Indulto: aspectos gerais

18/05/2019 às 23:22
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O indulto extingue penas com base em critérios legais e políticos. O benefício atende a critérios humanitários ou privilegia interesses específicos?

Indulto é uma palavra oriunda do latim indultus e remonta ao direito canônico, embora similitudes com o instituto tenham sido observadas em épocas mais remotas. Há variações conceituais e procedimentais no direito internacional comparado. O Código Penal Francês, por exemplo, denomina "graça" (e não indulto) a dispensa da execução da pena (La grâce emporte seulement dispense d'exécuter la peine). Já o art. 130 do Código Penal Espanhol dispõe que a responsabilidade criminal de certo infrator pode se extinguir pelo indulto. Trazendo como referência um país do continente africano, a República de Angola estabelece, no art. 128 do Código Penal, que o indulto extingue a pena, no todo ou em parte, podendo esta ser substituída por outra mais favorável prevista em lei.

No Brasil, o instituto do indulto está previsto desde a primeira Constituição Imperial de 1824. Ao Imperador, no exercício do Poder Moderador, era permitido, nos termos do art. 101, VIII, perdoar e moderar as penas impostas aos réus condenados por sentença. A configuração do indulto adotada pelo Brasil pode ocorrer tanto no modelo individual (graça ou perdão presidencial) como no coletivo (decretos genéricos de indultos).

Na legislação mais recente, o indulto está disposto em três grandes textos normativos: a Constituição da República de 1988, o Código Penal (art. 107, II) e a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84). Como se sabe, por questões de política criminal e razões humanitárias, o indulto é um importante instrumento conferido ao condenado com o objetivo de reintegrá-lo à sociedade e ao dia a dia comunitário. Da mesma forma, busca “atenuar possíveis excessos e incorreções legislativas ou judiciárias, em prol da reinserção e ressocialização de condenados que façam jus às medidas” (Raquel Dodge, n.º 28/2018 – SFCONST/PGR nº 27.907/2018).

A competência para conceder o indulto coletivo é privativa do Presidente da República, por específica previsão constitucional (art. 84, XII). A concessão ocorre mediante decreto presidencial. Geralmente, os decretos genéricos de indultos são expedidos em datas simbólicas, como comemorações de repercussão nacional, a exemplo do Natal. Por isso, o benefício no Brasil é tradicionalmente conhecido como “Indulto Natalino”.

Em linhas gerais, o indulto é um instituto de natureza penal-constitucional e tem por objetivo extinguir a pena de condenados mediante o cumprimento de certos requisitos legais previstos nos decretos expedidos.

Quanto ao indulto individual, o benefício pode ser requerido por petição do condenado, por iniciativa do Ministério Público, do Conselho Penitenciário ou da autoridade administrativa. A petição será entregue ao Conselho Penitenciário para elaboração de parecer e posterior encaminhamento ao Ministério da Justiça. Em seguida, o pedido é submetido ao Presidente da República. Concedido o indulto e anexada aos autos cópia do decreto, o juiz declarará extinta a pena ou ajustará a execução aos termos do decreto, no caso de comutação. No caso de sentenciados beneficiados por indulto coletivo, o juiz declarará extinta a punibilidade dos indultados.

Analisando os diferentes decretos de indulto expedidos nos últimos 20 anos, observa-se que, de 2001 a 2006, a pena máxima para a concessão de indultos era de seis anos, devendo o condenado cumprir, pelo menos, um terço da pena aplicada. De 2007 a 2009, a pena máxima passou para oito anos, mantendo-se a mesma fração de cumprimento. Contudo, de 2010 a 2015, o apenado poderia ser indultado se a pena aplicada não excedesse 12 anos, desde que cumprisse um terço dela. Por fim, em 2017, o decreto conferia ao condenado, com pena não superior a 12 anos e que tivesse cumprido um quarto da sanção imposta, a possibilidade de ser indultado, extinguindo, assim, a sua punibilidade.

Ano

Governo

Pena cumprida

Pena máxima

1999

FHC

1/3

6 anos

2000

FHC

1/3

4 anos

2001

FHC

1/3

6 anos

2002

FHC

1/3

6 anos

2003

Lula

1/3

6 anos

2004

Lula

1/3

6 anos

2005

Lula

1/3

6 anos

2006

Lula

1/3

6 anos

2007

Lula

1/3

8 anos

2008

Lula

1/3

8 anos

2009

Lula

1/3

8 anos

2010

Lula

1/3

12 anos

2011

Dilma

1/3

12 anos

2012

Dilma

1/3

12 anos

2013

Dilma

1/3

12 anos

2014

Dilma

1/3

12 anos

2015

Dilma

1/3

12 anos

2016

Temer

1/4

12 anos

2017

Temer

1/5

sem limite

Fonte: G1 / Procuradoria-Geral da República

Observa-se, portanto, que, para efeito de concessão de indulto, o tempo de cumprimento de pena nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça foi sensivelmente reduzido em 2017.

