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A norma do devido processo legal em seu aspecto procedimental e sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal

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26/09/2005 às 00:00
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3. Conclusão.

Não raro o caráter fluido da norma do devido processo legal é ressaltado pela doutrina. Sua vocação é possuir um conteúdo não aprisionável a circunstâncias de tempo e lugar pré-determinadas. A relativização do conteúdo do princípio permitiria extrair dele sempre maior proteção do indivíduo frente ao Estado [11].

Apesar disso, é indiscutível que um esforço de densificação contribui para potencializar a proteção prometida pela norma. Ademais há um ganho em termos de segurança jurídica na fixação de standards possíveis para a aplicação do princípio pelo Judiciário.

A pesquisa feita na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da aplicação do devido processo legal permite que sejam extraídos alguns standards, tanto no que tange à definição do conteúdo, quanto no que se refere à eficácia normativa do princípio estudado. .

No que tange ao conteúdo, alguns elementos são mais valorizados quando se cuida de direito processual penal e administrativo, uma vez que aqui o particular estará quase sempre em situação de defesa de posições jurídicas que estão na iminência de serem atingidas. Pudemos extrair do devido processo legal aplicado ao procedimento administrativo: o direito à isenção da autoridade sindicante, o direito de ser cientificado da imputação, de constituir advogado e apresentar defesa, de produzir provas, de ter suas razões de defesa consideradas na decisão, de ser cientificado da decisão. Quanto ao direito ao recurso, o STF por mais de uma vez se manifestou no sentido de que não é garantia inerente ao devido processo legal, devendo ser observado quando previsto em lei.

Foi observada ainda uma evolução na jurisprudência quanto à exigência de prévio procedimento conforme ao devido processo legal sempre que a Administração vier a atingir situações jurídicas de particulares, o que se constata pelo último julgado citado, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, em sessão plenária do STF. É indiscutível que a adoção do procedimento implicará em ganho de qualidade para as decisões administrativas (cunhadas sob o contraditório), com acréscimo da segurança jurídica e redução da sobrecarga do judiciário.

No direito processual penal, o devido processo legal não se aplica necessariamente conjugado com a defesa e o contraditório (o que ocorre comumente em direito administrativo, em face do disposto no art. 5º, LV, da Constituição Federal). Vimos casos em que se extraiu do princípio o privilégio contra a auto-incriminação, o direito ao julgamento célere, o direito a não ser submetido a uma persecução penal não razoável, a relativização do princípio da isonomia processual, com convalidação de sentença proferida por juiz absolutamente incompetente, mas apenas em favor do réu.

Já em direito processual civil, a apreciação da matéria pelo Supremo é mais tímida, tanto pelo fato já consignado de o Tribunal recusar-se a apreciar supostas ofensas a regras processuais, quanto pela tendência de convalidação de irregularidades, com o fim de aproveitar ao máximo os atos processuais, em vista do demorado trâmite dos processos judiciais e do cada vez mais caro princípio da economia processual. Mesmo assim, registramos julgados relevantes nos quais foram afastadas regras por violação do princípio, como por exemplo ocorreu com a tentativa de se conceder prazo de cinco anos para rescisão de julgados unicamente em favor da Fazenda Pública, ou na imposição de gravames exagerados para o exercício do direito de defesa nas ações para cobrança de contribuições previdenciárias.

Quanto à eficácia normativa do princípio, o Supremo Tribunal Federal extrai conseqüências normativas as mais diversas do devido processo legal. Comumente o devido processo legal incide através de regras que ordenam os procedimentos. As regras que disciplinam o ajuizamento da ação, a citação do réu, as modalidades de resposta, a atividade probatória, os requisitos da sentença, o processamento dos recursos, etc, todas elas realizam o devido processo legal.

No entanto, muitas vezes o princípio incide para invalidar regras processuais com ele incompatíveis [12] [13]. Incide ainda, independentemente da mediação de regras, para ordenar determinado procedimento, sempre que não houver uma ordenação legal, ou ainda quando a regulação daquele procedimento não for apta a realizar o fim propugnado pelo princípio.

È certo que o devido processo legal, possuindo status de sobreprincípio, informa a interpretação de princípios constitucionais correlatos que possuem maior grau de concretização (sub-princípios), tais como a ampla defesa, contraditório, juiz natural, vedação de prova ilícita, etc. [14]. Não obstante isso, no exame da jurisprudência do STF foi possível identificar atuações diretas do devido processo legal, não relacionadas com a mera articulação ou interpretação de subprincípios [15]. Tal ocorreu com bastante frequencia em matéria processual penal e administrativa. No primeiro caso, pela maximização do direito à liberdade, já examinada. No segundo, pela ausência, em muitos casos, de ritos legais assecuratórios do devido processo legal [16].

