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Federalismo e direitos sociais:

reflexões sobre a possibilidade de conciliação

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22/09/2005 às 00:00
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Um dos maiores desafios até hoje enfrentados pelos operadores do direito é a busca de mecanismos jurídicos aptos à realização, no plano concreto, dos direitos fundamentais.

1. INTRODUÇÃO

            Um dos maiores desafios até hoje enfrentados pelos operadores do direito é a busca de mecanismos jurídicos aptos à realização, no plano concreto, dos direitos fundamentais. Sob o pretexto de sua natureza programática, ou mesmo sob o argumento estatal da reserva do financeiramente possível, estes direitos carecem ainda de aplicação efetiva no dia a dia das pessoas, muito porque ainda não encontramos fórmulas, já presentes em nosso ordenamento constitucional e legal, no sentido de viabilizá-los. Notadamente quanto aos direitos sociais, dentre os mais conhecidos o direito à saúde, à educação, à moradia e à previdência social, construídos no art. 6º, da Constituição Federal, desde sua gestação histórica dependem de uma atuação estatal mais direta, através de prestações positivas subministradas diretamente ao beneficiário do direito, diferentemente do que ocorre, em princípio [01], com os clássicos direitos fundamentais de defesa, que via de regra se satisfazem com a simples não interferência do poder estatal (v.g. não privar de direitos o cidadão por motivo de crença religiosa).

            Com a preocupação de tentar localizar tais fórmulas ou mecanismos jurídicos, notou-se que essa atuação estatal, de natureza prestacional na realização dos direitos sociais, pode ser perfeitamente conciliável com nosso modelo federativo de Estado, sobretudo se observarmos que a vocação constitucional brasileira, principalmente a contar da Carta Cidadã de 1988, contempla a possibilidade de comunicação harmônica e prodigiosa entre os diversos entes federados União, Estados, Distrito Federal e Municípios, tendo como vetor a cooperação e a busca da mitigação de desigualdades regionais (CF, art. 23, parágrafo único). Logo, a proposta deste estudo é estabelecer, no plano teórico e também com a exemplificação na esfera prática, algumas reflexões sobre as bases doutrinárias para interseção destes dois importantes temas.


2. O ESTADO FEDERAL

            Antes de falarmos do fenômeno federativo no Brasil, não podemos prescindir, ainda que em linhas gerais, da colocação do conceito, das características e das modalidades que singularizam o Estado Federal.

            Vem do latim "foedus", "foederis" a palavra federalismo, ali significando tratado ou liga. E, realmente, consiste a Federação na associação de entes políticos que objetivam uma integração harmônica de seus destinos, transmudando-se num único Estado soberano, mas ao mesmo tempo reservando para si uma esfera de atuação autônoma [02]. A autonomia destes entes se materializa na capacidade de auto-governo e auto-administração, disso derivando a escolha dos próprios governantes e também a possibilidade de definição dos seus ramos de interesse.

            A concepção moderna de Federação é reservada ao intelecto do constituinte norte-americano do final do século XIX, cuja construção não obedeceu a nenhum modelo precedente. Precisavam de uma fórmula de superação do antigo pacto confederativo que garantiu soberania às 13 colônias britânicas na América do Norte (1776), reunidas em Confederação de Estados, padrão este levado ao fracasso mediante o descumprimento no âmbito interno de cada novo Estado, sem sanções, das normas a elas impostas por Tratado. Concluiu-se que somente com a abdicação da soberania por parte de cada Estado independente, reunindo-se numa só força soberana, seria possível fazer cumprir os objetivos comuns, reservando-se, no entanto, parte dos poderes aos Estados doravante autônomos [03]. Disso derivou a institucionalização vertical dos laços associativos, passando a ser a soberania apanágio exclusivo do Estado Federal, sem que se retirasse dos Estados-membros a capacidade de autodeterminação dentro do círculo de competências traçado pelo poder soberano, assim reservando-lhes auto-organização, autogoverno, autolegislação e auto-administração, atributos exercitáveis sem subordinação aos Poderes da União [04].

