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Primeiras observações sobre as medidas anticrime propostas pelo Ministério da Justiça

09/04/2019 às 18:25
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Desde o princípio, já é possível perceber que a proposta apresentada acaba por não inovar no que vem sendo o sentido geral aplicado à legislação penal, desde a colonização do Brasil.

Cercadas de ampla publicidade, no dia 04 de fevereiro de 2018, foram apresentas, pelo Ministério da Justiça, propostas de alteração na legislação penal e processual penal, que teriam como justificativa a concessão de maior efetividade ao sistema, objetivando o combate à criminalidade.

Com efeito, um dos temas centrais do debate eleitoral do ano 2017 foi a questão da criminalidade, sendo a apresentação pelo Ministério da Justiça, já ao início do atual mandato presidencial, de proposta de debate sobre a temática, absolutamente conexa com a pauta eleitoral apresentada à população.

A despeito desse aspecto, as propostas apresentadas devem ser analisadas com racionalidade e cautela, na medida em que dizem respeito à habilitação do poder punitivo, o que, em outra face, significa dizer que produzem redução das liberdades, temática que deve ser sempre tratada com muita responsabilidade nos Estados Republicanos e Democráticos.

Ainda que sem esgotar o tema, neste primeiro estudo, já é possível perceber que a proposta apresentada acaba por não inovar no que vem sendo o sentido geral aplicado à legislação penal deste a colonização do Brasil, ou seja, a forte aposta de que o mecanismo punitivo será eficaz para frear os conflitos na sociedade brasileira e pacificar o país.

Seria possível discorrer longamente sobre o fracasso, em qualquer parte do mundo, da aposta exclusiva nos mecanismos punitivos, porém, neste momento, como primeira incursão sobre as medidas apresentadas pelo Ministério da Justiça, importa destacar alguma delas e observar, sob enfoque empírico-racional, se está cada uma é apta a contribuir na melhora do nível de vida da população brasileira, pela redução da ocorrência delitiva.

Dando início à análise, a proposta anticrime do governo federal acrescenta no artigo 617 do Código de Processo Penal uma alínea a com a seguinte redação: “A. Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos”, bem como, altera o artigo 283 CPP para que seja admissível o cumprimento da pena desde a decisão por órgão colegiado.

 Claramente, a proposta tenta, nesse ponto, superar o profundo debate que se estabeleceu no meio jurídico, após a alteração pelo Supremo Tribunal Federal, de sua anterior orientação sobre o sentido do princípio do estado de inocência, inovando, ao ir além da própria discussão atualmente existente em torno da pena privativa de liberdade, já habilitando as demais possibilidades punitivas.

A despeito da argumentação no sentido de que o Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente afirmado a constitucionalidade da execução provisória da pena privativa de liberdade, esta linha de raciocínio mascara a profundidade do debate existente sobre o tema, de um lado, sabidamente com profunda divergência no âmbito do próprio Pretório Excelso e, por outro, com debate incansável da matéria no meio acadêmico, com contínuas, expressivas e abalizadas opiniões  apontando como não adequada a atual interpretação majoritária da Corte, combatendo-a com argumentos respeitáveis.

A verdade é que a própria alteração do entendimento da Corte, de que seria inconstitucional a execução provisória da pena, para a recente admissão, é absolutamente polêmica, pois não decorreu do surgimento de nenhuma nova pulsão na sociedade em torno da temática, de qualquer avanço no pensamento sobre o tema ou de uma releitura expressiva dos dispositivos constitucionais nos debates e escritos acadêmicos, mas de mera alteração de composição do Tribunal, o que, por si só não representa elemento suficiente a revisitar a interpretação constitucional realizada pelo Tribunal máximo, sob pena de comprometimento da segurança jurídica.

Nesse sentido, é visível que após a revisão de entendimento pela Corte Constitucional em torno do aprisionamento já com a decisão de segundo grau, ainda não transitada em julgado, não ocorreu qualquer ganho de credibilidade do sistema jurídico brasileiro, mas, contrariamente, insegurança sobre as instituições jurídicas.

