3. Conclusão.
Não raro o caráter fluido da norma do devido processo legal é ressaltado pela doutrina. Sua vocação é possuir um conteúdo não aprisionável a circunstâncias de tempo e lugar pré-determinadas. A relativização do conteúdo do princípio permitiria extrair dele sempre maior proteção do indivíduo frente ao Estado [11].
Apesar disso, é indiscutível que um esforço de densificação contribui para potencializar a proteção prometida pela norma. Ademais há um ganho em termos de segurança jurídica na fixação de standards possíveis para a aplicação do princípio pelo Judiciário.
A pesquisa feita na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito da aplicação do devido processo legal permite que sejam extraídos alguns standards, tanto no que tange à definição do conteúdo, quanto no que se refere à eficácia normativa do princípio estudado. .
No que tange ao conteúdo, alguns elementos são mais valorizados quando se cuida de direito processual penal e administrativo, uma vez que aqui o particular estará quase sempre em situação de defesa de posições jurídicas que estão na iminência de serem atingidas. Pudemos extrair do devido processo legal aplicado ao procedimento administrativo: o direito à isenção da autoridade sindicante, o direito de ser cientificado da imputação, de constituir advogado e apresentar defesa, de produzir provas, de ter suas razões de defesa consideradas na decisão, de ser cientificado da decisão. Quanto ao direito ao recurso, o STF por mais de uma vez se manifestou no sentido de que não é garantia inerente ao devido processo legal, devendo ser observado quando previsto em lei.
Foi observada ainda uma evolução na jurisprudência quanto à exigência de prévio procedimento conforme ao devido processo legal sempre que a Administração vier a atingir situações jurídicas de particulares, o que se constata pelo último julgado citado, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, em sessão plenária do STF. É indiscutível que a adoção do procedimento implicará em ganho de qualidade para as decisões administrativas (cunhadas sob o contraditório), com acréscimo da segurança jurídica e redução da sobrecarga do judiciário.
No direito processual penal, o devido processo legal não se aplica necessariamente conjugado com a defesa e o contraditório (o que ocorre comumente em direito administrativo, em face do disposto no art. 5º, LV, da Constituição Federal). Vimos casos em que se extraiu do princípio o privilégio contra a auto-incriminação, o direito ao julgamento célere, o direito a não ser submetido a uma persecução penal não razoável, a relativização do princípio da isonomia processual, com convalidação de sentença proferida por juiz absolutamente incompetente, mas apenas em favor do réu.
Já em direito processual civil, a apreciação da matéria pelo Supremo é mais tímida, tanto pelo fato já consignado de o Tribunal recusar-se a apreciar supostas ofensas a regras processuais, quanto pela tendência de convalidação de irregularidades, com o fim de aproveitar ao máximo os atos processuais, em vista do demorado trâmite dos processos judiciais e do cada vez mais caro princípio da economia processual. Mesmo assim, registramos julgados relevantes nos quais foram afastadas regras por violação do princípio, como por exemplo ocorreu com a tentativa de se conceder prazo de cinco anos para rescisão de julgados unicamente em favor da Fazenda Pública, ou na imposição de gravames exagerados para o exercício do direito de defesa nas ações para cobrança de contribuições previdenciárias.
Quanto à eficácia normativa do princípio, o Supremo Tribunal Federal extrai conseqüências normativas as mais diversas do devido processo legal. Comumente o devido processo legal incide através de regras que ordenam os procedimentos. As regras que disciplinam o ajuizamento da ação, a citação do réu, as modalidades de resposta, a atividade probatória, os requisitos da sentença, o processamento dos recursos, etc, todas elas realizam o devido processo legal.
No entanto, muitas vezes o princípio incide para invalidar regras processuais com ele incompatíveis [12] [13]. Incide ainda, independentemente da mediação de regras, para ordenar determinado procedimento, sempre que não houver uma ordenação legal, ou ainda quando a regulação daquele procedimento não for apta a realizar o fim propugnado pelo princípio.
È certo que o devido processo legal, possuindo status de sobreprincípio, informa a interpretação de princípios constitucionais correlatos que possuem maior grau de concretização (sub-princípios), tais como a ampla defesa, contraditório, juiz natural, vedação de prova ilícita, etc. [14]. Não obstante isso, no exame da jurisprudência do STF foi possível identificar atuações diretas do devido processo legal, não relacionadas com a mera articulação ou interpretação de subprincípios [15]. Tal ocorreu com bastante frequencia em matéria processual penal e administrativa. No primeiro caso, pela maximização do direito à liberdade, já examinada. No segundo, pela ausência, em muitos casos, de ritos legais assecuratórios do devido processo legal [16].
