Função social dos contratos em revista

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Artigo analisa de que modo o princípio da função social dos contratos se relaciona com o conceito de constitucionalismo desenvolvido na segunda metade do século XX, quando novos atributos foram acrescentados ao direito constitucional

A idade do que se convencionou chamar contrato talvez seja a mesma da espécie humana, e se configurou numa ferramenta de suporte à realização das finalidades de sobrevivência e continuidade das sociedades que surgiram e se desenvolveram desde a antiguidade até o período contemporâneo. Essa ferramenta deu suporte ao aperfeiçoamento dos atos humanos, bem como ao modelo de transação que se estabelece entre as pessoas hoje, pois a ideia de sociedade carrega junto, inerentemente a ideia de contrato.

A despeito das relações assumidas pelo que se considerava esfera pública e esfera individual, daí privada, nas diversas épocas, a aparência assumida pelos contratos variou muito desde a antiguidade, ao longo da sua travessia pelo longo período de quase um milênio da idade média até chegar aos dias de hoje.

A partir do século XIX, com fundamentais contribuições dos pressupostos filosóficos jusnaturalistas e a indiscutível vitória dos valores e ideais liberais decorrentes da ascensão ao poder da classe burguesa, que se consolidaria como o novo modelo de padrão econômico-social que moldaria o ocidente, e traria junto seus mais caros princípios, quais sejam, o individualismo exacerbado, e a liberdade de comércio, todos decorrentes dos ideais de liberdade originários das revoluções liberais americana (1776) e francesa (1789), principalmente, a percepção das relações econômicas e sociais se modificaram muito na Europa, e posteriormente influenciou a conformação de modelos jurídicos de outras partes do mundo (BARROSO, 2005).

A conjugação de fatores como o fortalecimento econômico e político da burguesia e o direcionamento teórico sobre o surgimento e a função que seria atribuída ao Estado desenvolvido pelos Iluministas, movimento que daria substrato filosófico à revolução francesa e que apressaria a queda dos regimes absolutistas então vigentes, pretendia antes de tudo a igualdade entre os homens e a sujeição do Estado a um ordenamento jurídico que lhe conferisse limites.

A adoção de um modelo individualista pelo qual o Estado era visto como um mal necessário, pois sob os novos paradigmas sobre os quais a sociedade do século XVII se organizava, necessitava-se de um espaço autônomo em relação as esfera estatal, onde pudesse exercitar seus direitos individuais, bem como as suas transações econômicas. Nesse quadro revelavam-se as relações econômicas contratuais, onde o Estado Moderno mantinha-se distante das relações entre particulares, e a sua ausência não era somente recomendável, mas pressuposto de um sistema econômico individualista, e de valorização de coisas. Daí seu caráter também marcadamente patrimonial (SETTI ,2010).

O modelo liberal de contrato estava intimamente ligado ao princípio da autonomia da vontade, ou seja, a manifestação da vontade era o elemento que por si só concedia validade ao contrato, sem carecer da intervenção do Estado. Segundo Setti, a autonomia da vontade tem relação com a liberdade contratual, por meio da qual os contratantes, de um lado e de outro, possuem a autorização de escolherem sobre o que e com quem contratar sem depender do arbítrio ou desígnio estatal.

No entanto, o modelo de relação contratual baseado em mero ponto de vista individual e patrimonial não demonstrou os elementos necessários para conformar-se à nova realidade social, com suas novas demandas específicas e inerentes complexidades. Os dissabores de guerras e os novos rearranjos estatais, pactuados sob a política do bem estar social, bem como a necessidade de novos rearranjos constitucionais, portadores modelos principiológicos decorrentes do que se convencionou chamar de movimentos pós-positivista e neoconstitucionalista. Tais fenômemos apressaram o declínio das características que fundamentavam os contratos liberais que ainda repercutiam grandemente ao longo do século XX (SETTI, 2010).

O efeito dos acontecimentos que ocorreram no mundo, especialmente a explosão de duas guerras mundiais, fizeram surgir a necessidade de uma nova proposta de enquadramento de princípios e modelos jurídicos que conferissem ao direito suporte para a compreensão de justiça e de construção de valores que norteassem a convivência humana dentro de limites que garantissem direitos fundamentais. Desse modo, é fundamental ressaltar as mudanças por que passou o Direito Constitucional na Europa, que de algum modo influenciaram também o direito constitucional brasileiro.