            A autonomia dos Estados-membros, portanto, é uma das características mais marcantes do Estado Federal. Ao seu lado figuram também como características a Constituição como sendo o fundamento jurídico do Estado Federal e a inexistência do direito de secessão. Está na base da Federação sempre uma Constituição comum a todas as entidades federadas, por intermédio da qual são fixados os essenciais fundamentos de suas relações recíprocas, encarnando todo o fundo de validade dos seus atos e competências. Por outro lado, essa "aliança eterna" a que se propõe a Federação, traz consigo a amarra da cláusula proibitiva do desligamento entre os entes federados, pois são indissolúveis os laços federativos, característica que se faz velar com o mecanismo da intervenção federal.

            Mas é a Federação, de rigor, um grande sistema de repartição de competências, o que ontologicamente vem a consubstanciar sua descentralização em unidades autônomas, com a preservação do relacionamento harmônico entre União e Estados-membros. É possível, a partir dessa divisão de competências, distinguir os diversos modelos de federalismo existentes e evoluídos ao longo da história, dentre eles, na lição de PINTO FERREIRA [05]: a) federalismo clássico ou de equilíbrio (dual): é o modelo norte-americano, consistindo a dualidade na repartição de competências com a conferência dos poderes enumerados à União, ficando reservado aos Estados-membros os poderes não enumerados [06]; b) federalismo neoclássico: trata-se do novo federalismo norte-americano, consubstanciado na gradativa concentração de poderes na União em relação aos Estados-membros, o que parece se identificar com o caso brasileiro; e c) federalismo racionalizado ou hegemônico: é o caso das Constituições em vigor da Alemanha, Áustria, Índia e Canadá, que conferem legislação exclusiva à União e, ao mesmo tempo, distribui competências comuns ou concorrentes entre aquela e os demais entes federados.

            Logo, a repartição de competências poderá, num certo momento, acentuar a centralização concentrando uma maior soma de poderes nas mãos da União, fenômeno que em doutrina se denomina federalismo centrípeto; ou, noutro, poderá reduzir os poderes centrais e, via de conseqüência, ampliar os poderes dos Estados-membros. A isto se chama federalismo centrífugo. Há ainda uma última categoria de federalismo, através da qual se opera a dosagem no equilíbrio dessas forças, entre o ordenamento central e os periféricos, excluindo-se soluções extremas. Trata-se do federalismo de equilíbrio.


3. O ESTADO FEDERAL BRASILEIRO. BREVE HISTÓRICO

            No caso brasileiro, ao contrário do que se deu no modelo norte-americano, embora sob a tentativa de se criar um autêntico modelo federativo, na realidade vimos o nosso Estado Federal ser criado a partir de um Estado Unitário vindo desde a Constituição de 1824 (Brasil Imperial). A Constituição de 1891, ainda que no propósito de criar um modelo federal altamente descentralizado, criou uma União artificial, já que se deu do centro para as periferias, o inverso do modelo norte-americano. À propósito, para Dircêo Torrecillas Ramos [07], constituem o Estados Unidos o caso clássico de anterioridade do povo ao poder, e o Brasil, por sua vez, seria o exemplo mais radical da preexistência do poder ao povo, referindo-se o autor à angustiante realidade histórica nacional, que "recebeu" o Estado pronto, ao passo que a comunidade americana teria se mostrado politicamente forte em relação ao poder estatal que ela própria criou.