Sobre o tema, é de se ter em conta que Tribunais Superiores no Brasil exercem funções próprias a não permitir sua comparação linear com o modelo de outros países, isso porque, a não imperatividade das interpretações realizadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça, faz com que sejam frequentes as decisões de primeiro e segundo grau confrontantes com as já havidas em âmbitos superiores de jurisdição, não sendo incomum haver divergência até mesmo entre proclamações da Corte Máxima e decisórios do Superior Tribunal de Justiça, o que, por certo, torna as punições penais antecipadas medidas irracionais e tendentes ao aumento da insegurança jurídica e do sistema não dotado de uniformidade, ampliando a seletividade e diminuindo a impessoalidade da imposição penal.

A propósito, a regra do proposto §1º do artigo 617-A deixa bastante evidente que com base em critérios opinativos de ordem subjetiva, pode ser suspensa a execução provisória da pena em alguns casos, o que em relação ao impulsionamento das, acima referidas, seletividade do sistema penal e geração de confronto com a impessoalidade, se constitui em expediente notável apresentado pelo projeto em análise.

Ingressando no debate constitucional e na clareza evidente do artigo 5º, inciso LVII do texto Maior, a atual problemática da interpretação majoritária da Corte Constitucional não se desfaz, ao contrário fica ainda mais contundente.

O projeto, no ponto em análise, ainda traz a desagradável constatação de que, como uma reforma no Código de Processo Penal é necessária para executar a pena , ainda não transitada em julgado, desde a condenação em segundo grau é porque esta é atualmente vedada e vem ocorrendo de forma inaplicável no Brasil, submetendo pessoas acusadas dos mais diferentes delitos, a uma punição à margem do sistema normativo existente, o que o artigo 283 do Código de Processo Penal deixa bastante evidente, colocando o Brasil em alinhamento com o modelo autoritário de Estado.

Ademais, não pode deixar de referir, ainda que rapidamente, que o debate em torno da antecipação punitiva somente poderia iniciar, antes fossem exequível automaticamente, a partir da decisão de segundo grau, independente de caução, as decisões proferidas nos processos não criminais, ou seja, cíveis, trabalhistas, tributários etc., pois, do contrário, há insuperável contradição do sistema que admite a imposição das medidas mais gravosas e irreversíveis ainda pairando dúvida e, com relação às medidas menos gravosas e reversíveis, exige certeza jurídica.

Indo além, na questão da antecipação punitiva, o projeto do Ministério da Justiça traz à baila a questão da punição imediata caso haja condenação pelo Tribunal do Júri.

Não se desconhece que os julgamentos pelo Tribunal do Júri tem particularidades, estando estruturados, nos diferentes países do mundo que o adotam,  dentro de microssistemas próprios, gozando as decisões dos jurados de dignidade ímpar, porém, em um sentido muito mais profundo que o ofertado pela proposta em análise que, mais do que ofertar dignidade à decisão dos jurados, manifesta aparente desejo de simplesmente aumentar os mecanismos punitivos, redutores da liberdades e contribuir a um processo de prisionalização em larga escala.

A dignidade das decisões do júri principia pela inatacabilidade do mérito de suas decisões absolutórias, assunto sobre qual, a bem da verdade, a Jurisprudência e mesmo a atividade legislativa brasileira, esquivam-se de tratar, sendo, portanto, desarrazoada a proposta de respeito às decisões dos jurados para punir e desrespeito para bloquear o poder punitivo. O que se tem não é nenhum prestígio da instituição do júri, mas simples e direta medida redutora de direitos, em prol do agigantamento do poder estatal.

Além disso,  a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, no artigo 8º item 2, letra h, ao tratar das garantias judiciais, deixa patente ser garantia decorrente da própria condição humana, a de recorrer ao menos uma vez, ou seja, a execução de uma pena, já a partir da decisão de primeiro grau, constitui-se em verdadeiro ataque a aspecto essencial da pauta mínima dos direitos humanos, pois implica vedar por via indireta a possibilidade recursal, na medida em que retira qualquer eficácia real de eventual recurso da pessoa condenada.

Não se cogite que o cumprimento da pena a partir do primeiro grau não estaria em confronto com a Convenção Americana de Direitos Humanos por não impedir que o réu, se o desejar, recorra, pois seria mera ficção, pois um recurso do réu que desde logo inicia o cumprimento da pena é um “não recurso”, uma vez que mesmo sendo provido seus efeitos são nulos, pois o tempo de pena cumprido é irreparável, não havendo como resgatar o tempo de vida indevidamente subtraído, o sofrimento havido, os danos colaterais para familiares, eventual perda de emprego, de patrimônio pela paralisação da atividade produtiva que garantia sua manutenção, entre outras tantas consequências.

