A crise de representatividade no Poder Legislativo e o papel dos partidos políticos

26/04/2019 às 14:18
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O presente artigo apresenta uma exposição sobre a crise de representatividade através dos partidos políticos e seus reflexos o regime democrático no Brasil.

O poder legislativo enfrenta uma espécie de crise institucional, tanto internamente como em face dos outros poderes. Contudo, não podemos dizer que há disfuncionalidade absoluta dos poderes do Estado. Considerando a tradicional divisão das funções de poder, é perceptível que tanto em face do Poder Executivo, quanto em face ao Poder Judiciário, o Legislativo tem tido as suas funções institucionais evanescidas.

No primeiro caso, houve uma perda da sua iniciativa pela captura exercida pelo Poder Executivo nas proposituras legislativas, ou na ampliação do número de medidas provisórias que dispensam a iniciativa parlamentar. No caso de confronto institucional com o Poder Judiciário, a evolução e alargamento das possibilidades de controle jurisdicional de constitucionalidade, sob o manto do ativismo judicial[1], vem desqualificando a atribuição preponderante do legislador na criação do Direito.

Exemplo disso, a criação da terceira hipótese de aborto além dos casos previsto na legislação penal (art. 128) foi resultado de um comportamento substitutivo do Poder Legislativo, que caracteriza o ativismo judicial[2].

Não é possível, aqui neste espaço, apontar as causas dessas distorções ocorridas entre os três poderes.  Importa aqui, apontar algumas das discrepâncias entre representados e representantes no exercício do poder político. Quanto a isto, uma das principais críticas que se faz ao poder legislativo consiste na não correspondência de muitas de suas ações aos anseios da sociedade e que, de outra parte, o mesmo legisla em causa própria, ou seja, cria leis para a autodefesa dos seus membros incorrendo em desvio de finalidade.

Pode-se apontar que estaria ocorrendo, não apenas no Brasil, mas aqui de modo muito mais explícito, uma manipulação das regras formais que fundamenta o Estado Democrático de Direito para criar situações antidemocráticas.

No entanto, não podemos afirmar categoricamente que o legislativo é completamente refém de suas próprias práticas. Entende-se que a sociedade é representada por seus semelhantes sob o aspecto social, político e sob o aspecto antropológico.

Assim sendo, a sociedade que nós temos tem representantes eleitos que são seu reflexo.  De outra parte, os partidos políticos tem um papel preponderante nas democracias representativas que os instituem, no caso do Brasil, como os únicos canais para refletir a opinião pública. E se há ruído na comunicação em meio ao processo de transferência de vontade, entre povo representado e o sistema representativo, isso não ocorreu a partir dos dias atuais e nem as agremiações partidárias estão isentas nesse processo (DUVERGER, 1970, P. 415).

O que pensam e como agem os membros do Congresso Nacional - Câmara dos Deputados e Senado Federal - é de alguma forma, reflexo das formas ideológicas e ações da própria sociedade[3]. E hoje estamos diante de uma sociedade que apresenta pluralidade política, marcando a heterogeneidade, que muitas vezes dificulta o consenso do que seria eticamente imponderável ou deveria ser estabelecido mediante condutas que respeitem a forma republicana de Estado, em conformidade com própria Constituição da República.

Há um dilema nesse contexto, por assim dizer, que é encontrar uma mediação plausível entre a vontade popular e o desempenho dos representantes eleitos.  Não é possível categorizar e ser reducionista em afirmar que o Congresso, sendo composto por pessoas da sociedade, tem uma vinculação com esta, e que ocorre uma relação de causalidade, ou até mesmo uma reflexividade orgânica entre sociedade e parlamento.

  Não é razoável fazer alguma conclusão nesse sentido, pois a existência de um Parlamento em dada sociedade, não significa que a mesma esteja amplamente representada, nem mesmo seja democrática (BOBBIO, 2000), que por sua própria natureza exige pluralidade[4] e diversidade de opiniões. Portanto, e com maior razão, não é possível afirmar que um determinado órgão legislativo esteja sempre em consonância com a vontade popular.