            Criamos aqui, nesta época, um federalismo dual nos moldes clássicos de enumeração dos poderes da União, ficando os residuais sob a égide dos Estados. Há um recuo dessa descentralização nas Constituições de 1934 e 1946, havendo quem sustente que a Federação foi simplesmente extinta com a Constituição social-facista de 1937 [08]. Na comparação entre os modelos desenvolvidos em 1934 e 1937, no que toca a divisão de competências, reforça-se o caráter centralizador do último, havendo mais restrição quanto a participação estatal na elaboração da legislação concorrente. Mas é em 1934 a primeira vez que uma Constituição, à par das competências exclusivas da União e reservadas dos Estados, prevê uma gama de competências legislativas concorrentes, através da qual os Estados poderiam editar leis em nível supletivo e complementar às normas gerais da União.

            A Constituição de 1946 manteve a técnica federativa de 1934. E se pode afirmar que nos anos de 1967 e 1969 tivemos uma Federação somente nominal, pois o Brasil regride à condição de Estado Unitário descentralizado, com característica autoritarista, o que muitos autores chamam de "federalismo de integração", pois se trata de um federalismo que nega o próprio federalismo, ao se confundir a Federação com a União.


4. O PACTO FEDERAL DE 1988

            Razões óbvias levam ao remodelamento de nosso federalismo, a partir de outubro de 1988, à padrões de abertura democrática e divisão equilibrada dos poderes entre os entes federados. É natural que se buscasse reparar distorções de nosso regime federativo, com a ampla revisão da repartição de competências, não ficando o constituinte de 1987 alheio às experiências contemporâneas de outros Estados Nacionais. Buscou-se, portanto, soluções inovadoras no arranjo da nova arquitetura federativa, sob forte influência do ideário democrático.

            Apesar das inovações introduzidas, como o reconhecimento dos Municípios como mais uma unidade federada a compor a união indissolúvel da república, o número de competências da União em detrimento de Estados, Distrito Federal e Municípios ainda se demonstra grande, o que para quase unanimidade dos autores é resultado de nossa forte tradição Presidencialista. Contudo, em termos gerais, o caminho que se preferiu é potencialmente hábil a ensejar um federalismo de equilíbrio. A busca por liberdade e eficiência [09] criou a necessidade de um balanceamento entre o governo federal e os governos estaduais, na medida em que, se por um lado o governo central fosse excessivamente forte, ficaria comprometido o autogoverno nos Estados, e, por outro, se a autonomia destes fosse igualmente poderosa, esvaziaria-se os objetivos comuns que justificam uma unidade nacional.

            Foi nesse ambiente que se construiu um modelo federativo de cooperação, superpondo-se competências federais e estaduais, mas com um pé na intenção descentralizadora, que dá sustentação ao federalismo solidário ou intergovernamental, estimulando a ação conjunta entre União e Estados-membros, que devem atuar como parceiros na solução de problemas sociais e econômicos. A discussão da descentralização, na avaliação de sua maior ou menor intensidade, é permeada no fundamento de cooperação, mediante a interação federal-estatal em favor do interesse da coletividade. É nas relações de colaboração que se firma a hodierna discussão sobre o federalismo cooperativo. Supera-se o dualismo como elemento clássico de caracterização do federalismo norte-americano, adotado no Brasil em nossa primeira constituição (1891), onde União e Estados se colocavam em situação de antagonismo, para galgarmos, da inter-relação destes entes, a superação de déficits sociais até hoje gravíssimos.

            A articulação de nosso federalismo atual transita na composição de forças, tendo como meta o equilíbrio: à União cabe o exercício dos poderes gerais que tenham a ver com questões unitaristas próprias da Federação e que estejam relacionadas com o Estado do bem-estar, o que inclui, de fundamental, a direção dos rumos de nossa política econômica, que exige uma harmonização em todo território nacional, sobretudo se considerarmos o país nas suas relações internacionais (economia globalizada); e, aos Estados, sobeja a criativa missão de propiciar o ambiente necessário para adaptar as soluções conforme suas peculiaridades regionais, isso sem abrir mão da autonomia que lhe é própria. Sob esse enfoque, fazemos nossas as reflexões de Fernanda Dias Menezes de Almeida [10], que assim salientou:

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            "Numa palavra, o caminho que se preferiu é potencialmente hábil a ensejar um federalismo de equilíbrio, que depende, embora, como não se desconhece, também de outras providências.

