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Direito penal do inimigo:

Jackobs, nazismo e a velha estória de sempre

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01/10/2005 às 00:00
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Considerações Finais

            Verifica-se, através das idéias de JACKOBS, que o Direito Penal continua sendo fruto de uma concepção cultural sócio-historica-temporalmente circunscrita. Se, hoje, vivemos em um mundo marcado pela vitimização e infantilismo, torna-se óbvio que o mundo ocidental (Ariano ou WASP – pessoas brancas e anglo-saxãs) iria reagir aos ataques a seus valores mais caros de uma forma também muito agressiva.

            Sem dúvida o conceito de terrorista pode ser encaixado como todo aquele que não tem o poder institucional nas mãos e, através de seus atos, luta contra o mesmo. Do traficante ao sem-terra, do homem-bomba ao presidente que bombardeia, qual a distância? Do operário que perdeu um dedo no trabalho braçal ao presidente que corrompe com dinheiro público, do que está-se a versar?

            A fluidez dos personagens que cada um traz consigo demonstra, cabalmente, que a rotulação e o etiquetamento das pessoas nada mais é do que a mutilação do ser humano. O Direito penal do inimigo, na acepção de seu autor, é apenas mais uma das variadas maneiras que a intelectualidade institucional de extrema-direita encontra para segregar aquele que já não lhe interessa.

            Mais: (re)surge, esta segregação institucional, por força de uma crise paradigmática identificada mas não assimilada, justamente por trabalhar-se com fenômenos que não mais se explicam através da lógica-binária.

            Alinhando-me ao entendimento de FRANÇOIS ÖST, com o homem surge com efeito a possibilidade de uma repetição reflexiva do passado e de uma construção antecipativa do futuro – a capacidade de reinterpretar o passado (não fazer com que ele nunca tenha existido, mas imprimir-lhe um outro sentido, tirar partido dos seus ensinamentos, por exemplo, ou ainda assumir a responsabilidade pelos seus erros) e a faculdade de orientar o futuro (não fazer com que ele não ocorra, mas imprimir um sentido – significado e direcção – àquilo que acontecer). Tais possibilidades, continuando com o autor, restituem à tradição a sua verdadeira dimensão: o poder de transmitir mundos possíveis [23].

            Sem dúvida a quebra do paradigma e a complexidade com o qual o homem passou a encarar os fenômenos sociais faz com que exista uma forte tendência de buscarmos soluções pré-fabricadas, com que tenhamos o desejo de retornar ao mundo de Alice exposto na telenovela e, para tanto, que os problemas sejam imediatamente dissipados, resolvidos, ainda que em nível simbólico. No entanto, e nos poéticos dizeres de ALEXIS TOCQUEVILLE, uma vez que o passado já não ilumina o futuro, o espírito caminha nas trevas. Desta maneira, se ao olharmos para um passado recente podemos constatar que a existência de uma diferença ontológica entre as pessoas foi o argumento que legitimou a doutrina nazista, não nos é permitido, sob pena de uma eternização da memória (FRANÇOIS ÖST), incorrer no mesmo erro. Ao revés, precisamos aceitar o vazio que a fuga do paradigma Moderno nos causa e, ainda assim, caminharmos adiante, em busca do novo, pois, a aceitarmos idéias "kantianas" professadas por um doutrinador cujo local de fala é um país de primeiro mundo (e ele, próprio, um indivíduo framoso, bem conceituado e bem remunerado pelo trabalho que faz) "invadido" pelas angústias da pobreza oriental, nada mais restará senão a pergunta de JEAN BAUDRILLARD: "quem nos livrará das sedimentações da estupidez secular [24]"?


BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS:

            BAUDRILLARD, Jean. A Ilusão do Fim ou a Greve dos Acontecimentos. Terramar, 1995.

            BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. de Lúcia Guidicini e Alessandro Berti Contessa. Martins Fontes, 1999.

            BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. Saraiva, 2001.

            BRECHT, BERTOLT. Alemanha, in Poemas 1913-1956, Editora 34, 2000.

            BRUCKNER, Pascal. Filhos e Vítimas: o tempo da inocência, in A Sociedade em Busca de Valores, org. MORIN, Edgar, PRIGOGINE, Ilya. Piaget, 1996.

            CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Cultrix, 1992.

            CARVALHO, Salo. Teoria Agnóstica da Pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo, in Crítica à Execução Penal. Org. CARVALHO, Salo. Lumen Juris, 2002.

            COMTE-SPONVILLE, André. Uma Moral sem Fundamento, in A Sociedade em Busca de Valores, org. MORIN, Edgar, PRIGOGINE, Ilya. Piaget, 1996.

            ECO, Umberto. O Fascismo Eterno, in Cinco Escritos Morais. Record, 2000.

            GAUER, Ruth M. Chittó. Alguns Aspectos da Fenomenologia da Violência, in A Fenomenologia da Violência. Org. GAUER, Gabriel J. Chittó; GAUER, Ruth M. Chittó. Juruá, 2000.

            JACKOBS, Günther, CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do Inimigo. Trad. CALLEGARI, André Luis, GIACOMOLLI, Nereu José. Livraria do Advogado, 2005.

            OST, François. O Tempo do Direito. Piaget, 1999;

            SANTOS, Boaventura de Souza. Um Discurso sobre as Ciências. Cortez, 2003.