Sarmento, ensinando sobre os eventos históricos que influenciaram o advento do neoconstitucionalismo, com clara ênfase no que ocorria na Europa no segunda metade do século XX,  explica que no velho continente predominava uma cultura jurídica de característica predominantemente legicêtrica, que restringia o direito quase que exclusivamente àquilo que era produzido e promulgado ao poder legislativo, sem atribuir, no entanto, força normativa às constituições, que eram consideradas por essa época, meras cartas de intenções políticas de quem ocupava o poder por ocasião de sua edição (SARMENTO, 2009).

Em outra obra, Sarmento salienta que tal modelo se conformava a partir de duas premissas fundamentais, quais sejam, a crença de que somente o parlamento possuía legitimidade para construir o direitos. E a de aos juízes não era dada legitimidade para tal atribuição. No entanto, a concepção destas duas premissão serão abaladas profundamente, ao longo do século, por fatores econômicos, como a face selvagem do capitalismo, bem como o progressivo aumento do direito de voto. Esses fatores levariam à transformação do estado liberal em Estado Social (SARMENO, 2007).

Com o fim da segunda Guerra Mundial, após o declínio de ditaduras em países como Espanha e Portugal décadas depois, a percepção sobre o significado da constituição sofreu significativas mudanças (SARMENTO, 2009). Fenômenos ocorridos na Segunda Guerra Mundial como o Nazismo fizeram notar a possibilidade do que maiorias possam perpetrar contra minorias verdadeiras barbáries, e desencadearam um movimento de fortalecimento da jurisdição constitucional, instituindo mecanismos potentes contra eventuais desrespeitos aos direitos fundamentais, mesmo em face do legislador.

A partir do delineamento destas conclusões, o constitucionalismo surge como uma alternativa plausível, já que às novas constituições seriam inseridos o que se chamou desde então de positivação dos direitos naturais.

 Esse processo neoconstitucionalidor se foi deixando desenhar, segundo barroso, perpassando-se três marcos fundamentais.

O primeiro Marco fundamental é de caráter histórico, qual seja o processo de reconstitucionalização europeu após o término da segunda guerra mundial, que redefiniu o papel desempenhado pelas constituições na organização dos Estado e sua influência sobre as outras instituições políticas, reaproximando as ideias de democracia e constitucionalismo.

O segundo marco foi de caráter filosófico e se caracteriza pelo supremacia do positivismo puro. Ou seja, aqui se assinala a confluência, ainda segundo Barroso, de dois paradigmas jurídicos desenvolvidos nos séculos xvi e xix, ou seja o jusnaturalismo e o próprio positivismo. Assinala ainda barroso que a equiparação do positivismo à lei, afastou do direitos discussões importantes, como aquelas que dizem respeito à legitimidade e à própria noção de justiça. A queda do positivismo está associada ao fim da segunda guerra mundial, e consequente, à reaproximação entre ética e direito.

Barroso assinala ainda que “A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação”.

Barroso assinala ainda um terceiro marco teórico, que configura o novo modelo jurídico constitucional que ocorreu no século xx. Esse marco é distinguido por três características: o reconhecimento da força normativa da constituição; a expansão da jurisdição da constituição; e o desenvolvimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional (BARROSO, 2012) .

Conforme o desenvolvimento de modelos jurídico que conformaram a base de relações a que a humanidade se submete, vê-se o desenvolvimento de um modelo se estabelecendo que propicia a orientação por princípios promovidos e direcionados pela própria constituição, que redirecionam e delimitam interesses individuais em relação aos interesses sociais, representados pelo restante da coletividade.

Assim, o que se pode considerar é que as relações meramente individuais passam a ser regidos também por regras constitucionais, reguladas não somente pela autonomia da vontade, mas devem seguir a consecução de um projeto existencial, em que os direitos públicos passam a ser também privados e os privados passam a configurar-se como públicos.

No entanto, esse longo processo em que as constituições assumem nova roupagem, e que assumem legítima efetividade jurídica, deixando de representarem mera carta de intenções políticas para figurarem no ápice dos ordenamentos jurídicos, não poderia ocorrer sem algumas críticas, às por serem pertinentes e importantes para o próprios desenvolvimento da própria ideia de neoconstitucionalismo, não poderiam ficar sem menção.

Das críticas construídas a esse novo modelo constitucional, importantes que se notem as de três espécies (SARMENTO 2012)

O primeiro deles se refere à própria tensão existente entre o regime democrático e a própria jurisdição constitucional, uma vez que tem-se em mente que supostamente, foram atribuídas ao poder judiciário expectativas exageradas no sentido de garantir os projetos e ideais emancipatórias presentes nos novos documentos constitucionais, o que poderia degenerar a própria natureza do regime democrático, pelo qual as decisões importantes politicamente devem ser tomadas por manifestação das maiorias.