            Abrir aos Estados uma esfera de competências legislativas concorrentes, em que lhes é facultado, por direito próprio, e dentro dos limites traçados pela Constituição, disciplinar uma série de matérias que antes escapavam de sua órbita de atuação legiferante, significa, por certo, ampliar-lhes os horizontes e incentivar-lhes a criatividade.

            O mesmo se diga em relação à descentralização de encargos mediante o estabelecimento de uma área de competências comuns, em que a cooperação de todos os integrantes da Federação é que deverá resultar o atendimento das metas objetivadas.

            São dados, sempre falando em tese, reveladores de uma atenuação do princípio da supremacia da União e, pois, da centralização política que em toda parte, em particular no Brasil, vem marcando o federalismo."

            Como o federalismo não é algo estático, pelo contrário, exibe uma dinâmica na medida do avanço do mundo contemporâneo, a observação que podemos fazer é que dessa pretensão de harmonização entre entes federados, decorreu uma primazia por parte do Governo central, o que se afina com a advertência feita pela autora. Embora não seja do interesse deste estudo polemizar quanto aos inegáveis avanços dos poderes da União, é notório extrair descontentamentos por parte de vários Estados-membros, sobretudo no que se refere à repartição do produto das receitas tributárias, que vêm se minguando dia a dia, isto na contra-mão das crescentes arrecadações divulgadas recordes ano após ano. E apenas para que se dê um dado concreto sobre tais insatisfações, os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná e Mato Grosso do Sul ingressaram com ação cível originária perante o Supremo Tribunal Federal [11], contestando as perdas financeiras decorrentes das desonerações das exportações advindas da Lei Kandir (LC n° 87/96), implicando diretamente, segundo sustentam, na diminuição progressiva dos repasses da União, assim comprometendo seus orçamentos e, de conseqüência, vulnerando sua autonomia federativa.

            Apesar desse quadro de desconforto, o certo é que a Constituição Federal de 1988 lançou mão de um modelo federativo, inclusive como cláusula insuscetível de modificação, ainda que por emenda constitucional (art. 1º c/c 60, § 4º, I), plenamente sensível à necessidade de comunicação entre os entes componentes da tripartição União, Estados e Municípios [12], a tal ponto de conformarem competências comuns visando alcançar o que denominou de estado do bem-estar social e do equilibrado desenvolvimento no âmbito nacional (parágrafo único, art. 23).

            A vasta área criada pelo constituinte para realização concertada dos direitos sociais entre os entes federados, abrangendo os direitos à moradia, saúde, previdência social, lazer, trabalho, educação, apenas para citar alguns, lança um desafio hercúleo, e que deve superar desde as dificuldades orçamentárias, organizacionais, de planejamento, indo até eventuais dissidências políticas na conformação de todos os interesses envolvidos.

            Esse é o ambiente de desafio: a efetiva concretização dos direitos sociais numa atmosfera de cooperação federativa por si só eivada de complicadores.


5. DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS E ATUAÇÃO ESTATAL: COOPERAÇÃO FEDERATIVA COMO INSTRUMENTO DE REALIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS

            Um dos melhores critérios para a aferição do grau de abertura democrática de um Estado nacional reside na verificação do reconhecimento dos direitos fundamentais [13], isto porque na dogmática constitucional moderna direitos fundamentais e democracia são conceitos indissociáveis, fundamentalmente porque aqueles não podem subsistir prescindindo do regime político adotado.

            Não foi por coincidência que a Constituição Federal de 1988 apresenta logo em seu preâmbulo a diretriz máxima de assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, à liberdade, à segurança, ao desenvolvimento, à igualdade e à justiça como valores a serem preservados em todas as esferas da federação. Temos presente em nossa Lei Fundamental forte marco pluralista, o resgate e internação dos direitos humanos positivados no catálogo de garantias individuais do art. 5º e demais dispositivos (permissão do parágrafo segundo), tal como os direitos fundamentais sociais elencados nos artigos 6º.