Finalmente, o devido processo legal atua também para informar a interpretação das regras processuais, ou seja, diante de mais de uma interpretação possível, deve ser priorizada aquela que melhor realize o fim propugnado pelo princípio. [17] [18]

Sem a menor intenção de esgotar o tema, o que se tentou aqui foi, utilizando a metodologia proposta por Humberto Ávila, investigar o conteúdo e a eficácia normativa do princípio do devido processo legal. Evitou-se estudo mais aprofundado da doutrina a respeito do tema e priorizou-se o exame da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Para terminar, é de se observar que o percurso inverso proposto pelo Autor, muito embora possa ser empreendido através do exame crítico de alguns julgados coletados nos quais o princípio sob exame tenha sido mal aplicado (por exemplo, a decisão do STF que não considerou inerente ao devido processo legal o duplo grau de jurisdição, ao menos em matéria criminal, ou a que considerou compatível com o princípio a execução extrajudicial do decreto lei 70), demandaria uma pesquisa mais ampla do que a que foi feita na elaboração desse trabalho, que não tivesse como método de busca o uso da palavra chave devido processo legal. É intuitivo que os casos em que princípio deveria ter sido utilizado e não o foi não serão encontrados através de tal método de busca.

Espera-se que, ainda assim, o presente trabalho contribua para a melhor explicitação do conteúdo e atuação da norma do devido processo legal, de indiscutível relevância em um Estado Constitucional pautado no respeito aos direitos fundamentais.


Notas

1.São Paulo: Malheiros Editores, 2003.

2.Em resumo, o caminho sugerido é o seguinte: 1. especificação dos fins ao máximo; 2. investigação de casos paradigmáticos, a fim de verificar qual é o estado ideal de coisas a ser buscado e os comportamentos necessários à sua realização; 3. na investigação de casos paradigmáticos, deve-se eleger alguns deles que girem em torno do mesmo problema central, a fim de se extrair os critérios adotados para a solução do problema e 4. a partir desses critérios buscar delimitar os bens jurídicos que compõem o estado ideal de coisas e os comportamentos necessários à sua realização. 5. Finalmente, fazer o percurso inverso, empreendendo uma análise crítica de casos nos quais o uso daquele princípio não foi feito de forma correta. (Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 72 e seguintes).

3."...pode-se investigar os princípios de maneira a privilegiar o exame de sua estrutura, especialmente para nela encontrar um procedimento racional de fundamentação que permita tanto especificar as condutas necessárias à realização dos valores por eles prestigiados quanto justificar e controlar sua aplicação mediante reconstrução racional dos enunciados doutrinários e das decisões judiciais. Nessa hipótese prioriza-se o caráter justificativo dos princípios e seu uso racionalmente controlado." (Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 56).

4.A respeito da dimensão substantiva do devido processo legal na jurisprudência da Suprema Corte Norte Americana, ver: CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira: O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 34 e seguintes. LIMA, Maria Rosynete Oliveira: Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,1999, p. 273 e seguintes.

5.Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 63/64.

6.Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 65.

7.CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. Ob. cit., p. 34. LIMA. Maria Rosynete Oliveira. Ob. cit., p. 167. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do devido processo legal, firmada após a Constituição de 1988, refere-se preponderantemente à matéria criminal e administrativa. Em sede de direito processual civil em regra o STF não aprecia supostas violações ao devido processo legal em razão do entendimento já consolidado de que o desrespeito a regras processuais configura, quando muito, ofensa indireta à Constituição, que não autoriza a interposição de recurso extraordinário (AI 455881-Agr, Carlos Velloso, Segunda Turma, j. 2.12.03, DJ 6.2.04, unânime; RE 354874 – Agr, Carlos Britto, Primeira Turma, j. 2.12.03, DJ 13.2.04, unânime). Merece registro posição divergente do Ministro Marco Aurélio (v.g, RE 242064-1, J. 14.11.00, DJ. 24.8.01. Primeira Turma, maioria).

8.Nesse sentido os seguintes julgados: RE 385931-AGR-CE (Rel. Carlos Velloso – 2ª Turma – J. 9.12.03 – DJ 6.2.04 – unânime); RE 199800-SP (Rel. Carlos Velloso – Pleno – j. 4.6.97 – DJ 05.5.01 – unânime); RE 339989 AgR / RS (Rel. Carlos Velloso – Segunda Turma – j. 26.11.02 – DJ 19.12.02 – unânime); RE 221.441-AM (Rel. Néri da Silveira – Segunda Turma – j. 14.12.99 – DJ 25.2.00 – unânime)

9.Destacam-se: regras que asseguram ao interessado ser intimado dos atos processuais com antecedência mínima de três dias úteis(art. 26, § 2º); direito amplo a ser intimado de atos que resultem para o interessado imposição de deveres, ônus, sanções, restrições (art. 28); direito de produzir provas e aduzir alegações (arts 29 e 38) e a ter tais provas e alegações consideradas pela autoridade competente para decidir (art. 38, § 1º). direito de interpor recurso (art. 56); excepcionalidade e necessária justificação da avocatória (art. 15); possibilidade de argüição de suspeição e impedimento da autoridade processante (art. 18).

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10.Nesse sentido: RE 185255-Al (Rel. Sydney Sanches – Primeira Turma – j. 1.4.97 – DJ 19.9.97 –unânime); RE 247399 (Rel Ellen Gracie – Primeira Turma – j. 23.4.02. DJ 24.5.02 – unânime).