Ao referir à Convenção Americana de Direitos Humanos, também há que se afastar com bastante veemência a argumentação de que os direitos humanos são uma tutela de bandidos contra as pessoas de bem.

Essa argumentação de contornos segregacionistas e autoritários esbarra no conhecimento básico sobre o tema, pois os direitos humanos não são e nunca foram pensados e desenvolvidos, senão para proteger todos os seres humanos contra os abusos passíveis de serem praticados pela utilização do poderio punitivo descontrolado. Não por outra razão, seu momento de maior florescimento é o posterior ao Estado Nazista, quando a imagem dos massacres produzidas ainda estava viva na memória das pessoas. Natural que com o apagar dessa memória, ideias tendentes a novos massacres possam gozar de simpatia popular e, justamente para conte-las e proteger a espécie humana de sua própria irracionalidade, é que existem os direitos humanos.

No projeto anticrime do Ministério da Justiça, é de se destacar a presença de regras estabelecendo a não progressão de regime ou fixando, independente da pena estabelecida, o cumprimento inicial da condenação em regime fechado.

Nesse ponto, não pode passar desapercebida a orientação da proposta legislativa originária no Ministério da Justiça, aparentemente apegada à insistente tentativa de resolver os conflitos sociais com agravamento de punições e implemento de prisionalização crescente, repetindo o que se tem feito, sem qualquer eficácia, desde criação do Brasil, não manifestando qualquer preocupação com o desenvolvimento de ações não penais de pacificação social e melhoras das possibilidades de não adesão das novas gerações ao crime, em especial nas regiões mais abandonadas e já onde grupos criminosos, como milícias e facções são influentes.

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Dessa forma, não se pode dizer que o projeto seja propriamente contra o crime, no sentido de tentar fazer a sociedade experimentar redução na sua ocorrência, mas, simplesmente, implementador de maior nível de possibilidades interventivas após os delitos ocorridos, o que, repita-se, não é nada de novo, pois afora isolados experimentos, como a lei nº 9.099/95 e a Lei n° 9.714/98, a propósito, alguns dos conteúdos dotados de maior credibilidade no sistema penal brasileiro, nada diferente disso se fez ao longo da história penal brasileira.

Além disso, chama a atenção que tanto a determinação legislativa de não progressividade da pena para determinadas hipóteses, quanto o necessário início de cumprimento da pena em regime fechado, já foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

Particular que se argumente que o cumprimento da pena já a partir de segundo grau nada mais é que consolidar algo já declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal e, ao mesmo tempo, ignorar hipóteses já declaradas inconstitucionais, tentando impor elas e, na roupagem de necessárias para enfrentamento do crime, constranger a corte à mudança de posicionamento sem qualquer motivo abalizador para fazê-lo, até porque, na temática em comento, há entendimento francamente majoritário, da comunidade científica, de que o Pretório Excelso decidiu corretamente ao declarar as referidas inconstitucionalidades.

A proposta do Ministério da Justiça também inova em relação à legitima defesa, prevendo, além de delicadas situações de exclusão do excesso, como a emoção, a criação de duas hipóteses em que ele seria presumida, pela inserção de parágrafo único ao artigo 25: “o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes." 

É evidente que, travestido de legítima defesa, está sendo criada a licença para matar, a partir de um alargamento excessivo dos conceitos dogmáticos inerentes ao instituto da legítima defesa.

Desde a sua concepção originária, a legítima defesa sempre foi inserida no campo das exceções, em especial quando se trata de agentes das forças de segurança pública, justamente por representar aceitação de abandono à solução racional dos conflitos, com a admissão de que ele seja resolvido por meio violento.

Ocorre que a hipótese de qualquer pessoa, mesmo do agente policial ou de segurança, quando em risco real já se encontra sem a menor dúvida contemplada pela avaliação conjugada dos requisitos do artigo 25 do Código Penal.

 É evidente que o afastamento do excesso com base em critérios como a emoção, assim como a regra do parágrafo único proposto, apesar da cautela de impor a necessidade de observância aos requisitos do caput, ampliam os limites hermenêuticos, presumindo quadros de agressão injusta, bem como de sua atualidade ou iminência e mesmo de moderação e necessidade nos usos do meio defensivo, permitindo que simples arguições genéricas, de difícil discussão probatória, como risco à vítima, emoção ou risco iminente de conflito armado, sejam suficientes a habilitar assassinatos, o que é particularmente preocupante quando se fala das forças de segurança.