Uma segunda crítica surge da valorização excessiva que foi dada aos princípios, o que eventualmente poderia desprestigiar a aplicação de regras, de modo a possibilitar ao judiciário a aplicação do direito de forma pouco uniforme e porque não, de modo subjetivo pelos diversos aplicadores do direito.

A terceira crítica trata da constitucionalização dos outros ramos jurídicos do estado, ou seja, os princípios constitucionais teriam a capacidade inundar os diversos ramos em um ordenamento jurídicos, correndo-se o risco de que haja certo entrincheiramento constitucional de questões jurídicas banais, que dificultaria a operacionalização do sistema jurídico em virtudes de demandas ocasionais do corpo político regido por certa constituição.

Assim, a seguir por essa linha, percebeu-se a trajetória assumida pelas constituições de espraiar por todos os ramos do direito, seja ele de natureza pública ou privada, as suas diretrizes. Bem como explica Sarmento, os direitos fundamentais, que se configuram como coração das constituições contemporâneas, serão considerados também como valores dotados de força irradiante, que permitirá a eles penetrarem em relações jurídicas distintas daquelas para as quais foram inicialmente concebidas (SARMENTO 2007).

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Especificamente sobre a constituição Brasileira de 1988, que é partidária dos critérios e características constitucionais que emergiram a partir da segunda guerra mundial e se desenvolveram ao longo da segunda metade do século XX, assinala Carlylle Pop:

A influência da Constituição sobre o Direito Privado e vice-versa são frutos de diversos aspectos, merecendo destaque (a) a visão da Constituição não mais como regra política, mas também jurídica que passa a atingir não só as entidades públicas, mas também os particulares, deixando de ser mera cartilha de deveres aos administradores, mas também é fonte de direito aos particulares; (b) a chamada constitucionalização dos princípios fundamentais de direito privado; (c) a globalização do direito, aspecto que diminuiu as distâncias e aumentou o interesse na unificação das regras jurídicas; (d) a aceitação pelas novas constituições da importância da proteção dos direitos humanos e a ratificação de normas supranacionais nesse sentido.

Portanto parte-se para um caminho conforme percepção de Oliveira, em que os contratos também partilha dessa visão de distanciamento da visão clássica, em de predominância individualista, e que propiciará a intervenção estatal, de modo a criar mecanismos que intervenham nos negócios estabelecidos pelos particulares em geral (OLIVEIRA, 2012).

Ainda segundo oliveira, a interpretação realizada seja pela doutrina ou jurisprudência deve ser realizada de maneira sistemática, de modo a observar os valores constitucionais, de onde os contratos devem buscar a fundamentação para a realização da sua função social.

Assim não se pode deixar de notar em que direção caminha a conformação do ordenamento jurídico brasileiro no sentido de adotar, baseado em princípios constitucionais, regras que por ele se espraiam de modo a aceitar firmemente a função social dos contratos como basilar. Assim no artigo 421 do código civil estabelece que os contratos só serão assumidos se considerarem os limites de sua função social.

Tartuce salienta que, na exposição de motivos do anteprojeto do código civil, de autoria de Miguel Reale, datado de 16 de janeiro de 1975, consta que um dos motivos da nova codificação era, dentre outras, tornar explícita, que a liberdade de contratar só pode ser exercida quando em conformidade com a função social do contrato (TARTUCE, 2015).

Assim, o que se deve notar sobre a função social dos contratos é que ele deve se revestir de uma noção de que a liberdade daquilo que se tem por privado deve ser limitada, ou restrita pelos valores constitucionais, de modo que um negócio jurídico deva ser um espaço reservado a determinados fins escolhidos politicamente que sejam reputados como possuidor de algum valor importante para determinado ajuntamento social.

Bibliografia

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005.

OLIVEIRA, Maria da Conceição Melo. Função social do contrato na legislação brasileira

TARTUCE, Flávio. Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie. 2015

SETTI, Maria Estela Leite Gomes. O princípio da função social do contrato: conteúdo, alcance e a análise econômica do direito. In: Encontro Nacional do CONPEDI, 19, 2010

SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil:riscos e possibilidades. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (orgs.). Direitos fundamentais e estado

constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, pp. 9-49, 2009.

SARMENTO, Daniel. Ubiqüidade constitucional: os dois lados da moeda. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira; SARMENTO, Daniel (orgs.). A constitucionalização do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, pp. 113-148, 2007.

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