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A não-idéia de Justiça em Hans Kelsen

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18/10/2005 às 00:00
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4. Noções de justiça: as fórmulas vazias de conteúdo

            Hans Kelsen revela uma crítica mordaz aos critérios de justiça, demonstrando quão vazios são de conteúdo fórmulas mágicas para a solução do problema, evidenciando a dificuldade de se estabelecer um conceito, além uniforme e absoluto, concreto.

            Assim, começa Kelsen criticando a fórmula do suum cuique, segundo a qual deve-se dar a cada um o que é seu, ou seja, o que lhe é devido. Kelsen demonstra que o modelo de justiça do suum cuique é completamente desprovido de concretude, suscitando a pergunta: o que há de ser dado a cada um? O que é que é devido a cada qual? A fórmula não responde a tal pergunta, levando a regra a uma tautologia.

            O complemento da fórmula exige uma ordem normativa que determine o que é devido a cada um, que confira o direito a cada qual. Ora, segundo Kelsen, "qualquer que seja essa ordem normativa, quaisquer que sejam os deveres e direitos que ela estatua, particularmente, qualquer quer seja a ordem jurídica positiva, ela corresponde à norma de justiça do suum cuique e, conseqüentemente, pode ser estimada como justa". [15]Não temos um elemento concreto, definidor da ordem justa, do que é o justo, temos tão-só uma fórmula, não preenchida, esperando seu complemento, podendo dar validade, portanto, a qualquer ordem normativa e a seu respectivo ideal de justo.

            Outra fórmula muito utilizada é a chamada regra de ouro, segundo a qual "não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". Tal regra pode traduzir o seguinte princípio da justiça: devemos tratar os outros tal como gostaríamos de ser tratados.

            Para Kelsen a regra de outro apresenta o mesmo problema da regra anterior. Ora, segundo o filósofo, e parece óbvio, a regra pode levar a resultados não pretendidos. Assim, tomada ao pé da letra, ninguém gostaria de ser punido quando cometesse um delito, e a regra poderia ser utilizada permitindo que todos não fossem punidos.

            Quando a regra de ouro postula que qualquer um de nós trate os outros como subjetivamente deseja ser tratado por eles, pressupõe-se evidentemente que outros também desejam ser tratados assim. O problema é que não há um conceito absoluto do bom, e os homens divergem naquilo que desejam, sendo impossível alcançar a harmonia social com a aplicação da regra de ouro. É evidente que daí nasce o conflito, tornando-se indispensável completar a fórmula com aquilo que é desejável. Estamos diante de mais uma fórmula vazia de conteúdo.

            Assim, para Kelsen: "Se a regra de ouro é tomada literalmente, se cada pessoa deve tratar as outras da forma, e apenas da forma, como deseja ser tratada, quer dizer, se para a justificação de uma ordem social é decisivo um critério subjetivo, então não é possível moral nem ordem jurídica". [16] E mais adiante, conclui: "Tal como acontece com a fórmula do suum cuique, também com a regra de ouro se harmoniza toda e qualquer ordem social, especialmente, toda e qualquer ordem jurídica positiva". [17]

            Muito próxima da regra de ouro é o imperativo categórico kantiano, com a seguinte fórmula: "Age sempre de tal modo que a máxima do teu agir possa por ti ser querida como lei universal". A regra é tida mais como uma máxima moral, uma lei universal da moral, mas pode ser pensado, e é pensado também, como um princípio de justiça.

            Ocorre aqui a questão já divisada nas outras fórmulas, ou seja, a máxima do agir pode naturalmente ser uma ação negativa, ou subjetivamente entendida, com grande amplitude, com um teor de negatividade como, por exemplo, por fim à própria vida, cometendo suicídio. Segundo Kant, tal máxima não poderia ser tida como lei universal, porque contraditória em si, a máxima do não-viver. Ora, a regra não coloca obstáculo para a eleição do agir máximo, não há qualquer freio ou contrapeso, portanto, não se pode negar que o suicídio poderia ser uma máxima universal. Temos aqui uma regra de justiça?

            Equivale a dizer que Kant, como em inúmeros outros exemplos apresentados por Kelsen, pressupõe um querer máximo ideal, subjetivamente entendido como bom para preencher a sua fórmula. Qualquer querer tido por prejudicial deveria ser afastado do imperativo categórico por contradição. No entanto, como já se disse, tal contradição é o filósofo Kant quem estabelece. É indispensável uma pressuposição. Nesse sentido, a fórmula, conquanto interessante como regra do jogo, não traz o elemento diferenciador do justo.