            Segundo a doutrina do direito constitucional os direitos fundamentais sociais se enquadram no status positivo na clássica teoria dos quatro status de Jellinek [14]. Segundo o autor, o indivíduo pode estar em quatro situações diferenciadas em relação ao Estado, variando entre deveres e obrigações conforme a peculiar situação. Haveria, portanto, um status passivo (status subjectionis), através do qual o Estado impõe deveres ao indivíduo, vinculando seu comportamento através de mandamentos e proibições (v.g., proibição do uso de entorpecentes). Por outro lado, haveria um status negativo (direitos de defesa), que materializa certa proteção da esfera de liberdade do individuo contra atos de poder do Estado, seja pelo não-impedimento da prática de determinado ato (v.g., não impedir o direito de associação para fins lícitos), seja para não-intervenção em situações subjetivas ou pela não eliminação de posições jurídicas (proibição do retrocesso). Há, ainda, o status ativo, por meio do qual o indivíduo exerce em face do Estado o direito de influenciar na sua formação (v.g. direito de votar). Por fim, Jellinek aponta o status positivo (status civitatis), que é aquele reservado ao interesse do indivíduo quanto à prestação positiva por parte do Estado, implicando uma atuação direta do poder estatal na realização concreta do direito.

            Será objeto de nosso estudo este último status, pois é da atuação estatal específica que se estratifica no plano da realidade o exercício dos direitos fundamentais sociais. É o que assevera Gilmar Ferreira Mendes ao pontuar a necessidade da iniciativa do poder público para garantias dessas liberdades:

            "Vinculados à concepção de que ao Estado incumbe, além da não-intervenção na esfera da liberdade pessoal dos indivíduos, garantida pelos direitos de defesa, a tarefa de colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições fáticas que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais, os direitos fundamentais a prestações objetivam, em última análise, a garantia não apenas da liberdade-autonomia (liberdade perante o Estado), mas também da liberdade por intermédio do Estado, partindo da premissa de que o indivíduo, no que concerne à conquista e manutenção da sua liberdade, depende em muito de uma postura ativa dos poderes públicos." [15]

            Para o mesmo autor, os direitos a prestações encontram uma receptividade sem precedentes em nosso constitucionalismo, disso resultando inclusive a abertura de um capítulo totalmente dedicado aos direitos sociais no catálogo dos direitos e garantias fundamentais.

            Logo, nosso ponto de partida mais relevante reside no fato de que os direitos sociais, muito embora não se encontrem redigidos no catálogo de direitos e garantias individuais do art. 5º, da Constituição, não estão destituídos da fundamentalidade legitimadora, no âmbito interno, dos anseios democráticos a eles inerentes. Os direitos a prestações são inequivocamente direitos fundamentais autênticos, fato que autoriza, de per si, sua plena aplicabilidade, nos termos do art. 5º, § 1º, da Lei Fundamental. Tal como sucede com as demais normas constitucionais fundamentais e independentemente da forma de positivação, por menor que seja sua densidade normativa ao nível da Constituição, sempre estarão aptos a gerar um mínimo de efeitos jurídicos, inclusive no que se refere às chamadas normas programáticas. [16]

            O principal objetivo dos direitos sociais é a materialização do ideal de igualdade, em contraposição com a igualdade formal arquitetada pelo Estado liberal mínimo. Fazem parte do que em doutrina se acostou classificar direitos de segunda dimensão, constitucionalizadas no México em 1917 e, como maior expoente, a Constituição de Weimar de 1919. Pela primeira vez na história a assistência estatal é reivindicada pelos cidadãos como um direito às prestações de natureza fática, o que produziu uma substancial alteração na relação Estado-indivíduo, sobretudo em relação as quatro matizes educação, saúde, trabalho e cultura, doravante denominados direitos sociais.

