictus” na reação defensiva: é a ocorrência de erro na execução dos atos necessários de defesa. Exemplo: para defender-se da agressão de “A”, “B” desfere tiros em direção ao agressor, mas, por erro, atinge “C”, terceiro inocente. Pode suceder que o tiro atinja o agressor “A”, e por erro o terceiro inocente “C”. Nas duas hipóteses, a legítima defesa não se desnatura, pois a teor do art. 73 do Código Penal, “B” responderá pelo fato como se tivesse atingido o agressor “A”, ou seja, a pessoa visada e não a efetivamente atingida.[68]
Rogério Greco também se manifesta sobre o assunto nos seguintes termos:
Pode ocorrer que determinado agente, almejando repelir agressão injusta, agindo com animus defendendi, acabe ferindo outra pessoa que não o seu agressor, ou mesmo a ambos (agressor e terceira pessoa). Nesse caso, embora tenha sido ferida ou mesmo morta outra pessoa que não o seu agressor, o resultado advindo da aberração no ataque (aberratio ictus) estará também amparado pela causa de justificação da legítima defesa, não podendo, outrossim, por ele responder criminalmente.[69]
Diante de um erro cometido na execução, o agente que estava agindo em sua defesa pessoal com animus defendendi estará amparado pela legítima defesa e não responderá criminalmente, haja vista, que o agente agredido estará agindo como se estivesse atingindo seu real objetivo, que era repelir a agressão injusta do agressor.
À luz do artigo 65 do Código de Processo Penal se estabelece que a inexistência da responsabilidade civil acompanha a excludente, pois “Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de um direito.”[70]
Porém, ressalta-se que em relação ao terceiro inocente permanecerá a responsabilidade civil, conforme preleciona Francisco de Assis Toledo:
Não se aplica, pois, ao terceiro inocente a norma do art. 65 do Código de Processo Penal, já que, quanto a ele, a lesão, apesar da absolvição do agente, não pode ser considerada um ilícito civil. Trata-se, portanto, de uma hipótese em que há exclusão da responsabilidade civil, restrita é claro ao terceiro inocente.[71]
Cabe também uma pequena análise do erro de proibição a título de excludente, podendo-se conceituá-lo como o erro do agente que recai sobre a ilicitude do fato e ocorre quando o agente pensa que é lícito aquilo que, na verdade, é ilícito. Geralmente aquele que atua em erro de proibição ignora a lei e há o desconhecimento da ilicitude da conduta.
Nesse caso não se exige do agente o conhecimento técnico da ilicitude, basta que a ciência da proibição esteja na esfera do desconhecimento das regras, sendo o juízo comum na comunidade e no meio social em que vive.
Então, para que o erro de proibição exclua por completo a culpabilidade do agente, não é suficiente apenas a alegação de desconhecimento da lei, até porque este é inescusável, ou seja, indesculpável. É preciso verificar se o erro é evitável ou inevitável. O agente só responderá se tinha, ou pelo menos poderia ter, a consciência da ilicitude do fato.
Se o erro for evitável, ou seja, se o agente podia ter consciência da ilicitude do fato, ele responderá pelo crime com diminuição da pena. Porém, se o erro era inevitável, escusável ou invencível, ou seja, não havia como ter consciência da ilicitude do fato, a culpabilidade estará excluída.