            Como diz Kelsen: "atua segundo uma máxima da qual devas querer que ela se transforme numa lei universal. Mas, de que máxima eu devo querer e de que máxima eu não devo querer que ela se torne uma lei universal? A esta questão o imperativo categórico não dá nenhuma resposta". [18]Para mais à frente, concluir quanto ao imperativo categórico: "Tal como o princípio do suum cuique ou a regra de outro, também o imperativo categórico pressupõe a resposta à questão de como devemos agir para proceder bem e justamente como previamente dada por um ordenamento preexistente". [19]

            Outro interessante sentido de justiça é o meio-termo aristotélico, a idéia de que a conduta reta consiste em não exagerar para um de mais nem para um de menos, encontrar, assim, o áureo meio-termo. Mas, como pergunta Kelsen, o que é de mais e o que é de menos do "bom" para cada qual? Novamente, o sentido do meio-termo não nós dá a resposta, o mais e o menos devem ser pressupostos.

            Apropriando-se de Kelsen, diz o filósofo: "Com efeito, a virtude é o meio entre dois extremos, isto é, entre dois vícios, um por excesso e outro por falta. Assim, por exemplo, a virtude da coragem é o meio-termo entre o defeito da covardia (falta de ânimo) e o defeito da temeridade (excesso de ânimo)". [20] É a célebre teoria do mesotes, uma essência da justiça matemática, geométrica. Mas como saber o que é o vício e o que é a virtude? "Aristóteles, porém, pressupõe o conhecimento dos vícios como conhecimento de algo de per si evidente e pressupõe como vício ou defeito aquilo que a moral tradicional do seu tempo cataloga como tal". [21]

            Parece que, o que vem a ser comum com as fórmulas já apresentadas, que o ingrediente a preencher as regras de justiça há de ser descoberto pelo senso comum, pelo sensível, é dizer, o que é a virtude, o que é o certo, o que é o bom, todos podem saber ou sentir a priori, não necessitando de qualquer fórmula para alcançar tais ideais. O mesmo se diga das modernas teorias de justiça, como a de John Rawls, um idealizador e reformador do contrato social, numa feliz equação de liberdade e igualdade, com a abstração da posição original que, não obstante, angustiado pela influência de Kant, ainda recai em um intuicionismo, que nada mais é a pressuposição do justo e do bem. [22]

            Não por outra, Kelsen termina sua análise do meio-termo aristotélico com uma crítica mordaz:

            A questão decisiva: "o que é a injustiça" não obtém resposta da fórmula do mesotes. A resposta é pressuposta; e Aristóteles pressupõe evidentemente como injusto aquilo que é injusto segundo a moral e o direito positivos. A autêntica função da teoria do mesotes não é determinar a essência da justiça, mas reforçar a vigência do ordenamento social existente, estabelecido pela moral e pelo direito positivo. Aqui, nesta função conservadora, reside a sua função política. [23]

            Mais um princípio comentado por Kelsen, talvez historicamente o mais importante: o princípio retributivo. O princípio tem inspiração no instituto vindicativo do homem, ou seja, de retribuir ao seu semelhante exatamente a sua conduta, o seu agir. Assim, a fórmula poderia ser, segundo Kelsen: "a cada um segundo o seu mérito ou demérito".

            Kelsen, aproximando tal princípio da idéia de igualdade e proporcionalidade, faz inúmeras críticas à fórmula da retribuição. Não há, para Kelsen, igualdade no princípio, de forma a recompensar dois sujeitos que tiveram a mesma ação valorada como boa ou punir dois sujeitos pelo cometimento de dois crimes iguais. A igualdade é intrínseca ao caráter geral da norma de retribuição. Ou seja, o princípio não cria e não tem a igualdade como norte de aplicação.

            O que mais se aproximaria da idéia de retribuição é a concepção de proporcionalidade. Assim: "quanto maior for a falta, tanto maior deve ser o castigo; quanto maior o merecimento, tanto maior deve ser a recompensa". Mas também para Kelsen aqui é impossível afirmar a existência de uma proporcionalidade em um sentido estrito, objetivo, mas tão-só em uma proporcionalidade aproximativa. Quando se contraria uma norma, é impossível estabelecer uma gradação de rompimento com o dever. Ou a conduta é conforme ao direito ou não é. A gradação só nos é dada pela sensação de desconforto com tal rompimento, mas nunca pela contrariedade em si.

