Baruck Espinosa (posteriormente Benedicto Espinosa) nasceu em 1632, em Amsterdã (Holanda). Filho de um próspero comerciante judeu, Baruck, em 1643, inicia os seus estudos em uma escola judaica denominada ‘Coroa da Lei’, tendo como professor para assuntos bíblicos e teológicos Saul Levi Marteira[1]. Em 1650, Espinosa passa a estudar latim, ciências naturais e filosofia sob a orientação do professor Frans Van Den Enden, apaixonando-se por sua filha Clara Maria. Em 1652, Espinosa passa a dedicar-se a fabricação e polimento de lentes, ofício que lhe seria fundamental para sua sobrevivência no futuro.
Em 1654, perde o pai e, no ano seguinte (1655), é acusado de heresia (materialismo e desprezo pelo Torá) pelo Tribunal da Congregação Judaica. Em 1656, é excomungado da Comunidade Judaica, e, em consequência, muda o seu nome para Benedicto. Em 1660, é denunciado como “ameaça à piedade e à moral”. Em 1661 dá início a produção de ‘Ética’. Neste mesmo ano, torna-se parte de uma irmandade religiosa denominada ‘Colegiante’. No ano seguinte, escreve “Tratado da Correção do Intelecto”, obra objeto deste estudo[2]. Em 1669, muda-se para Haia. Em 1661 vê o seu Tratado Teológico Político ser denunciado pelo Conselho da Igreja de Amsterdã como “obra forjada pelo renegado judeu e o diabo”. Sua obra prima Ética é completada em 1675. Espinosa morre em Haia em 21 de fevereiro de 1677 vítima de tuberculose[3].
Benedicto de Espinosa sempre se preocupou com a questão da religiosidade como instrumento estatal para manobrar a vida do sujeito. Neste sentido, sempre tentou demonstrar que os ditames insculpidos na bíblia nada mais eram do que preceitos políticos visando à perpetuação do povo judeu. Assim, a verdade deveria ser perseguida separadamente dos preceitos religiosos existentes na bíblia. Toda esta discussão custou-lhe perseguições religiosas, como já demonstrado em linhas iniciais.
A obra ‘Tratado da Correção do Intelecto’ (objeto deste estudo), escrita em 1662, traz, em linhas gerais, alguns ensinamentos espinosistas que o autor usaria em outras de suas obras, em especial, em sua mais famosa, denominada ‘Ética’.
Na obra aqui estudada, já em seu início, o autor, ao fazer uma dura crítica ao modo de vida da sociedade em que vivia, entoa que seus contemporâneos sempre elegeram como instrumentos possibilitadores da felicidade suprema as ‘riquezas’, a ‘honra’ e a ‘concupiscência’[4]. Mas salienta Espinosa que este tipo de busca não era salutar, pois cada uma delas distraia a mente impossibilitando-a de pensar em outro bem. Diz o filósofo:
No atinente à libido, a alma é suspensa como se nela pudesse descansar e está impedida ao máximo de cogitar outro bem. De outro lado, após a fruição vem uma extrema tristeza que, se não suspende o pensamento, o perturba e embota. A persecução da honra e da riqueza não absorve menos o espírito; a da riqueza sobretudo, quando buscada por si mesma, pois então se supõe o bem soberano[5].
Neste sentido, para Espinosa, dinheiro, libido e glória só serão úteis quando forem usados como ‘meio’ para se atingir um fim maior[6], diferentemente de usá-los já como o fim a ser buscado, como comumente se vê e se faz.
Em sequência, Espinosa deixa claro o que considera como ‘bem verdadeiro’. Este sumo bem, na visão do filósofo, nada mais seria do que a materialização do conhecimento quando encontra-se unida a mente e a natureza[7]. E para que a mente se una com a natureza, para que o intelecto seja colocado no rumo certo, para que se chegue próximo a perfeição humana, é necessário que o ser humano dedique-se à Filosofia Moral, à Doutrina da Educação Infantil, a Medicina e a Mecânica[8].
Também, para se colocar o intelecto no caminho certo, Espinosa salienta que é necessário que se siga algumas regras de conduta, a saber:
I. pôr nossas palavras ao alcance do vulgo e como ele agir, desde que nada disso nos impeça de atingir nosso escopo; com isso podemos muito ganhar, contanto que nos adaptemos à sua maneira de ver, tanto quanto possível, e assim encontraremos ouvidos bem dispostos a entender a verdade. II. Dos prazeres usufruir somente o que é necessário para a manutenção da saúde; III. Procurar o dinheiro ou outro bem material somente o quanto é necessário para a conservação da vida e da saúde, imitando os costumes da cidade em tudo o que não se opõe ao nosso intento[9].
