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A história dos direitos sociais

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29/10/2005 às 00:00
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Os direitos sociais na Constituição

Somente um forte lobby de escritórios de advocacia sobre os constituintes pode explicar um capítulo tão infeliz da nossa lei fundamental. Em 1987 já existiam as grandes encíclicas sociais: Rerum Novarum (1891), Quadragesimo Anno (1931), Mater et Magistra (1961), Pacem in Terris (1963), Gaudium et Spes (1965), Populorum Progressio (1967), Octogesima Adveniens (1971), Laborem Exercens (1981) e Sollicitudo Rei Socialis (1987). O artigo 7º desconhece a nova questão social, que passa pela urbanização, o lugar da mulher, a juventude, o meio ambiente, a eletrônica, a automação e seus produtos, os emigrantes, o analfabetismo, o desemprego, o terrorismo, os refugiados e tantos outros problemas. A Assembléia Nacional Constituinte não foi a dos nossos sonhos.

O artigo 6º define o trabalho como direito social. A Constituição não conferiu uma garantia absoluta do emprego – protege essa relação “contra despedida arbitrária ou sem justa causa”, nos termos de lei complementar inexistente (art. 7º, I). O FGTS é uma espécie de patrimônio individual do trabalhador, e o aviso prévio (XXI) possibilita-lhe a obtenção de outro emprego antes do desligamento definitivo da empresa.

As situações dignas de trabalho constituem objetivos dos direitos dos trabalhadores, para alcançarem a melhoria de sua condição social (art. 7º, caput). Foram prestigiadas pela Constituição as relações coletivas de trabalho, ao afirmar a autonomia sindical (art. 8º) e assegurar o direito de greve (art. 9º), podendo ser alterados muitos direitos, como irredutibilidade de salário, compensação de horário e redução da jornada de trabalho e jornada em turnos ininterruptos de revezamento (art. 7º, VI, XIII e XIV). Na fixação do salário, são oferecidos (ainda no art. 7º) várias regras e modos de ser: a) salário mínimo (IV); b) piso salarial proporcional à complexidade do trabalho (V); c) salário nunca inferior ao mínimo (VII); d) décimo terceiro salário (VIII); e) remuneração do trabalho noturno superior à do diurno (IX); f) salário-família (XII); g) remuneração do serviço extraordinário superior em cinqüenta por cento à do trabalho normal (XVI); adicional para as atividades penosas, insalubres ou perigosas (XXIII). Na proteção do salário consta que: a) ele é irredutível (VI); b) e considerada crime a sua retenção dolosa (X), o que caracteriza apropriação indébita.

A inatividade do trabalhador é assim assegurada: a) repouso semanal remunerado (XV); b) gozo de férias anuais (XVII); c) licença à gestante (XVIII); d) licença-paternidade (XIX).

As hipóteses de proteção dos trabalhadores foram ampliadas: a) a proteção do mercado de trabalho da mulher (XX); b) a segurança do trabalho (XXII); c) proteção em face da automação (XXVII); d) seguro contra acidentes de trabalho (XXVIII); e) proteção destinada ao trabalhador avulso (XXXIV).

Entre os direitos dos trabalhadores há uns que são destinados a seus dependentes – é o caso do salário-família para os dependentes do trabalhador de baixa renda (XII). Maior importância social é o previsto no inciso XXV, pelo qual é assegurada a assistência gratuita aos filhos e dependentes do trabalhador, desde o nascimento até os seis anos de idade, em creches e pré-escolas.

A participação nos lucros das empresas (XI) é um reconhecimento de que os trabalhadores são elementos exteriores à empresa, como uma força de trabalho adquirida por salário, esperando-se que ele venha a ser condizente com a condição de dignidade da pessoa humana (arts. 1º, III e 170). A norma sugere a participação nos lucros ou nos resultados; trata-se de promessa constitucional que existe desde 1946, e a sua regulamentação (Lei nº 10.101/2000) não passa de típica legislação simbólica, destinada apenas a dar satisfação política aos destinatários da norma constitucional. A participação na gestão das empresas, no entanto, só ocorrerá quando a coletividade trabalhadora da empresa, por si ou por uma comissão, dispuser de algum poder de co-decisão ou pelo menos de controle. Vale dizer que os conselhos ou comissões de fábrica ou de empresa não hão de substituir os sindicatos, mas de agir nos seus quadros, pelo que a participação na gestão e nos lucros da empresa precisa estar acoplada às convenções coletivas de trabalho, ao fortalecimento da estrutura sindical.