            Ainda debatendo o princípio da retribuição sob o prisma da igualdade e da proporcionalidade, e mesmo tendo em conta a engenhosidade da formulação, Kelsen afirma inexistir, com a regra, o critério do mérito ou do demérito. Com efeito, o mérito e o demérito já estão graduados, numa evolução da Lei de Talião, de acordo com uma ação positiva ou negativamente avaliada. Mas o que é o mérito ou o demérito? A regra não nós dá esta resposta, é também oca, vazia, um vácuo de conteúdo.

            Por fim, alguma passagem sobre o princípio da justiça comunista formulado por Marx, tendo em conta que Kelsen submeteu à sua rigorosa lógica outras fórmulas e adágios de justiça, as quais remeto o leitor para o livro "O Problema da Justiça", não sendo próprio aqui trazer à discussão cada uma dessas críticas.

            A fórmula da justiça comunista do futuro poderia ser assim definida: "cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades". Para Kelsen o problema aqui reside em justamente saber quais são as necessidades de cada um, coisa que a regra não diz.

            Se estivermos falando em necessidades sob o prisma subjetivo, ou seja, o que cada um espera receber por suas necessidades, estamos diante de uma promessa de felicidade inalcançável. Impossível dar a cada um o que ele espera. Ora, as necessidades que os homens subjetivamente sentem estão de tal forma em conflito umas com as outras que nenhuma ordem social pode satisfazê-las todas, isto é, satisfazê-las de outra forma que não seja contentando uma à custa da outra.

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            Tendo em conta a necessidade sob o enfoque objetivo, ou seja, as necessidades reconhecidas pela ordem social como dignas de satisfação, aí estamos diante de uma ordem positiva, que vai completar e dizer o que é a necessidade. Para Kelsen, o princípio comunista da justiça deveria ser o seguinte: "cada um deve, segundo as suas capacidades, fixadas pelo ordenamento social, realizar o trabalho que é posto a seu cargo pelo mesmo ordenamento social; e a cada um devem ser satisfeitas as necessidades pelo ordenamento social reconhecidas, pela ordem no mesmo ordenamento estabelecida e com os meios determinados também por esse ordenamento". [24]

            Para finalizar, Kelsen ironicamente desencoraja a fórmula:

            Também o ideal de justiça comunista pressupõe, como a norma de justiça que manda dar "a cada um o seu", uma ordem social sem a qual não pode ser aplicada. Todavia, sobre o conteúdo das suas determinações, sem as quais nem o postulado "a cada um segundo suas capacidades" nem o postulado "a cada um segundo suas necessidades" podem obter satisfação, este princípio de justiça nos diz tanto como a fórmula "a cada um o seu" sobre o que deve ser considerado como o "seu": não nos diz nada. [25]

            Extenuado em face das fórmulas vazias, cabe-nos abrir um novo tópico e ousar discutir o problema da justiça com a ampla doutrina do direito natural. Kelsen propõe este instigante embate.


5.O embate com o direito natural e falta de resposta para o problema da justiça

            No âmbito do presente tópico a primeira questão que Kelsen afirma é que a teoria idealista do direito, que aqui poder-se-ia confundir com um jusnaturalismo metafísico, [26] é um teoria dualista. Equivale a dizer que somente um direito posto tido por justo em função de um ideal externo é direito válido. Como diria Kelsen: "Direito válido é direto justo: uma regulamentação injusta da conduta humana não tem validade e não é, portanto, direito, na medida em que se deva entender por direito apenas uma ordem válida". [27]

            Diversamente da teoria idealista, a concepção do positivismo jurídico descreve a validade da norma jurídica indepentemente da norma de justiça, do ideal de justiça. A norma positiva vale enquanto integrante do sistema jurídico, tirando sua validade da estrutura e escalonamento das normas, em uma lógica estritamente formal, sem qualquer necessidade de adequação a uma autoridade transcendente.

            Como já ressaltado em item anterior, ao associar a teoria positivista do direito a uma teoria realista, Kelsen justifica-se naturalmente no relativismo axiológico, é dizer, na inexistência de valor absoluto e na possibilidade e na alternância de inúmeras normas de justiça tidas como válidas. A essência do relativismo de valores para o positivismo jurídico fica densamente registrado neste trecho: "Uma teoria do direito positivista, isto é, realista, não afirma – e isto é importante acentuar sempre – que não haja nenhuma justiça, mas que de fato se pressupõem muitas normas de justiça, diferentes umas das outras e possivelmente contraditórias entre si." [28]

            Nesse sentido de argumentação, Kelsen traduz o direito natural, em uma primeira noção, como um direito pressuposto, como normas que já nos são dadas na natureza anteriormente à sua possível fixação por atos de vontade humana, normas por sua própria essência invariáveis e imutáveis.