            E se não parece ser alvo de discórdia o fato de que os direitos fundamentais sociais dependam diretamente de uma prestação estatal positiva, podemos avançar para algo que também é de todo induvidoso: os direitos sociais demandam dispêndios financeiros por parte do poder público na maioria dos casos insuficientes à contemplação de todos os indivíduos. A realidade brasileira indica que, pior que isso, até mesmo os que conseguem se beneficiar diretamente de uma atuação estatal específica nesse sentido, como prestação da saúde, moradia e previdência, ainda assim a recebem em termos precários. Isso porque o Estado dispõe de limitada capacidade de dispor sobre o objeto das prestações reconhecidas pelas normas definidoras dos direitos fundamentais sociais, de tal maneira que a limitação dos recursos, segundo alguns autores [17], constitui verdadeira limitação fática à realização dos direitos sociais.

            Bem por isso os direitos sociais costumam ser chamados por parte da doutrina como direitos relativos, ora por dependerem de estipêndios financeiros em montantes simplesmente indisponíveis, ora porque estão vinculados a interposição da legislação regulamentadora que invariavelmente também depende dessas restrições orçamentárias. Foi o quanto bastou ao direito comparado para que desenvolvesse a teoria da reserva do financeiramente possível, como causa excludente da obrigação estatal (teoria alemã) na consecução dos direitos sociais. É por intermédio dessa teoria que somente é dado obrigar o ente estatal nos estritos limites do que razoavelmente lhe é possível, em termos materiais (financeiros), despender para o alcance de determinada prestação. Logo, a base dessa teoria está na razão lógica de que não é possível obrigar alguém a dar o que simplesmente não possui. Desse modo, estão os cidadãos sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que podem, de maneira racional, esperar da sociedade.

            O aspecto econômico como obstáculo à concretização dos direitos sociais, portanto, parece ser mais grave que eventuais barreiras de ordem meramente regulatória. É preciso observar que à razão da natureza programática desses direitos, ou mesmo da eficácia limitada [18] de seu conteúdo, merecem no mais das vezes uma interposta lei que lhe dê eficácia no plano concreto. Ganha relevância, por outro lado, se verificarmos que a necessidade de interposição legislativa se justifica também pela circunstância de que se trata de um problema de natureza competencial, sobretudo porque a realização desses direitos depende de disponibilidade de meios e também da progressiva implantação de políticas públicas na órbita sócio-econômica. Foi bem por isso que Vicente de Paulo Barreto [19] assinalou:

            "A alocação de recursos para suprir demandas sociais depende, em última análise, da vontade política que se expressa no estado democrático através do sistema representativo, quando ocorre a escolha pelo eleitor dos projetos públicos de sua preferência. Tanto a questão da liberdade como da igualdade, constituem o pano de fundo diante do qual serão escolhidas as alternativas de políticas públicas apresentadas pelos partidos políticos. A sociedade que deverá escolher quais as opções político-econômicas e, portanto, em quais setores serão aplicados preferencialmente os recursos públicos."

            À medida que se faz certa essa inter-relação entre o aspecto econômico e a efetividade, no plano concreto, dos direitos fundamentais sociais, num debate que não pode prescindir da atuação horizontal do poder público em todos os níveis federados, sendo essa a razão porque Canotilho [20] afirmou que ao legislador compete, dentro das reservas orçamentárias, dos planos econômicos e financeiros, das condições sociais e econômicas do país, garantir as prestações integradoras dos direitos sociais, econômicos e culturais; concluímos que vem a ser esta uma questão a ser esgrimida, sobretudo, no plano da organização federativa do país.