            SCHMIDT, Andrei Zenkner Schmidt. O Princípio da Legalidade Penal. Livraria do Advogado, 2001.

            YOUNG Jock. A Sociedade Excludente. Revan, 2002.


Notas

            01

Crítica breve, superficial, inacabada. É, ao fim, um artigo, e não um livro.

            02

Consoante ANDRÉ COMTE-SPONVILLE, "...quando Nietzsche escreve que ‘ Deus morreu’, a expressão não é para ser tomada em sentido literal: Nietzsche não ignora que Deus, se existe, é por definição imortal. Acrescento, aliás, que, se ele não existe, é também um pouco imortal por isso mesmo...Falar da morte de Deus também não quer dizer que hoje seja impossível acreditar nela. Sabemos bem que não é este o caso: Deus está vivo, aqui, agora, nesta sala, para todos aqueles que acreditam nele. Aquilo que mudou é que esta fé, actualmente, já só diz respeito à esfera privada. Podemos continuar, individualmente, a acreditar em Deus, mas já não podemos, socialmente, estar em comunhão com ele. Já não podemos basear em Deus a nossa coesão social, já não temos um fundamento que esteja socialmente disponível. Neste sentido, eu diria que Deus está socialmente morto...(p. 140)

            03

Em seara jurídica, o livro de CESARE BECCARIA exemplifica esta cultura de crença no controle através das finalidades que se imaginavam alcançáveis através do Direito Penal e seus castigos, e facilmente retiramos daquela obra as quatro principais teorias que, ainda hoje, justificam o direito de punir, quais sejam a (1) prevenção direta negativa, (2) prevenção direta positiva, (3) prevenção indireta negativa e, por fim, (4) prevenção indireta positiva.

            04

A abordagem deste tema, assim como a subdivisão que se faz neste título, deriva do artigo de PASCAL BRUCKNER, consoante bibliografia ao final.

            05

PASCAL BRUCKNER: Este tipo de responsabilidade está fundado no princípio da desproporção. O menor erro de um cirurgião, de um anestesista, de um condutor de pesados, de um piloto de avião...pode causar a morte de dezenas, mesmo de milhares de pessoas. O progresso da ciência submete-nos a uma responsabilidade desproporcionada. (p. 53, g.n.)

            06

PASCAL BRUCKNER, p. 53/54.

            07

Novamente, neste título, a importância do artigo de PASCAL BRUCKNER e sua abordagem multidisciplinar.

            08

Esta frase é um slogan publicitário de um famoso cartão de crédito, e encontra-se exposta em várias revistas de circulação nacional (07/2005). Percebe-se, através da mesma, a quebra da promessa do devir, o presente esticado e apreciado como se o "após" houvesse, simplesmente, desaparecido. A quebra do devir, vale salientar, isenta o indivíduo de responsabilidades em relação ao futuro.

            09

E o melhor exemplo de uma promessa de crença no futuro melhor através de reflexão sobre o presente é o Direito. Nasce, aqui, a crise.

            10

PASCAL BRUCKNER, p. 61.

            11

FRANÇOIS OST, p. 360.

            12

Importante lembrar que a distinção entre o nazismo e o fascismo é, consoante UMBERTO ECO, que professa idéia com a qual concordamos, a de um regime totalitário para um regime ditatorial (O Fascismo Eterno).

            13

BERTOLT BRECHT, Alemanha (p. 117/118)

            14

UMBERTO ECO, p. 46/48.

            15

GÜNTHER JACKOBS, P. 42.

            16

GÜNTHER JAKOBS, p. 42.

            17

GÜNTHER JACKOBS, p. 45.

            18

GÜNTHER JACKOBS, p. 34/35.

            19

GÜNTHER JACKOBS, p.37.

            20

Vale destacar que o próprio conceito de "ato terrorista" não foi, até a data de hoje, devidamente traçado. Indo além, e como denunciam as denominações "guerra contra o tráfico", "guerra contra a corrupção", etc., pode-se perceber que dito conceito- terrorismo – encontra larga e aberta estrada de incidência nos mais variados comportamentos humanos. Em outras palavras, poderemos ter, por exemplo, terroristas de idéias, como "aqueles" que legitimaram a Revolução Cultural de Mao-Tsé-Tung.

            21

Nesta senda, a lição de JOCK YOUNG:.. .as definições sociais do que é criminalmente violento consistirá de um gradiente indo do gravemente violento ao não violento e irá mudar, com o tempo, à medida em que mude a sensibilidade do público à violência.(p. 68). Em um mundo de reservas naturais quase esgotadas, muitos serão os movimentos que percebem, no desmatamento da floresta Amazônica, um ato de violência maior do que a destruição de um alvo institucional, por exemplo. Ou, como nos mostra o cenário político atual (e dos últimos quarenta anos) alguns tenderão a dizer que Israel se defende de palestinos violentos, enquanto outros dirão que são os palestinos que se defendem de um Estado de violência.

            22

GÜNTHER JACKOBS, p. 49.

            23

FRANÇOIS ÖST, P. 42.

            24

JEAN BAUDRILLARD, p. 93.
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Sobre o autor
Daniel Gerber

advogado criminalista em Porto Alegre (RS), professor de Direito Penal e Processual Penal, mestre em Ciências

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GERBER, Daniel. Direito penal do inimigo:: Jackobs, nazismo e a velha estória de sempre. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 820, 1 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7340. Acesso em: 19 abr. 2024.

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