Basta, por exemplo, imaginar a facilidade para a promoção de mortes em massa, com acobertamento de uma legítima defesa, com a arguição de risco de conflito armado, cuja prova, no mais das vezes, somente pode ser feita pela palavra dos partícipes e, como o morto não fala, haverá total estabelecimento da afirmação da palavra do matador e de seus colaboradores, o que, em análise prospectiva, bem indica a forte tendência que passem as forças de segurança pública, via de regra, a matar como primeira medida, vez, que independente de qualquer outra questão, a posterior afirmação de que havia risco de conflito armado, já abre amplo caminho para o acolhimento da legítima defesa. 

Na avaliação dessa questão alguns aspectos são muito importantes, primeiro não se pode desconhecer que as forças policias brasileiras já são das que mais matam no mundo e também que os locais em que mais violência a elas foi habilitada, mais problemáticos se tornaram, como, por exemplo, os locais controlados por milícias.

A avaliação de temas dessa natureza deixa bastante patente que o estímulo à flexibilização da legítima defesa é fator estimulante dos conflitos e da violência, sem aptidão para reduzir a agressividade no meio social, desviando totalmente o projeto de sua afirmação retórica de que deseja se contrapor ao crime.

Há proposta, ainda, de instituir a barganha no processo penal. A despeito de respeitáveis e abalizadas opiniões em sentido oposto, não parece ser o mecanismo da negociação entre acusação e acusado, visando por fim ao processo, a partir do reconhecimento de culpa, por si só negativo, porém, é evidente que algumas características brasileiras devem ser consideradas, não podendo simplesmente importar modelo de outro sistema de forma linear.

A propósito, o primeiro ponto é que, ao longo da história jurídica recente, sem qualquer demérito à esta respeitável instituição, o Ministério Público foi, no Brasil, assumindo poderes excepcionais, com possibilidade de controle da investigação, ajuizamento da ação penal, manifestação como fiscal da lei, enfim, um poderia ímpar dentro de uma das instituições mais bem aparelhadas e remuneradas do país.

A questão é que cogitar de negociação, tendo de um lado este poderio, e de outro, a defesa do acusado que, no Brasil, sequer capacidade investigativa mínima deferida pela lei possui, é algo que significa, para a pessoa que não tem condições de debater em paridade de armas, as consequências de eventual admissão de culpa e o estabelecimento da punição antecipada sem processo. Afinal, não há como se negociar quando há um desequilíbrio de forças tão manifesto, ainda que sob aparente roupagem de normalidade jurídica, o que há nestes casos é submissão de alguém a outro que tem poder para oprimi-lo.

Assim, caso queira se tratar com o necessário comprometimento técnico, dentro de um regime democrático, da barganha, antes há de se estabelecer com clareza possibilidades investigativas à defesa, habilitando aos profissionais da advocacia meios de colheita de prova, como tomada de depoimentos, acesso à documentos entre outros, para fazer frente ao poderio da acusação em eventual negociação.

Além disso, o que se tem, é o que o ninguém desconhece que ocorreu, por exemplo, com as colaborações premiadas no Brasil, imposição de sua vontade e de seu posicionamento pelo mais forte a outro que, sem garantia de possibilidades reais de contrapor, só resta ceder, concorde ou não, seja os fatos verdadeiros ou não.

Alguns institutos, como o da barganha, não se compatibilizam sem alteração profunda do sistema, o que, no caso brasileiro, significa que realmente deve, de forma prévia, ser criado um sistema efetivamente acusatório, com possibilidades investigativas para a defesa, em igualdade de armas com a acusação e estabelecimento do juiz de garantias.

 Afora isso, seja ou não o instituto bom e eficaz em outros lugares, sua corrupção no Brasil será inevitável, tornando-se apenas mais um expediente em prol de um punitivismo cego e da ampliação da seletividade, com punições mais rigorosas aos incômodos ao sistema e com baixo rigor ou até perdão aos amigos dele.