E ainda, para se corrigir o intelecto (a proposta da obra), o filósofo entoa ser necessário o entendimento dos quatro modos de percepção:
I. temos uma percepção por ouvir dizer (ex auditu) ou por meio de um signo convencional, arbitrário (ad placitum); II. há uma percepção adquirida por experiência vaga, ou seja, por uma experiência que não é determinada pelo intelecto; assim dita porque, tendo sido dada fortuitamente e não sendo contradita por nenhuma outra, permanece como inquebrantável em nós; III. há percepção quando a essência de uma coisa se conclui de outra, mas não é adequada, o que ocorre quando, de um efeito, retiramos a causa ou se conclui, de seu caráter universal, que sempre está acompanhado de suas propriedades; IV. por fim, há percepção quando uma coisa é percebida apenas por sua essência ou pela cognição de sua causa própria[10].
Com efeito, Espinosa usará de outra classificação para eleger o melhor destes modos de percepção, a saber:
I. conhecer exatamente nossa natureza, que desejamos levar à perfeição, e ter da natureza das coisas um conhecimento necessário; II. diferenciar as coisas, em suas conformidades e oposições; III. de modo a conceber retamente o que sofrem; IV. conferi-las com a potência e a natureza dos homens[11].
Após estas explanações, Espinosa elege, como melhor método de percepção, o método da ‘essência’. Diz ele:
Só o quarto modo apreende adequadamente a essência da coisa, e isso sem perigo de erro; eis por que dele nos servimos no mais elevado grau[12].
Salienta o autor que existe uma definição plausível do que seria uma ‘ideia verdadeira’. Para ele:
A ideia verdadeira é algo distinto de seu ideado; uma coisa é o círculo, outra, a ideia do círculo. A ideia do círculo não é um objeto com um centro e uma periferia, como o próprio círculo, nem a ideia do corpo é o próprio corpo. Sendo uma coisa distinta de seu ideado – ela será em si mesma algo de inteligível -, isto é, a ideia, enquanto possui uma essência formal, pode ser o objeto de uma outra essência objetiva e, por sua vez, esta outra essência objetiva, considerada em si mesma, será qualquer coisa real e de inteligível, e assim indefinidamente.[13]
Neste contexto, devemos fazer um esforço para separarmos a ideia verdadeira de outras percepções, impedindo que a mente confunda a ideia verdadeira da que é falsa e duvidosa. No raciocínio, apesar do método estudado não distinguir com clareza o que é verdadeiro do que é falso, ele acaba pavimentando o caminho a ser seguido por meio do raciocínio lógico, ou seja, “o método verdadeiro é o caminho pelo qual a própria verdade, ou a essência objetiva das coisas, ou suas ideias (tudo isso tem o mesmo significado), seja procurada na ordem devida[14].”
Ficou claro que, para Espinosa, a verdade está no mundo, no vivido. Assim, Espinosa traz a verdade para o mundo, para o campo do vivido, ou seja, é o sujeito que constrói a verdade e a produz partindo de seu próprio erro. Uma experiência não pode ser base para alegações de verdade ou não verdade, pois a própria experiência é a verdade. Neste sentido, quanto mais conhecimento o sujeito absorve, mais rica se torna sua visão de mundo e sua percepção trona-se mais refinada.
Referências:
SPINOZA, B. Tratado da Correção do Intelecto. Breve Tratado e outros escritos. Tradução de J. Guinsburg e Newton Cunha. São Paulo: Perspectiva, 2014.
Notas
[1] SPINOZA, 2014, p.14.
[2] SPINOZA, 2014, p.15.
[3] SPINOZA, 2014, p.16/17.
[4] SPINOZA, 2014, p.328.
[5] SPINOZA, 2014, p.328.
[6] SPINOZA, 2014, p.330.
[7] SPINOZA, 2014, p.330/331.
[8] SPINOZA, 2014, p.331.
[9] SPINOZA, 2014, p.332.
[10] SPINOZA, 2014, p.333.
[11] SPINOZA, 2014, p.334.
[12] SPINOZA, 2014, p.335.
[13] SPINOZA, 2014, p.336/337.
[14] SPINOZA, 2014, p.338.