11.CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. Ob. cit., p. 55/56. LIMA. Maria Rosynete Oliveira. Ob. cit., p. 78. DANTAS, San Tiago. Igualdade perante a lei e Due Process of Law (Contribuição ao Estudo da Limitação Constitucional do Poder Legislativo). Revista Forense, abril/1948.

12.A incidência do princípio constitucional para invalidar a regra que o contraria é designada por Humberto Ávila de função eficacial bloqueadora (Sistema Constitucional Tributário, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 47 e 119).

13.A eficácia bloqueadora foi identificada nos seguintes julgados: ADI-MC 1753-2-DF (Rel. Sepúlveda Pertence – pleno – j. 16.4.98 - DJ 12.6.98 – unânime); ADI 1055-7-DF (Rel. Sydney Sanches – pleno - j. 16.6.94, DJ 13.6.97, maioria).

14.É o que Humberto Ávila denomina de função eficacial rearticuladora, própria dos sobreprincípios. (cf. Sistema ... ob. cit., p. 47. A respeito ver também LIMA, Maria Rosynete Oliveira, ob. cit., p 180/181: "Comumente encontramos nos textos jurídicos brasileiros o atrelamento do princípio do devido processo legal a outro enunciado principiológico, como, por exemplo, devido processo legal e contraditório. Este fato, por vezes justificável, é em sua maioria fruto de conclusões apressadas, já que desprezam a força normativa dos princípios envolvidos, os quais, por si sós, podem justificar resoluções jurídicas. (...) os princípios do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, e outros, não são corolários, deduções, ou conseqüências do princípio do devido processo legal, mas princípios, que têm um grau de concretização mais elevado e que são chamados a concretizar o devido processo legal; daí chamá-los de subprincípios, e não subespécies do devido processo legal. (...) O devido processo legal, como princípio a ser concretizado assumiria a função de uma ‘idéia directiva’, segundo escólio de Karl Larenz (1989:579), indicando a direção aos subprincípios e lhes servindo de base. Esta diretiva não tem, contudo, mão única, mas um sentido duplo: ‘o princípio esclarece-se pelas suas concretizações, e estas pela sua união perfeita com o princípio’".

15.Possui portanto função eficacial integrativa, apesar de tal função não ser própria dos sobreprincípios, segundo Humberto Ávila (Sistema... cit., p. 47).

16.A eficácia integrativa pode ser observada nos seguintes julgados: Extradição 633-9 República Popular da China (Rel. Celso de Mello – Pleno - j. 28.8.96 - DJ 6.4.01 - unânime), HC 79812-8-SP (Rel. Celso de Mello – Pleno – j. 8.11.00 – DJ 16.2.01 – unânime), HC 82941-4-RJ (Rel. Sepúlveda Pertence – Primeira Turma – j. 16.3.03 – DJ 27.6.03 – unânime), HC 80379/SP (Rel. Celso de Mello – Segunda Turma – j. 18.12.00 – DJ 25.5.01 – unânime), MS 23343-5 (Rel. Octavio Gallotti – Pleno – j. 24.2.00 – DJ 18.8.00 – unânime), AI 241201-AGR-SC (Rel. Celso de Mello – Segunda Turma – j. 27.8.02 – DJ 20.9.02 – j. unânime), MS 23550-1-DF (Rel. Marco Aurélio – Rel. para acórdão Sepúlveda Pertence – Pleno – j. 4.4.01 – DJ. 31.10.01 – maioria), RE 158.543-9 (Rel. Marco Aurélio – Segunda Turma – j 30.8.94 – DJ 6.10.95 – maioria), MS 24268/MG (Rel. Ellen Gracie – Rel. para acórdão Gilmar Mendes – j. 5.2.04 – DJ. 17.9.04 – maioria).

17.Esta, na classificação proposta por Humberto Ávila, é a função eficacial interpretativa do princípio (Sistema... cit., p. 46). Cumpre destacar que o autor sustenta que o devido processo legal atua também como postulado normativo, "já que exige uma interpretação racional das regras e dos princípios procedimentais. Tem, por isso mesmo, íntima vinculação com a própria justiça". Parece-me entretanto que a atuação do devido processo legal sobre outras normas (regras e princípios) de modo a orientar sua interpretação e aplicação com o fim de realização do resultado justo se esgota em suas funções rearticuladora e interpretativa, não sendo possível vislumbrar, na prática, distinção entre tais funções e que decorreria da dimensão de postulado normativo.

18.Identifiquei a exigência de interpretação de regras conforme o princípio nos seguintes julgados: HC 80263-0 (Rel. Ilmar Galvão – Pleno – j. 20.2.03 – DJ 27.6.03 – maioria), HC 68609-DF (Rel. Sepúlveda Pertence - Pleno - j. 01.7.91 - DJ 30.8.91 - unânime).

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Sobre a autora
Simone Schreiber

juíza federal da 5ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro, professora de Direito Processual Penal da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), doutoranda em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SCHREIBER, Simone. A norma do devido processo legal em seu aspecto procedimental e sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 815, 26 set. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7334. Acesso em: 26 abr. 2024.

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