Igualmente, há evidente pecadilho na criação do chamado “informante do bem” que poderá, caso sua identidade seja revelada, ser considerada prova suficiente para condenação de uma pessoa e poderá ser utilizado como prova, mesmo que sua identidade não seja revelada.

Isso fica muito evidente da alteração proposta na Lei nº 13.608/2018, em especial §2ºdo proposto artigo 4º-B que expressamente estabelece que “ninguém poderá ser condenado apenas com base no depoimento prestado pelo informante, quando mantido em sigilo a sua identidade.”

Em outras palavras, diferente do que tem sido divulgado pelos meios de comunicação de massa, não é que não se pode condenar somente com base nas palavras do informante, pois a leitura a contrario sensu do dispositivo deixa evidente a liberação para o magistrado condenar com base na simples palavra do informante, desde que não mantido sigilo de sua identidade, o que, com certeza é de temeridade total, pois aceita que a simples palavra de uma única pessoa, que passa a ter interesse econômico na condenação do acusado, possa motivar a sua condenação.

E, mesmo a regra que estabelece que, caso sua identidade seja mantida em sigilo, a condenação não pode se dar com base somente em suas palavras, representa confronto direto com o contraditório e a ampla defesa, pois sem a possibilidade de saber quem depõe contra determinada pessoa, não há concreta possibilidade de contraposição ao depoimento e exercício de defesa efetiva.

O viés punitivista é bastante evidente, tanto que o sigilo da identidade do depoente somente é, pelo projeto em comento, deferido às testemunhas que objetivem formar prova da culpa do autor, não se admitindo para depoentes que comprovem sua inocência, por certo, solução que acaba também por agredir a necessidade de paridade de armas entre as partes no processo.

Algumas considerações não podem deixar de ser realizadas sobre a insistente tentativa de gerar a imprescritibilidade dos crimes no Brasil, ainda que isso seja realizado de forma disfarçada pela criação contínua de causas suspensivas e interruptivas do prazo prescricional.

Nas nações desenvolvidas a prescrição tem a importante função de impedir que o Estado perenize a persecução penal, fazendo que o processamento de alguém, independe do resultado condenatório ou absolutório, se converta em punição permanente, na medida em que o processo é um meio gerador de restrições, limitações à pessoa e sofrimento emocional.

Para que se entenda, basta imaginar uma pessoa processada criminalmente, por fato que não praticou. A prescrição impõe ao Estado a obrigação de, em prazo razoável, comprovar a culpa da pessoa ou resgatar a sua situação anterior, ou seja, de plena inocência e sem qualquer constrangimento aos seus direitos, o que, por outro lado se vê de todo prejudicado quando há excessivas hipóteses de interrupção ou suspensão da prescrição, conduzindo o processo a um regime de verdadeira imprescritibilidade, por poder perdurar tempo excessivo.

Evidente que o sentido da prescrição é o de impulsionamento, tanto da acusação, quanto do judiciário ao não acomodamento, sob pena de todo o trabalho realizado ser perdido.

No caso brasileiro, os prazos prescricionais são bastante elásticos e a presença de causas suspensivas e interruptivas da prescrição, em número bastante elevado, confere à prescrição nuances muito próprios, por possibilitar processamentos criminais por prazos elevados, em alguns casos, nos prazos de maior prescrição, por quase toda a vida de uma pessoa, não sendo em nada recomendável o aumento destes prazos já excessivos, sob pena de tornar os processos criminais submetidos à uma perenização.

O projeto do governo federal tenta estabelecer suspensão da prescrição quando interpostos recursos perante as instâncias superiores.

Não se desconhece que há argumentação de que os recursos especiais e extraordinários, por vezes, tardam muito e a prescrição se dá justamente durante o trâmite deles.

A avaliação de que o problema estaria resolvido com a criação de hipóteses suspensivas da prescrição é, porém, de certa bizarrice, pois a responsabilidade pela prestação jurisdicional em adequado prazo não é do cidadão, mesmo que processado criminalmente, sendo que o projeto lhe atribui esta responsabilidade ao submetê-lo a possibilidade de processamento por toda vida, pelo aumento de um já dilatado prazo prescricional, quando a solução deveria ser em sentido absolutamente distinto.