Alguns anteprojetos, na Assembléia Nacional Constituinte, contemplavam, em capítulo separado, os direitos coletivos. Infelizmente isso foi supresso, e os direitos coletivos dos trabalhadores passaram a integrar os direitos sociais.

O artigo 8º da Constituição menciona dois tipos de associação: a profissional e a sindical. A sindical defende os direitos e interesses da categoria, participa de negociações coletivas de trabalho e celebra convenções e acordos coletivos, elege ou designa representantes e impõe contribuições a todos os que participam das categorias representativas; a profissional limita-se a estudar, defender e coordenar os interesses econômicos e profissionais de seus associados.

Os sindicatos gozam de inteira liberdade de fundação (art. 8º, I), pois até os servidores públicos possuem o direito de livre sindicalização (art. 37, VI). A liberdade sindical é um direito autônomo conquistado. Implica: a) liberdade de fundação, sem formalismos; b) liberdade de adesão, podendo os interessados aderir ao sindicato ou dele desligar-se (art. 8º, V); c) liberdade de atuação, perseguindo seus fins livremente; d) liberdade de filiação, com autorização da fixação de contribuição para custeio do sistema confederativo (art. 8º, IV).

A participação nas negociações coletivas de trabalho é uma prerrogativa importante, pois os sindicalistas podem representar a categoria, perante as autoridades administrativas e judiciárias, para celebrar convenções coletivas de trabalho, hoje participação obrigatória (art. 8º, VI).

A contribuição sindical (art. 8º, IV) é aquela "descontada em folha, para custeio do sistema confederativo da representação sindical respectiva"; outra, de caráter parafiscal, compulsória, é aquela utilizada na execução de programas sociais de interesse das categorias representadas (ADCT 10, §2º).

Quanto à pluralidade e unicidade sindical, a Constituição optou pela unicidade, vedando "a criação de mais de uma organização sindical" (art. 8º, II). A doutrina constitucionalista moderna defende, entretanto, a idéia de rever essa posição, para adotar a pluralidade sindical, para observar melhor a sua liberdade e realizar o pluralismo político.

A greve, para Giulano Mazzoni (Relações Coletivas do Trabalho, p. 223-224), é a abstenção coletiva concertada, ou seja, o exercício de um poder de fato dos trabalhadores – instrumento para a realização de melhores condições de trabalho para toda a categoria profissional envolvida. É um direito fundamental de natureza instrumental, como recurso de última instância para a concretização de seus direitos e interesses.

O direito de greve (art. 9º) é constitucional, não subordinado a eventual previsão em lei. Os trabalhadores podem decretar greves reivindicatórias, objetivando melhoria das situações de trabalho; greves de solidariedade, em apoio a outras categorias ou grupos reprimidos; greves políticas, buscando as transformações socioeconômicas que a sociedade requeira; e greves de protesto.

Só cabe à lei definir os serviços ou atividades essenciais (art. 9º, § 1º), ficando os responsáveis pelos abusos sujeitos às penas da lei (art. 9º, § 2º). O constituinte, no entanto, não teve coragem de admitir esse amplo direito aos servidores públicos, exercício submetido aos termos e limites definidos em lei específica (art. 37, VII).

Os direitos de substituição processual é conferido aos sindicatos, de ingressar em juízo em defesa de direitos e interesses coletivos individuais da categoria – atribuição inusitada, de extraordinário alcance social. O direito de participação laboral (art.10) não é típico dos trabalhadores, porque cabe também aos empregadores; é direito coletivo de natureza social, sendo "assegurada a participação dos trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão".

Na Constituição não se conseguiu muito em matéria de delegado de fábrica. O art. 11 garante, "nas empresas com mais de duzentos empregados... a eleição de um representante destes com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores". As comissões de fábrica não foram reconhecidas, em nível constitucional. A idéia foi abandonada, mas, por certo não está proibida.