            Nessa noção Kelsen já postula sua primeira objeção: é impossível retirar da natureza, da realidade, do ser um dever-ser, ou seja, nenhum valor pode ser imanente da realidade empírica. O caminho para Kelsen é inverso, só podemos valorar o ser em decorrência de um deve-ser. Só depois de estipulado um deve-ser é que um dado da realidade, um fato pode ser tido como justo ou injusto, bom ou mau. Para Kelsen, "quem julga encontrar, descobrir ou reconhecer normas nos fatos, valores na realidade, engana-se a si próprio". [29]

            Segundo Kelsen, a impossibilidade de retirar um valor da realidade, do mundo do ser, faz com que tal concepção do justo, para o direito natural, tenha uma origem metafísico-religiosa, em que radica a idéia de que a natureza foi criada por uma autoridade transcendente que incorpora em si o valor moral absoluto. É a idéia que está na base da teologia cristã, com a doutrinação de um Deus justo que rege a natureza, razão pela qual pode-se extrair um direito justo. Foi esta a doutrina dominante do direito natural nos séculos XVII e XVIII e que, de acordo com Kelsen, retomou sua força no século XX.

            Para o filósofo de Praga, inúmeros expoentes do pensamento filosófico e jurídico sustentaram a existência de um direito eterno e imutável, de origem divina transcendente e divina, como fez Cícero com a filosofia estóica, como fez Santo Agostinho ao descrever a "lei eterna que, enquanto razão ou vontade de Deus, prescreve a conservação da ordem natural e proíbe a sua perturbação". No mesmo ímpeto de associação do direito natural com a base teológica, Kelsen cita Tomás de Aquino, para quem "o direito dedutível das tendências naturais por Deus implantadas nos homens é o direito natural".

            Kelsen também debate a possibilidade de se fundar um direito natural na natureza humana. É a tentativa de ser fundar um ideal de justo nas inúmeras tendências do comportamento humano, numa espécie de amálgama das suas inclinações, instintos, pulsões e razões. No entanto, é impossível capturar e registrar uma índole humana imutável, a ponto de servir com ideal de justo. A diversidade dos impulsos é tamanha, as pulsões são as mais diversas, entre a natureza egoísta e a altruísta divaga uma distância tão grande, que daí não surgirá uma doutrina coerente do direito natural, a ponto de nos dar uma referência do justo.

            No sentido da teoria do direito natural baseada na natureza do homem "normal", na conduta média do homem, Kelsen também diz que tal doutrina tem uma fundamentação teológica e, portanto, inacessível ao conhecimento humano e não apreensível racionalmente como uma idéia de justiça a guiar o direito posto.

            Quanto a este ponto, há um registro longo, mas instigante da formidável lógica kelseniana:

            A norma segundo a qual o homem deve se conduzir da forma como regularmente se conduz a maioria dos homens apenas poderia ser apresentada como de direito natural se pudesse tratar-se de uma maioria de toda a humanidade e se pudesse conferir a esta norma validade absoluta. O primeiro requisito dificilmente será possível e o segundo só é possível sob o pressuposto de se acreditar que é da vontade de Deus que o homem assim se conduza e que, portanto, na conduta regular da maioria dos homens, e apenas nesta, mas não na conduta da minoria, se exprime a natureza do homem, a natureza que nele foi implantada por Deus – que, por conseguinte, a natureza dos homens é em regra boa e só excepcionalmente é má.

            Efetivamente uma escola teológica defende esta tese. Mas não há nada de mais significativo do que o fato de uma outra escola, seguindo a orientação de Agostinho, defender a tese oposta: a tese pessimista de que a natureza do homem está corrompida, de que, depois da queda original, todos nós somos pecadores. Uma teoria científica do direito não tem razão nenhuma para se pronunciar a favor de uma ou outra das doutrinas teológicas. Ela pode se limitar à verificação de que também a tentativa de fundar o direito natural sobre uma natureza "normal", sobre uma natureza média do homem, precisa lançar mão de uma fundamentação teológica da doutrina jusnaturalista. [30]

            Kelsen combate ainda a especulação de um direito natural como direito racional. É que aqui o direito natural apropria-se de uma razão prática que, segundo Kelsen, também tem origem teológico-religiosa. Kelsen debate com Tomás de Aquino e com Kant, em função da noção de razão prática adotada por estes filósofos, e também refuta a posição racionalista de Grocio. Assim, diz Kelsen como seu argumento definitivo:

            Se analisarmos as coisas mais de perto veremos que a razão, da qual o direito natural é deduzido, não é a razão empírica do homem tal como ela efetivamente funciona, mas uma razão especial, a razão "reta", a razão não como ela de fato é, mas como deve ser. (...) E, de fato, só à razão divina podem ser imanentes as normas absolutamente válidas de justiça, só como referência à razão divina se pode fazer a afirmação contraditória de que ela é simultaneamente função cognoscitiva e função voluntária, pois o princípio lógico que exclui a contradição não é aplicável às afirmações relativas aos atributos de Deus. Somente a razão divina pode ser razão "prática", isto é, conhecimento legislador, só de Deus se pode afirmar que conhecer e querer são uma e a mesma coisa. [31]

            Outro caminho contestado por Kelsen foi a tentativa de se fundar o direito natural no sentimento jurídico do justo. Contudo, no âmbito desta iniciativa, mais uma vez, estamos diante do subjetivo, ainda que "louvável seja" o sentimento do justo. Não é possível adotar qualquer critério objetivo, de igual conteúdo para todos os indivíduos que possa ser generalizado como elemento do justo. Além disso, tal como o homem médio ou normal, os sentimentos são os mais variados, diversos. A sensação do justo é amplamente mutável, no espaço e no tempo. Kelsen ainda salienta: "o sentimento, incluindo o sentimento jurídico, é um fato da ordem do ser; e de um fato da ordem do ser não pode seguir-se nenhuma norma de dever-ser. Nesta nova fundamentação do direito natural trata-se de obter normas, normas de justiça, ‘princípios supremos do direito’". [32]

            Em um dos últimos aspectos, Kelsen dispara sua ironia e sua crítica na direção da rasteira tentativa de se justificar a doutrina do direito natural pela sua função. Alega-se, segundo Kelsen, que a doutrina do direito natural, ou que as várias subdoutrinas, tem conduzido a um melhoramento ou aperfeiçoamento do direito positivo.

            Ora, para Kelsen, sob a perspectiva do positivismo jurídico, a única coisa que se pode afirmar, em um dado momento, é que um direito positivo foi moldado de conformidade com uma determinada norma de justiça advinda do direito natural. Não se poderia fazer daí um juízo de valor sobre a vantagem ou desvantagem de determinada ordem jurídica positiva. Claro está que, ao se fazer um juízo de vantagem ou desvantagem, está se adotando uma idéia de justiça entre outras as mais diversas. Pergunta: onde o justo absoluto?

            Para Kelsen, portanto, o problema da justiça então permanece sob a índole do direito natural, que não consegue resolvê-lo. Pouco importa o método de solução. A necessidade de resolver o problema, de qualificar uma ação como absolutamente boa, absolutamente justa subsiste. Kelsen nos apresenta então um trecho muito significativo da sua não-idéia, registro síntese da "justiça" sob o enfoque positivista, do seu método de conhecimento cientifico:

            A tarefa do conhecimento científico não consiste apenas em responder às perguntas que lhe dirigimos mas também em ensinar-nos quais as perguntas que lhe podemos dirigir com sentido.

            O afastamento do positivismo jurídico e o regresso à doutrina do direito natural também não podem ser justificados pelo fato de aquele, ao contrário deste, não nos fornecer nenhum critério para a apreciação ou valoração do direito positivo e, portanto, nos deixar sem recurso quando se apresenta a questão decisiva de saber se uma ordem jurídica positiva deve ser mantida, reformada ou afastada pela força. Enquanto teoria relativista dos valores, também o positivismo fornece critérios para a apreciação ou valoração do direito positivo na configuração que ele, em cada caso, apresenta. Apenas sucede que estes critérios têm um caráter relativo.

            A circunstância de que este relativismo nos "deixa em apuros" significa que ele nos obriga a tomar consciência de que a decisão da questão nos pertence, porque a decisão da questão de saber o que é justo e o que é injusto depende da escolha da norma de justiça que nós tomamos para base do nosso juízo de valor e, por isso, pode receber respostas muito diversas; significa que esta opção apenas pode ser feita por nós próprios, por cada um de nós, que nenhum outro – nem Deus, nem a natureza, nem ainda a razão como autoridade objetiva – pode fazê-la por nós. É este o verdadeiro sentido da autonomia da moral. [33]

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Sobre o autor
Leandro Novais e Silva

procurador do Banco Central do Brasil em Belo Horizonte (MG), mestre e doutorando em Direito Econômico pela UFMG, professor da PUC/MG, professor de pós-graduação em direito econômico da regulação financeira na Universidade do Banco Central (UniBacen) em convênio com a Universidade de Brasília (UnB)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Leandro Novais. A não-idéia de Justiça em Hans Kelsen. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 837, 18 out. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7438. Acesso em: 27 dez. 2024.

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