Seria muito importante que o Ministério da Justiça realmente inovasse e debatesse o excesso de litigiosidade do poder público, sabidamente a maior causa de obstrução nos Tribunais Superiores, tratando com profundida da necessidade de que o poder público atribua caráter normativo às decisões já emanadas por estes Tribunais, ainda que em ações com efeitos inter partes. Poderia inovar estimulando a conciliação nos âmbitos Tributário e Previdenciário, com a finalidade de aliviar a carga excessiva de demandas judiciais desta natureza. Seria muito positivo propusesse mecanismos de fortalecimento do valor do precedente, tornando teses jurídicas já acatadas em instâncias superiores de aplicação linear nos diferentes graus jurisdicionais, desestimulando as ações meramente protelatórias, entre outras medidas possíveis.

Apesar das várias possibilidades de discussão sobre o sistema de justiça brasileiro, com abordagem dos reais motivos da demora excessiva no término dos processos, com enfrentamento deles, a opção foi a de sempre, deixar os problemas como estão e simplesmente tornar mais difícil a situação dos cidadãos comuns, fragilizando-os ainda mais, em face ao poderio estatal.

Também chama a atenção a aparente tentativa de, além de aumentar as capacidades acusatórias no processo, dificultar o trabalho de defesa pela criação de regras limitando prerrogativas profissionais dos advogados, como a necessidade de prévio peticionamento para requerer atendimento com pessoa presa, peticionamento que deve ser deferido, estabelecendo horário certo para o atendimento, o que seguramente pode se constituir em problema prático insuperável quando da necessidade de atendimentos de emergência ou atendimentos prolongados em véspera de audiências ou julgamentos, por exemplo, considerando ainda que na medida em que não há mais o direito ao automático diálogo entre advogado e cliente, em tese pode haver indeferimento, alegando ausência de espaço físico para tal, muitos requerimentos anteriores já agendados ou até problemas de segurança, o que, outra coisa não é que a criação pela lei de mecanismo para cercear a defesa, conforme as conveniências de quem acusa.

A preocupação com a preservação da defesa e a sua possibilidade de paridade no processo realmente não foi presente no projeto anticrime, que chega ao ponto de admitir que a acusação possa apresentar até mesmo testemunhas sigilosas, porém, ao mesmo tempo, que as conversas do advogado com seu cliente devem ser gravadas.

Enfim, não há propriamente inovações no projeto apresentado, na medida em que segue a linha geral do pensamento punitivista brasileiro, ancorado na supersticiosa ideia, que vem sendo experimentada há mais de quinhentos anos, de que o maior cerceamento de direitos e aumento da punição conseguirá fazer as pessoas se tornarem mais pacíficas e diminuirá os conflitos, atuando nas causas primárias dos delitos.

Lamentavelmente, nada foi tratado sobre temas como a justiça restaurativa, a separação entre delitos com emprego de violência e grave ameaça à pessoa e os outros crimes, o avanço da instituição do júri para maior democratização do sistema, o enfrentamento dos problemas carcerários, a concessão de maior eficácia ao decidido pelos Tribunais Superiores, com poder normativo em relação ao poder público, visando a real celeridade; políticas de desenvolvimento de cultura da paz, respeito à vida e ao outro.

Enfim, na onda da sociedade em que todos querem portar armas; na qual a noção do diferente como inimigo se amplia; onde as rivalidades se convertem em causas suficientes para o ódio e a violência e a estrutura oligárquica é fomentada, há coerência em que, na roupagem do combate ao crime, sejam propostos mais cerceamentos ao exercício da defesa e agigantamento das capacidades de intervenção do poder punitivo sobre a liberdade individual.

A questão é que justamente quando movimentos como esse se estabelecem, mais necessária se faz a cautela e a racionalidade, protegendo todos do agigantar do poder estatal que conduz ao arbítrio, mantendo intocadas as estruturas republicanas e democráticas já conquistadas, pois devem elas sempre avançar, jamais sofrer ruptura ou retrocessos.

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Sobre o autor
Adel El Tasse

Professor de Direito Penal em cursos de graduação e pós-graduação, professor na Escola da Magistratura do Estado do Paraná e no Curso Cers, mestre e doutor em Direito Penal, coordenador no Paraná da Associação Brasileira dos Professores de Ciências Penais e do Núcleo de Estudos Avançados em Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos do Município de Curitiba.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

EL TASSE, Adel. Primeiras observações sobre as medidas anticrime propostas pelo Ministério da Justiça. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5760, 9 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73003. Acesso em: 23 dez. 2024.

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