A difícil racionalização da representação do conjunto da sociedade é um dilema que se verifica no reconhecimento das vontades individuais, que devem ser submetidas a um consenso que considera a maioria deliberante como apta às escolhas parlamentares dos membros do legislativo.

Embora a maioria seja uma amostragem que não submete a minoria no processo democrático, a representação, de igual modo, não deveria ficar restrita à escolha de eleitos exclusivamente por meio de partidos. Pois é possível afirmar que entre a dissonância da vontade do povo e a vontade dos membros do Congresso Nacional, existem os partidos políticos, que por si mesmos, são instrumentos que filtram, e muitas vezes excluem demandas da própria sociedade.

Assim sendo, pode-se afirmar que a representação por partidos não inclui todas as tendências políticas das sociedades de massas no século 21.  E o problema de uma crise de representação política possivelmente esteja assentada numa crise de representação orgânica da sociedade por meio dos partidos políticos, que mesmo em nome da democracia não são, em muitos casos, estruturados internamente a partir de processos democráticos. 

Não é possível crer nas mudanças efetivas, em muitos contextos e segmentos sociais, que sejam provocadas apenas por mudanças institucionais, legais. As instituições, para que possam alcançar um grau de admissão perene na sociedade, devem ser construídas com o tempo e adesão espontânea dos membros da comunidade política.

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Creio que a legislação, em seu sentido mais amplo, não tem o condão de promover suficientes mudanças para amainar a crise de representação e a fragilidade da instituição partidária enquanto meio de associação civil. As mudanças na ordem jurídica são importantes, mas de nada adiantará mudanças dessa natureza se a própria sociedade não promover mudanças comportamentais em face ao atual sistema político brasileiro.

Sabe-se que a legislação evoluiu, em certa medida, favoravelmente, mas ainda não é o suficiente. O que pode ser proposto, de modo a procurar corrigir algumas falhas no sistema, entre outras, em consonância com os propósitos democráticos, seria a autorização para candidaturas avulsas, ou seja, candidaturas não vinculadas a partidos políticos como impõe a Constituição da República.

 Além disso, seria recomendável que os próprios segmentos sociais, ideologicamente homogêneos, se organizassem em torno de associações político-partidárias com base em estatutos democráticos, o que teria de ser assegurado por meio de uma Justiça Eleitoral independente.

REFERÊNCIAS:

BALBACHEVSKI, Elisabeth. Stuart Mill: liberdade e representação. In.: WEFFORT, Francisco (Org.). Os clássicos da política. 11 ed. Vol. 2. São Paulo: Ática, 2006, p. 189-199.

BOBBIO. Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

DUVERGER, Maurice. Os partidos políticos. Trad. Cristina Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.

RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2 ed.  São Paulo: Saraiva, 2015.


[1] Em apertada síntese, pode-se afirmar que o ativismo judicial reporta-se a uma disfunção no exercício da função jurisdicional, em detrimento, notadamente da função legislativa, no que por vezes, inconsequentemente tem sido exacerbada a criação judiciária do direito.  Sobre as definições de ativismo judicial, confira (RAMOS, 2015).

[2] No julgamento da ADPF – Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54 , proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores, o STF decidiu que a interrupção da gravidez de feto anencefálico não configura, crime contra a vida,  aborto.

[3] Para melhor compreensão sobre as concepções que buscam explicar a prevalência, no tecido social, do confronto das vontades individualmente consideradas ou em grupo organizados, admitidas como resultado das soma das vontades individuais, como indicador da vontade popular num sistema representativo, confira BALBACHEVSKI (2006, p. 194-5).

[4] Em nossa história recente, durante o Regime Militar instaurado em 1964, a imposição do bipartidarismo afastava, em certa medida, multiplicidade partidária, não necessariamente a pluralidade política, pois mantinha-se através da ARENA e do MDB a representação da sociedade por partidos políticos, além do que, nessas duas legendas coexistiam diversas correntes políticas, que com a abertura democrática e, posteriormente, com a constituição de 1988, foram constituir diversas outras agremiações partidárias. 

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Sobre o autor
Geraldo Batista Junior

Professor Universitário. Bacharel em Direito pela UFCG - Universidade Federal de Campina Grande; Mestre em Direito pela UFPB - Universidade Federal da Paraíba

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