Finalmente, o devido processo legal atua também para informar a interpretação das regras processuais, ou seja, diante de mais de uma interpretação possível, deve ser priorizada aquela que melhor realize o fim propugnado pelo princípio. [17] [18]
Sem a menor intenção de esgotar o tema, o que se tentou aqui foi, utilizando a metodologia proposta por Humberto Ávila, investigar o conteúdo e a eficácia normativa do princípio do devido processo legal. Evitou-se estudo mais aprofundado da doutrina a respeito do tema e priorizou-se o exame da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Para terminar, é de se observar que o percurso inverso proposto pelo Autor, muito embora possa ser empreendido através do exame crítico de alguns julgados coletados nos quais o princípio sob exame tenha sido mal aplicado (por exemplo, a decisão do STF que não considerou inerente ao devido processo legal o duplo grau de jurisdição, ao menos em matéria criminal, ou a que considerou compatível com o princípio a execução extrajudicial do decreto lei 70), demandaria uma pesquisa mais ampla do que a que foi feita na elaboração desse trabalho, que não tivesse como método de busca o uso da palavra chave devido processo legal. É intuitivo que os casos em que princípio deveria ter sido utilizado e não o foi não serão encontrados através de tal método de busca.
Espera-se que, ainda assim, o presente trabalho contribua para a melhor explicitação do conteúdo e atuação da norma do devido processo legal, de indiscutível relevância em um Estado Constitucional pautado no respeito aos direitos fundamentais.
Notas
1.São Paulo: Malheiros Editores, 2003.
2.Em resumo, o caminho sugerido é o seguinte: 1. especificação dos fins ao máximo; 2. investigação de casos paradigmáticos, a fim de verificar qual é o estado ideal de coisas a ser buscado e os comportamentos necessários à sua realização; 3. na investigação de casos paradigmáticos, deve-se eleger alguns deles que girem em torno do mesmo problema central, a fim de se extrair os critérios adotados para a solução do problema e 4. a partir desses critérios buscar delimitar os bens jurídicos que compõem o estado ideal de coisas e os comportamentos necessários à sua realização. 5. Finalmente, fazer o percurso inverso, empreendendo uma análise crítica de casos nos quais o uso daquele princípio não foi feito de forma correta. (Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 72 e seguintes).
3."...pode-se investigar os princípios de maneira a privilegiar o exame de sua estrutura, especialmente para nela encontrar um procedimento racional de fundamentação que permita tanto especificar as condutas necessárias à realização dos valores por eles prestigiados quanto justificar e controlar sua aplicação mediante reconstrução racional dos enunciados doutrinários e das decisões judiciais. Nessa hipótese prioriza-se o caráter justificativo dos princípios e seu uso racionalmente controlado." (Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 56).
4.A respeito da dimensão substantiva do devido processo legal na jurisprudência da Suprema Corte Norte Americana, ver: CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira: O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova Constituição do Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1989, p. 34 e seguintes. LIMA, Maria Rosynete Oliveira: Devido Processo Legal. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor,1999, p. 273 e seguintes.
5.Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 63/64.
6.Ávila, Humberto. Ob. cit., p. 65.
7.CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. Ob. cit., p. 34. LIMA. Maria Rosynete Oliveira. Ob. cit., p. 167. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal a respeito do devido processo legal, firmada após a Constituição de 1988, refere-se preponderantemente à matéria criminal e administrativa. Em sede de direito processual civil em regra o STF não aprecia supostas violações ao devido processo legal em razão do entendimento já consolidado de que o desrespeito a regras processuais configura, quando muito, ofensa indireta à Constituição, que não autoriza a interposição de recurso extraordinário (AI 455881-Agr, Carlos Velloso, Segunda Turma, j. 2.12.03, DJ 6.2.04, unânime; RE 354874 – Agr, Carlos Britto, Primeira Turma, j. 2.12.03, DJ 13.2.04, unânime). Merece registro posição divergente do Ministro Marco Aurélio (v.g, RE 242064-1, J. 14.11.00, DJ. 24.8.01. Primeira Turma, maioria).
8.Nesse sentido os seguintes julgados: RE 385931-AGR-CE (Rel. Carlos Velloso – 2ª Turma – J. 9.12.03 – DJ 6.2.04 – unânime); RE 199800-SP (Rel. Carlos Velloso – Pleno – j. 4.6.97 – DJ 05.5.01 – unânime); RE 339989 AgR / RS (Rel. Carlos Velloso – Segunda Turma – j. 26.11.02 – DJ 19.12.02 – unânime); RE 221.441-AM (Rel. Néri da Silveira – Segunda Turma – j. 14.12.99 – DJ 25.2.00 – unânime)
9.Destacam-se: regras que asseguram ao interessado ser intimado dos atos processuais com antecedência mínima de três dias úteis(art. 26, § 2º); direito amplo a ser intimado de atos que resultem para o interessado imposição de deveres, ônus, sanções, restrições (art. 28); direito de produzir provas e aduzir alegações (arts 29 e 38) e a ter tais provas e alegações consideradas pela autoridade competente para decidir (art. 38, § 1º). direito de interpor recurso (art. 56); excepcionalidade e necessária justificação da avocatória (art. 15); possibilidade de argüição de suspeição e impedimento da autoridade processante (art. 18).
10.Nesse sentido: RE 185255-Al (Rel. Sydney Sanches – Primeira Turma – j. 1.4.97 – DJ 19.9.97 –unânime); RE 247399 (Rel Ellen Gracie – Primeira Turma – j. 23.4.02. DJ 24.5.02 – unânime).
