Capa da publicação Licenciamento ambiental: crítica à proposta de flexibilização do governo
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Convite para um ecocídio

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23/04/2019 às 14:35
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É difícil aceitar e compreender que, após tragédias ambientais de grandes dimensões como as de Mariana e Brumadinho, o Estado brasileiro se posicione justamente no sentido de afrouxar a sua legislação de proteção ao meio ambiente, mediante o esvaziamento de um dos seus mais importantes instrumentos, isto é, o licenciamento ambiental.

I. Introdução 

O licenciamento ambiental é uma modalidade de controle ambiental, por meio da qual “o Poder público procura controlar as atividades econômicas que degradem ou que possam vir a degradar o meio ambiente”1. Trata-se, portanto, de um mecanismo importantíssimo na defesa do meio ambiente. Levando-se em conta esse seu caráter fundamental para a defesa ambiental ele não pode ser suprimido ou esvaziado de sentido sem que tal ação deixe de configurar um verdadeiro atentado a ordem constitucional brasileira e a integridade da população que fica a mercê das consequências desastrosas da exploração irresponsável dos recursos naturais. Assim, há de se ter muito cuidado com qualquer proposta de alteração constitucional ou projeto legislativo que vise alterar ou regulamentar o processo administrativo do licenciamento ambiental no Brasil sob o rótulo da sua “flexibilização” e da sua “agilização”.

O licenciamento ambiental não está explicitamente previsto no texto constitucional. Apesar disso, ele é instrumento essencial da ordem constitucional ambiental introduzida pela CF/882. Foi nessa ordem, afinal, que se deu o “esverdear” do direito constitucional brasileiro3 que permitiu a estruturação da tutela dos valores ambientais também na esfera constitucional. A partir daí, estabeleceu-se não só um terceiro gênero de bens a carecer da tutela do Estado – bens esses diversos dos bens públicos e dos bens privados, isto é, os bens ambientais – como também conferiu-se a esses bens “características próprias, desvinculadas do instituto da posse e da propriedade”4. Com isso o meio ambiente ecologicamente equilibrado foi alçado à condição de direito fundamental e passou a ser obrigatório a qualquer empreendedor (privado ou público, brasileiro ou estrangeiro) ter sua atividade potencialmente lesiva ao meio ambiente vinculada ao mecanismo do licenciamento ambiental5. O licenciamento ambiental não é, portanto, opcional. Ele é obrigatório e indispensável para o controle das atividades econômicas que irão incidir sobre os denominados bens ambientais que por serem de uso comum do povo e essenciais à sadia qualidade de vida necessitam de tutela especial. Lamentavelmente, se por um lado o licenciamento ambiental pode ser considerado como uma das mais importantes garantias à proteção dos bens ambientais, por outro lado, lamentavelmente, ele é visto por parte considerável do setor econômico e do atual governo brasileiro como um entrave concreto a realização de suas atividades econômicas.

Na presente análise, discute-se a proposta do Ministério do Meio Ambiente de reduzir o licenciamento ambiental a uma espécie de “autodeclaração” por parte do empreendedor que somente posteriormente se submeteria a uma fiscalização por parte da Administração Pública6. Essa proposta de “flexibilização” do licenciamento ambiental teria por base razões de celeridade e de eficiência das atividades exploradoras dos recursos naturais supostamente prejudicadas pela morosidade do processo na forma como ele hoje se apresenta. O presente texto segue uma linha abertamente crítica a referida proposta que seria um verdadeiro “Convite para um ecocídio” no território nacional7. Aponta-se aqui não só inviabilidade da referida proposta em razão de seu teor obviamente inconstitucional como também as consequências nefastas que podem advir, caso ela seja aprovada. Afinal, o mecanismo do licenciamento ambiental, ainda que não previsto expressamente no texto constitucional, é um meio essencial para a consecução do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado previsto no caput do art. 225 da CF/888, consistindo a sua supressão ou descaracterização em uma violação ao referido direito fundamental sujeita a responsabilização. É necessário ainda ressaltar que o que está sendo proposto sob o rótulo enganoso de uma “agilização” ou “flexibilização” do mecanismo, importa, na realidade, em uma completa descaracterização do mesmo, tornando-o inócuo ao seu propósito de controle e proteção dos bens ambientais. É possível esperar assim não somente um grave retrocesso ambiental (que já se encontra em curso, conforme indicam diversas outras medidas tomadas pelo atual governo), como também a configuração de um perigoso precedente para a exploração predatória do meio ambiente por grupos econômicos pouco comprometidos com as questões e os valores ambientais. Em face desse horizonte sombrio não é difícil profetizar também o aumento do número de tragédias e crimes ambientais como os ocorridos nas localidades mineiras de Mariana (2015) e de Brumadinho (2019) que jogaram a imagem do Brasil e milhares de vidas humanas e de animais literalmente para debaixo de uma espessa camada de lama tóxica.

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Sobre o autor
Antonio Silveira Marques

Doutor em Direito Público pela Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU), mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARQUES, Antonio Silveira. Convite para um ecocídio . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5774, 23 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73403. Acesso em: 22 dez. 2024.

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