E quanto ao indulto em relação ao cumprimento da pena de multa?

Em 2015, o indulto alcançava a pena de multa aplicada cumulativamente, e a sua inadimplência, quando cumulada com pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, não impedia a concessão. Em 2016, a pena de multa, aplicada cumulativamente ou não com a pena privativa de liberdade ou restritiva de direitos, passou a não ser alcançada pelo indulto. Entretanto, o benefício continuava sendo concedido independentemente do pagamento da pena pecuniária, que poderia ser objeto de execução fiscal após inscrição em dívida ativa.

Em 21 de dezembro de 2017, com a promulgação do Decreto Presidencial nº 9.246, que alterou alguns dispositivos dos decretos anteriores, a abrangência do mecanismo do indulto foi significativamente ampliada, gerando acirradas discussões, especialmente em relação à aplicação da medida a crimes econômicos. Nos termos do Decreto nº 9.246, o indulto pode ser concedido em relação à pena de multa aplicada cumulativamente, ainda que haja inadimplência ou inscrição de débitos na Dívida Ativa da União. Da mesma forma, conforme o texto legal, o benefício pode ser concedido independentemente do pagamento da multa ou de qualquer outra condenação pecuniária.

Diante dessas alterações, a Procuradoria Geral da República ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº 5.874) questionando, dentre outros pontos, as limitações constitucionais à concessão de indulto, a comutação de penas concedida por ato do Presidente da República e, em especial, os dispositivos que permitem a concessão do benefício nas seguintes hipóteses:

  • Mediante o cumprimento de um quinto da pena nos crimes praticados sem grave ameaça ou violência;

  • Mediante o cumprimento de um sexto da pena;

  • A condenados que já receberam outros benefícios no curso da execução penal;

  • Para a pena de multa;

  • A presos que não foram julgados em definitivo; dentre outras circunstâncias.

A discussão, iniciada em 2018 no Plenário da Suprema Corte, foi suspensa em novembro do mesmo ano e culminou no julgamento proferido em 09 de maio de 2019. Por maioria, o Plenário do STF julgou improcedente o pedido contido na ação, reconhecendo a constitucionalidade do Decreto nº 9.246, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes. Nesse julgamento, foram vencidos os Ministros Relator Roberto Barroso, Ministra Cármen Lúcia e os Ministros Edson Fachin e Luiz Fux.

O voto divergente do Ministro Relator centrou-se no seguinte entendimento: “(...) excluir do âmbito de incidência do indulto natalino os crimes de peculato, concussão, corrupção passiva, corrupção ativa, tráfico de influência, os praticados contra o sistema financeiro nacional, os previstos na Lei de Licitações e os crimes de lavagem de dinheiro”. Além disso, ele considerou inconstitucional o dispositivo que estende o perdão à pena de multa, salvo em casos em que ficar demonstrada a extrema insuficiência de recursos do condenado.

Para o Ministério Público Federal, o Decreto nº 9.246/17 “(...) não demonstrou a razão de fato e de direito a justificar os benefícios concedidos, que é a modificação pontual de casos específicos e peculiares que apresentem alguma razão humanitária ou de eventual correção de iniquidade da sentença pelo excessivo rigor da norma penal (...)”. Ainda segundo a manifestação ministerial, a concessão do indulto genérico previsto no decreto seria: “excessivamente abrangente, visando extinguir 80% (oitenta por cento) da pena de criminosos devidamente sentenciados e condenados pelo Poder Judiciário, segundo os parâmetros constitucionais e legais vigentes, editados pelo Poder Legislativo”.

Entretanto, o entendimento majoritário do Plenário do STF foi no sentido de que o Poder Judiciário pode analisar somente a constitucionalidade da concessão da clemência, e não o mérito. O Presidente da República possui juízo de conveniência e oportunidade para decidir, dentre as hipóteses legais e moralmente admissíveis, aquela que entender como a mais adequada ao interesse público.

Nas palavras do STF:

"Com o devido respeito às posições em contrário, não compete ao Supremo Tribunal Federal reescrever o decreto de indulto, pois, ou o Presidente da República extrapolou o exercício de sua discricionariedade, e, consequentemente, a norma é inconstitucional; ou, entre as várias opções constitucionalmente lícitas, o Presidente da República escolheu validamente uma delas, e, consequentemente, esta opção válida não poderá ser substituída por uma escolha discricionária do Poder Judiciário, mesmo que possa parecer melhor, mais técnica ou mais justa." (ADI 5.874 / DF, p. 30)

Deslocando tais reflexões teóricas para o ambiente da práxis jurídica penal diária e analisando a aplicação do indulto presidencial nos últimos 20 anos, é pertinente questionar: o “perfil” dos acusados e condenados do sistema de justiça criminal brasileiro se alterou, modificando, por consequência, a forma de tratamento penal?