11.CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. Ob. cit., p. 55/56. LIMA. Maria Rosynete Oliveira. Ob. cit., p. 78. DANTAS, San Tiago. Igualdade perante a lei e Due Process of Law (Contribuição ao Estudo da Limitação Constitucional do Poder Legislativo). Revista Forense, abril/1948.
12.A incidência do princípio constitucional para invalidar a regra que o contraria é designada por Humberto Ávila de função eficacial bloqueadora (Sistema Constitucional Tributário, São Paulo: Saraiva, 2004, p. 47 e 119).
13.A eficácia bloqueadora foi identificada nos seguintes julgados: ADI-MC 1753-2-DF (Rel. Sepúlveda Pertence – pleno – j. 16.4.98 - DJ 12.6.98 – unânime); ADI 1055-7-DF (Rel. Sydney Sanches – pleno - j. 16.6.94, DJ 13.6.97, maioria).
14.É o que Humberto Ávila denomina de função eficacial rearticuladora, própria dos sobreprincípios. (cf. Sistema ... ob. cit., p. 47. A respeito ver também LIMA, Maria Rosynete Oliveira, ob. cit., p 180/181: "Comumente encontramos nos textos jurídicos brasileiros o atrelamento do princípio do devido processo legal a outro enunciado principiológico, como, por exemplo, devido processo legal e contraditório. Este fato, por vezes justificável, é em sua maioria fruto de conclusões apressadas, já que desprezam a força normativa dos princípios envolvidos, os quais, por si sós, podem justificar resoluções jurídicas. (...) os princípios do contraditório, da ampla defesa, do juiz natural, e outros, não são corolários, deduções, ou conseqüências do princípio do devido processo legal, mas princípios, que têm um grau de concretização mais elevado e que são chamados a concretizar o devido processo legal; daí chamá-los de subprincípios, e não subespécies do devido processo legal. (...) O devido processo legal, como princípio a ser concretizado assumiria a função de uma ‘idéia directiva’, segundo escólio de Karl Larenz (1989:579), indicando a direção aos subprincípios e lhes servindo de base. Esta diretiva não tem, contudo, mão única, mas um sentido duplo: ‘o princípio esclarece-se pelas suas concretizações, e estas pela sua união perfeita com o princípio’".
15.Possui portanto função eficacial integrativa, apesar de tal função não ser própria dos sobreprincípios, segundo Humberto Ávila (Sistema... cit., p. 47).
16.A eficácia integrativa pode ser observada nos seguintes julgados: Extradição 633-9 República Popular da China (Rel. Celso de Mello – Pleno - j. 28.8.96 - DJ 6.4.01 - unânime), HC 79812-8-SP (Rel. Celso de Mello – Pleno – j. 8.11.00 – DJ 16.2.01 – unânime), HC 82941-4-RJ (Rel. Sepúlveda Pertence – Primeira Turma – j. 16.3.03 – DJ 27.6.03 – unânime), HC 80379/SP (Rel. Celso de Mello – Segunda Turma – j. 18.12.00 – DJ 25.5.01 – unânime), MS 23343-5 (Rel. Octavio Gallotti – Pleno – j. 24.2.00 – DJ 18.8.00 – unânime), AI 241201-AGR-SC (Rel. Celso de Mello – Segunda Turma – j. 27.8.02 – DJ 20.9.02 – j. unânime), MS 23550-1-DF (Rel. Marco Aurélio – Rel. para acórdão Sepúlveda Pertence – Pleno – j. 4.4.01 – DJ. 31.10.01 – maioria), RE 158.543-9 (Rel. Marco Aurélio – Segunda Turma – j 30.8.94 – DJ 6.10.95 – maioria), MS 24268/MG (Rel. Ellen Gracie – Rel. para acórdão Gilmar Mendes – j. 5.2.04 – DJ. 17.9.04 – maioria).
17.Esta, na classificação proposta por Humberto Ávila, é a função eficacial interpretativa do princípio (Sistema... cit., p. 46). Cumpre destacar que o autor sustenta que o devido processo legal atua também como postulado normativo, "já que exige uma interpretação racional das regras e dos princípios procedimentais. Tem, por isso mesmo, íntima vinculação com a própria justiça". Parece-me entretanto que a atuação do devido processo legal sobre outras normas (regras e princípios) de modo a orientar sua interpretação e aplicação com o fim de realização do resultado justo se esgota em suas funções rearticuladora e interpretativa, não sendo possível vislumbrar, na prática, distinção entre tais funções e que decorreria da dimensão de postulado normativo.
18.Identifiquei a exigência de interpretação de regras conforme o princípio nos seguintes julgados: HC 80263-0 (Rel. Ilmar Galvão – Pleno – j. 20.2.03 – DJ 27.6.03 – maioria), HC 68609-DF (Rel. Sepúlveda Pertence - Pleno - j. 01.7.91 - DJ 30.8.91 - unânime).