            Ora, se está a depender de atividade estatal o pleno exercício dessas garantias fundamentais, a arrumação das esferas União, Estados, Distrito Federal e Municípios, de modo concertado e dirigido ao único fim objetivado por todo o estado constitucional contemporâneo, que outro não é senão o respeito à dignidade da pessoa humana, é de se asseverar, com toda segurança, que a plena eficácia destes direitos demanda um pacto federativo equilibrado e sobremaneira vinculado ao atingimento destas metas sociais.

            Logo, a harmonização dessas esferas de poder político, que somente se alcança com a perfeita distribuição de competências providenciada por uma federação justa e equilibrada, que saiba tratar os iguais com igualdade, e os desiguais, com desigualdades, na medida exata que se igualem ou desigualem [21], certamente redundará no incremento positivo dos direitos fundamentais sociais, na medida em que suas demandas variam conforme as peculiaridades de cada região.

            A propósito disso, enquanto na região sul as demandas por educação fundamental se encontrem em relativo grau de conforto, pode-se dizer que nas regiões norte, nordeste e parte do centro-oeste a realidade já não é a mesma, havendo bolsões de pobreza que comprometem não só o acesso à educação como também à moradia digna, à saúde, apenas para exemplificar alguns direitos sociais inalcançados. Essas diferenças são perfeitamente mitigáveis através da prodigiosa utilização de nosso pacto federativo, em cujas bases se encontra a possibilidade de coordenação e cooperação entre os entes federados, atuando na conformidade das desigualdades vislumbradas.

            Essas assimetrias são superáveis com a busca do equilíbrio e cooperação, ora através da divisão coordenada de tributos conforme as necessidades regionais, ora pela criação de incentivos fiscais ou outros benefícios visem à redistribuição e efetivo acesso às receitas. Estas não são, porém, as únicas fórmulas. No tratamento jurídico dado à Federação cabem as mais variadas práticas organizacionais necessárias à compatibilização do modelo em cada sociedade que o adota. Assim, o federalismo não apresenta uma dimensão única, é mutável no tempo e no espaço.

            Há exemplos concretos no caso brasileiro acerca da adoção de medidas já arrimadas em nosso concerto federativo, no sentido de concretizar os direitos fundamentais sociais. É o que ocorre com o nosso Sistema Único de Saúde (SUS), que transita entre as esferas Federal e Municipal na consecução do direito social à saúde, através do repasse de recursos da União para as municipalidades. Assim o é também com o recentemente criado Sistema Único de Assistência Social (SUAS), que promove a expansão de recursos de diversos programas assistenciais como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e o Programa de Assistência Integral à Família (PAIF). São estes apenas alguns exemplos de descentralização de recursos da União para distribuição aos Municípios. Há outros casos em que existe uma conjugação de esforços financeiros, com partida e contra-partida, como é o caso dos convênios para construção de moradias populares, para o fomento da educação, dentre tantos outros.

            Claramente se pode inferir dos exemplos acima que vem prevalecendo a aplicação de recursos do orçamento da União no direcionamento desses programas de inclusão social. Essa preeminência, contudo, não nos parece ser a ideal, sobretudo porque o conhecimento preciso acerca das demandas sociais, locais e regionais, está muito mais próximo dos Municípios e dos Estados.

            Dessa maneira, deveria ser revista a própria densidade na repartição de competências administrativas de execução, entre os integrantes da Federação, de sorte a propiciar-se a descentralização de poderes para o fortalecimento das ordens periféricas diante da autoridade central. Esse novo arranjo, em nosso sentir, caberia ao legislador complementar (CF, artigo 23, parágrafo único), que está a dever regulamentação compatível com a realidade brasileira, que reúne tantas demandas sociais quantas são as diversificadas formas de solução para estas.

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Sobre o autor
Antônio Saboia de Melo Neto

procurador do Estado do Pará com lotação em Brasília (DF), pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá em convênio com Escola Superior de Advocacia do Pará, pós-graduando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO NETO, Antônio Saboia. Federalismo e direitos sociais:: reflexões sobre a possibilidade de conciliação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 811, 22 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7315. Acesso em: 24 abr. 2024.

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