Como se sabe, o sistema de justiça que se reconhece no Brasil “é aquele que – até hoje – imuniza categorias sociais inteiras de acusações, havendo uma relação paradoxal ou negativa entre o cidadão e a lei e entre a lei e a possibilidade de retribuição social” (DaMatta, 2006, p. 108). Segundo DaMatta, a duplicidade ética, representada pela figura de uma lei impessoal que supostamente valeria para todos, mas que, na prática, não se aplicaria a certas pessoas, faz com que a relação entre a norma legal e a sociedade brasileira seja marcada pela ambiguidade. Assim, as pessoas consideradas “mais importantes” no cenário nacional se colocariam acima da lei, podendo se justificar com o simples argumento do “eu não sabia”.

De um lado, temos o cumpridor da lei, que representa a dimensão igualitária e o procedimento mais transparente da vida social moderna; de outro, entretanto, temos a possibilidade real e legal de introduzir nos ideais de justiça a seguinte verdade: fulano ou sicrano podem dispensar a aplicação da lei (DaMatta, 2006, p. 108).

A princípio, o sistema parece conduzir todos para o mesmo patamar idealizado da igualdade. No entanto, ao fim e ao cabo, as pessoas se apresentam separadas e hierarquizadas. Essa igualdade jurídica, associada à desigualdade de tratamento, repercute sobremaneira no processo penal. Isso porque, em um sistema de desigualdade jurídica em que garantias são parcamente aplicadas e parcelas dominantes da pirâmide social são imunizadas, sistemas penais vigorosos somente interessam àqueles que exploram o delito, ampliando ainda mais as desigualdades.

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Quantos foram os indultados em 2009, 2010 ou mesmo em anos anteriores? Qual era a abrangência máxima da pena para a concessão do indulto? Crimes com pena máxima não superior a quatro anos sempre foram reconhecidos como de média potencialidade. Por essa razão, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, prevista no art. 44 do Código Penal, assim como a progressão no cumprimento da pena para um regime menos rigoroso, nos termos do art. 33 do mesmo diploma legal, sempre orientaram a aplicação de benefícios, como o indulto.

Ao longo dos anos, parece evidente que a avaliação dos condenados beneficiados pelo indulto sofreu consideráveis modificações. Ao que tudo indica, os critérios para indultar sentenciados foram se alterando de acordo com a natureza do crime, a quantidade de tempo cumprido e, sobretudo, o momento político e social, não necessariamente por razões humanitárias. Nesse sentido, é pertinente a lembrança de Lenio Streck, ao trazer a referência do filósofo mexicano José Jesús de la Torre Rangel, que, ao retratar a condição do camponês salvadorenho, afirmou: “La ley es como la serpiente; solo pica a los descalzos” ("A lei é como a serpente; só pica os descalços"). Essa reflexão ilustra como as desigualdades sociais e jurídicas perpetuam disparidades na aplicação do sistema penal.

Todas essas circunstâncias, especialmente levantadas neste breve artigo, precisam ser profundamente avaliadas. Há algo nessa balança que há muito tempo precisa ser alterado.

Evidentemente, é preciso destacar que essas observações não buscam defender qualquer tipo de refreamento das garantias constitucionais àqueles que se encontram em situações privilegiadas. O sentido dessas reflexões é, na verdade, outro: buscar a efetivação de um sistema de garantias processuais que seja aplicado de forma ampla e igualitária a todos os cidadãos, revigorando essas garantias e assegurando a sua prática.

Dessa forma, resta uma indagação essencial para reflexão: o indulto é realmente destinado a quem precisa? Ou, afinal, quem precisa de indulto?


Referências

AGUIAR BRITTO, Cláudia. Processo penal comunicativo. Comunicação processual à luz da filosofia de Jürgen Habermas. SC: Juruá. 2014

DA MATTA, Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DODGE, Raquel. n.º 28/2018 – SFCONST/PGR ..nº 27.907/2018. ADIN)

GORRILHAS, Luciano; AGUIAR BRITTO, Cláudia. Polícia Judiciária Militar e sesu desafios. SC; Nuria Fabris, 2017.

STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (em) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. Rio Grande do Sul: Livraria do Advogado, 2011.

ADIN nº 5874


Nota

1 https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=313902271&ext=.pdf).

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Sobre a autora
Claudia Aguiar Britto

Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos. Universidade de Coimbra. IGC. Mestre em Ciências Penas. Doutora Direito Público (Processo Penal). Especialista em Direito Penal Militar. Advogada Criminalista. Professora Universitária.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Texto similar disponível na coluna “Observatório jurídico” . Unifeso.

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