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Indivíduo e pessoa:

reconhecimento, consideração e sua relação com o Direito

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16/10/2005 às 00:00
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V – Considerações finais

            Enfim, não estamos requerendo que a cada desconsideração que sofremos no nosso dia-a-dia o direito nos socorra por meio de uma previsão legal. No entanto, para operacionalizar as questões levantadas aqui, gostaríamos de defender que os casos que chegam aos operadores do mundo do direito deveriam ser analisados na sua completude, ou seja, o que a parte traz? O que é realmente importante em toda a questão? Qual a origem do problema? Em que circunstância se deu a experiência mal-sucedida? Que tipo de relacionamento havia entre as partes na eclosão do conflito? Perguntas como essas são inevitáveis pelas partes presentes numa audiência judicial em qualquer vara. No entanto, a singularidade da faculdade de assistência de um advogado faz com que essas questões "embutidas" [09] na causa sejam mais evidentes em um Juizado Especial (seja na tentativa conciliatória, seja a audiência de Instrução e Julgamento).

            Certamente, o curso de direito não nos prepara a enxergar todo o conflito (é certo também que o direito não possui essa pretensão), mas a experiência de um Juizado Especial não nos deixa incólumes a essas questões. Sob pena de responder aos jurisdicionados com um déficit de sentido, ou seja, o que é apresentado ao Judiciário não corresponde à resposta que dele se obtém.

            Como foi visto acima (II) em Habermas, a história levou o direito burocrático-racional (Max Weber), em seu processo civilizatório moderno, a se abstrair de questões pessoais. Essa idéia, contextualizada com a passagem da honra à dignidade de Charles Taylor, nos descortina uma visão do direito atual de uma forma muito mais clara. Estamos repletos de exemplos nos quais a utilização do espaço público para fins pessoais gera toda espécie de iniqüidade possível. O simples fato de "furar uma fila" alegando que não tem tempo, está-se dizendo que o seu problema pessoal é maior que o de todas as pessoas que estão ali esperando (e podem também ter outras prioridades pessoais). A corrupção nada mais é do que a imersão da vida privada no espaço público. O que há de comum nesses dois exemplos de iniqüidade é que a pessoa (com uma história de vida e, sobretudo, com relações pessoais importantes) surge em uma circunstância em que deveria estar o indivíduo impessoal e abstrato (esse que é visado pelo direito racional) que ocupa a esfera pública da vida em sociedade.

            Ocorre que o filtro do direito, que delimita o que é juridicamente relevante, em várias situações, não reconhece uma importante esfera simbólica da relação social. Em outros termos, o que compreende o conceito de reconhecimento não corresponde às delimitações legais. Não é à toa que um dos instrumentos de trabalho mais usados dentro do campo do direito é a "redução a termo". O que defendemos é que levar essas questões pessoais trazidas pelas partes para ser apreciadas pelo Poder Judiciário não significa um déficit de modernidade [10] para a ocasião.

            De alguma forma, a humanização do direito requer a análise não de uma pessoa no sentido técnico, impessoal e quase asséptico, mas de uma pessoa sociologicamente construída e reconhecida como alguém que merece reconhecimento e consideração, no sentido dado por Charles Taylor.


V – Referências Bibliográficas

            ALVES, Juliano Vieira. Juizados Especiais Cíveis do Paranoá: Pessoalidade e Impessoalidade nos interstícios do Estado. Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília – UnB, 2003.

            CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito Legal e insulto moral: dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

            DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. Amar se aprende amando. Rio de Janeiro/São Paulo, Editora Record, 1987.

            MARTINS-COSTA, Judith. "Os danos à pessoa no direito brasileiro e a natureza da sua reparação" Revista dos Tribunais, vol. 789, ano 90:21-47, 2001.

            MONTEIRO, Washington de Barros. (1999). Curso de Direito Civil: direitos das obrigações. 1ª parte. 30ª ed., São Paulo, Saraiva.

            PEREIRA, Caio Mário da Silva (1997). Instituições de Direito Civil. Vol. II. Teoria Geral das Obrigações. 15ª ed., Rio de Janeiro, Forense.

            SOUZA, Jessé. Patologias da modernidade: Um diálogo entre Habermas e Weber. São Paulo: Annablume, 1997.

            _____. "Charles Taylor e a teoria crítica do reconhecimento" in ______. A modernização seletiva: Uma interpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora da UnB, 2000.

            SHAKESPEARE, William. O Mercador de Veneza. Disponível em . Acesso em 16.06.2002.

            TAYLOR, Charles "The Politics of Recognition". In Amy Gutmann (ed.) Multiculturalism. Princeton, Princeton University Press, 1994.

            ______. The Ethics of Authenticity. Cambridge, Harvard University Press, 1997.

            VENÂNCIO, Giselle Martins. "Presentes de papel: cultura e sociabilidade na correspondência de Oliveira Vianna". Estudos Históricos. Rio de Janeiro, n. 28, 2001, p. 23-47.


Notas

            01

Cuida-se de um processo que tramitou na Primeira Vara do Juizado Especial de Competência Geral do Paranoá, no 1º semestre de 2003.

            02

"A flor e a náusea"

            03

"O correio de amigos é doçura"

            04

Como não se tem pretensão de abordar esse tema, remete-se o leitor à obra de Charles Taylor (1994).

            05

Shakespeare não é utilizado aqui á toa. Taylor afirma que a problematização do conceito de reconhecimento a partir do século XVIII, sendo que "O Mercador..." foi escrito no fim do século XVI, o que, definitivamente, não invalida a descoberta de Charles Taylor.

            06

Mesmo em uma Vara de Família, onde questões de ordem moral são levantadas a todo momento no processo, são casos construídos por operadores do direito.

            07

Em uma conversa mui simpática com a doutora Judith Martins-Costa, professora da Faculdade de Direito da UFRGS, quando escrevia a dissertação (Alves, 2003), ela perguntou: "Você se fixou em autores tão medianos e ultrapassados por uma razão especial – para denotar o senso comum dos juristas?". Para justificar sua utilização, digo que são esses os autores que me são recomendados por meus professores de direito. Além da faculdade em que estudo (AEUDF) esses autores também são utilizados, no DF, pelo menos nas seguintes Faculdades de Direito: IESB e CEUB.

            08

Trata-se do rol taxativo da Constituição brasileira, que é previsto no artigo 5º, inciso X: "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação".

            09

Termo cunhado por Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2002).

            10

O argumento completo pode ser visto em Alves (2003). Esse conceito foi tomado de Luís Roberto Cardoso de Oliveira e de Roberto Kant de Lima.
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Sobre o autor
Juliano Vieira Alves

servidor do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, mestre em Sociologia e bacharelando em Direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Juliano Vieira. Indivíduo e pessoa:: reconhecimento, consideração e sua relação com o Direito. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 835, 16 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7422. Acesso em: 28 mar. 2024.

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