A liberdade de instituição sindical, o direito de greve, o contrato coletivo de trabalho, a co-gestão ou autogestão e o direito de obter um emprego entram na categoria de direitos sociais do homem produtor (arts. 7º a 11). No entanto, os direitos à saúde e à segurança social e material, o desenvolvimento intelectual, o igual acesso das crianças e adultos à instrução, à formação profissional e à cultura e, ainda, a garantia ao desenvolvimento da família enquadram-se na categoria dos direitos sociais do homem consumidor.

José Manuel Almansa Pastor, em Derecho a la Seguridad Social, v. I, p. 75-77, enumera alguns princípios básicos sobre os quais deve repousar a seguridade social: a) universalidade subjetiva, não só para trabalhadores e seus dependentes, mas para todos, indistintamente; b) universalidade objetiva, não só reparadora, mas preventiva do surgimento da necessidade, protetora em qualquer circunstância; c) igualdade protetora, proteção idêntica em função das mesmas necessidades; d) unidade de gestão, só administrada e outorgada pelo Estado; e) solidariedade financeira, pois os meios financeiros procedem de contribuições gerais.

A Constituição acolheu um conceito aproximativo desses objetivos, definindo a seguridade social como "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social" (art. 194), ao estabelecer seus objetivos (art. 194, parágrafo único) e o sistema de seu financiamento (art.195).

É impressionante como o direito à saúde, bem extraordinariamente relevante à vida humana, só agora foi elevado à condição de direito fundamental do homem. O nosso direito constitucional anterior dava competência à União para legislar sobre defesa e proteção da saúde, mas isso significava organização administrativa de combate às endemias e epidemias. Agora não, é um direito do homem: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação", serviços e ações que são "de relevância pública" (arts.196 e 197).

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Trata-se, pois, de um direito positivo (arts. 198 a 200) "...que exige prestações de Estado e que impõe aos entes públicos a realização de determinadas tarefas... de cujo cumprimento depende a própria realização do direito", no dizer de J. J. Gomes Canotilho e Vidal Moreira, em Constituição da República portuguesa anotada, 3.ed. p. 342.

O direito à previdência social diz respeito à seguridade social. Manifestação desta, tende a ultrapassar a mera concepção de instituição do "Estado providência" (welfare state), sem assumir características socializantes.

A Constituição deu diretrizes mais precisas aos direitos de previdência social (arts. 201 e 202). Funda-se no princípio do seguro social, de sorte que os benefícios e serviços se destinam a cobrir eventos de doença, invalidez, morte, velhice e reclusão, apenas do segurado e seus dependentes.

O regime de previdência social engloba prestações de dois tipos: 1) os benefícios, que são prestações pecuniárias, consistentes: a) na aposentadoria, por invalidez (não incluída no § 7º do art. 201, mas sugerida no inciso I desse artigo), por velhice, por tempo de contribuição, especial e proporcional (art. 201, §§ 7º e 8º); b) no auxílio por doença, maternidade, reclusão e funeral (art. 201, I a V); c) no seguro-desemprego (arts. 7º, II, 201, III, e 239); d) na pensão por morte do segurado (art. 201, V); e 2) os serviços, que são prestações assistenciais: médica, farmacêutica, odontológica, hospitalar, social e de reeducação ou readaptação funcional.

O direito à assistência social é a face universalizadora da seguridade social, que "será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição..." (art. 203). Nela assenta a solidariedade financeira, uma vez que os recursos vêm do orçamento geral da seguridade social e não de contribuições específicas de eventuais destinatários (art. 204), até porque estes são personalíssimos, os desvalidos em geral.

É aí que se situa "a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados" destacada pelo art. 6º como um direito social, sem guardar harmonia com os arts. 194 e 203, reveladores do instituto da assistência social, compreendendo vários objetos e não só aqueles mencionados no art. 6º.

A ordem constitucional da cultura é o conjunto de normas que contêm referências culturais e disposições que consubstanciam os direitos sociais relativos à educação e à cultura. É uma expressão criadora da pessoa e das projeções do espírito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de alusões à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (arts. 5º, IX, 23, III a V, 24, VII a IX, 30, IX, e 215-216).

Os objetivos básicos da educação são: a) pleno desenvolvimento da pessoa; b) preparo da pessoa para o exercício da cidadania; c) qualificação da pessoa para o trabalho (art. 205). Isso só se realiza num sistema educacional democrático em que a escola concretize o direito de ensino, informado pela universalidade (ensino para todos), igualdade, pluralismo, gratuidade do ensino público, valorização dos respectivos profissionais, gestão democrática da escola e padrão de qualidade (art. 206).

Se a educação é direito de todos (arts. 6º e 205), ela é elevada ao nível dos direitos fundamentais do homem. Essa norma (arts. 205 e 227) significa que o Estado tem de se aparelhar para oferecer ensino de acordo com os princípios constitucionais (art. 206). A iniciativa privada, nesse campo, é meramente secundária e condicionada (arts. 209 e 213), em face da preferência constitucional pelo ensino público.

Os direitos culturais, esquecidos no art. 6º, foram explicitados no art. 215, pois "o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais" – trata-se de direitos informados pela universalidade, isto é, direitos garantidos a todos.

O direito à moradia (art. 6º) significa ocupar um lugar como residência, uma casa, apartamento etc., para nele habitar. No morar há a idéia da habitualidade no permanecer ocupando uma edificação; sua correlação com o residir e o habitar tem a mesma conotação de permanecer ocupando um lugar permanentemente. O verbo latino moror, morari significa demorar, ficar, donde se conclui que se quer garantir a todos um teto onde se abriguem com a família, de modo permanente.

O cidadão tem direito de obter uma moradia digna e adequada, pois é legítima a pretensão do seu titular à realização do direito por via positiva do Estado (art. 3º).

A natureza social do direito ao lazer (art. 6º) decorre do fato de que constituem prestações estatais que interferem com as condições de trabalho e com a qualidade de vida. Fora a ligeira referência no art. 227, a Constituição nada mais diz desse direito, pois o associa aos direitos dos trabalhadores relativos ao repouso.

O direito ao meio ambiente, não previsto no art. 6º, integra o Título VIII – Da Ordem Social, pois "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações" (art. 225).

A proteção à maternidade e à infância está prevista no art. 6º como direito social. Aparece também como aspecto do direito de previdência social (art. 201, II: "proteção à maternidade, especialmente à gestante") e do direito de assistência social (art. 203, I: "proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice"; e II: "amparo às crianças e adolescentes carentes").

Esse direito social também figura no Capítulo VII – Da Família, da Criança, do Adolescente e do Idoso (arts. 226 a 230). Alguns desses direitos sociais são reconhecidos só à criança e ao adolescente, como direito à profissionalização, à convivência familiar e comunitária e a regras especiais dos direitos previdenciários e trabalhistas (art. 227, § 3º, I a III).

Os direitos dos idosos, não incluídos no art. 6º, como direito social, certamente têm essa natureza: eles integram o direito previdenciário (art. 201, I), que se realiza basicamente pela aposentadoria, e o direito assistencial (art. 203, I), como forma protetora da velhice, incluindo a garantia de pagamento de um salário mínimo mensal, quando ele não possuir meios de prover a própria subsistência.

O amparo à velhice vai um pouco mais longe. O art. 230 dispõe que "a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida", bem como a gratuidade dos transportes coletivos urbanos e, tanto quanto possível, a convivência em seus lares (§§ 1º e 2º).

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Sobre o autor
Máriton Silva Lima

Advogado militante no Rio de Janeiro, constitucionalista, filósofo, professor de Português e de Latim. Cursou, de janeiro a maio de 2014, Constitutional Law na plataforma de ensino Coursera, ministrado por Akhil Reed Amar, possuidor do título magno de Sterling Professor of Law and Political Science na Universidade de Yale.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Máriton Silva. A história dos direitos sociais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 848, 29 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7434. Acesso em: 26 abr. 2024.

Mais informações

Texto baseado em série de 24 artigos publicados no periódico "Jornal da Cidade", de Caxias (MA), entre outubro de 2003 e março de 2004.

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