“Foi gente que eu nunca suportei: promotor, sacristão, cachorro e soldado de polícia. Esse aí é uma mistura de tudo isso”2, disse João Grilo em seu julgamento, referindo-se ao Encourado, o demônio, que o acusava na liturgia de responsabilização3.
Em O Auto da Compadecida, o saudoso Ariano Suassuna brinca, “bole”, como se diz em bom jargão nordestino, com o senso popular que se tem – ou que os maus querem inculcar – sobre aquele que possui a pesada responsabilidade de formular uma imputação a alguém.
Do seleto grupo insuportável a João Grilo, só me faltou ser cão e sacristão, já que integrei os quadros da Polícia Militar do Estado de São Paulo e, hoje, integro o Ministério Público da União, como Promotor de Justiça Militar.
Será minha atuação nesses papéis sociais merecedora de ser comparada ao demônio, por preservar a ordem pública (no caso do período na Polícia Militar) ou por titularizar a ação penal militar (no caso do atual cargo no Ministério Público)?
Embora evidentemente responda com uma negativa, é reconhecível na alegoria teatral uma estratégia do processo penal brasileiro, inclusive do processo penal militar, que busca colocar o membro do Ministério Público como um vilão, em uma narrativa que não pode passar de pura ficção.
Era tal a interpretação do autor, graduado pela Faculdade de Direito do Recife em 1950, ou intencionava ridicularizar mazelas de nosso processo penal?
O julgamento de João Grilo é ainda mais fecundo em encarapuçar os atores para melhor ressaltar a perversidade do acusador.
Quem é o Juiz? Jesus Cristo. E a defesa, quem a simboliza? A “Compadecida”, a mãe de todos nós, Nossa Senhora, em mais um estiro da obra literária que influencia as conclusões do leitor.
Obviamente, se o juiz é Jesus Cristo, a defesa é Nossa Senhora e o promotor é o “Cão dos Cinco Livros”, eu, leitor da obra, espectador da adaptação magistral dirigida por Guel Arraes, jurado do Tribunal do Júri, juiz militar do Conselho de Justiça, não poderia aceitar a tese do “Filho de Chocadeira”. Há que se absolver o réu.
Por falar nele, quem é o réu?
Bem, nesse julgamento específico há vários réus e “delitos”, não ficando claro se o processo é único em função de conexão ou continência. O fato é que, além de João Grilo, o “Capeta” acusa o padeiro, sua adúltera mulher, o clérigo ganancioso, enfim, várias ordens de pessoas de comportamento moralmente questionável, que são absolvidos ao termo – ou, no máximo, pegam um tempinho no Purgatório –, pois todos tiveram uma razão que justificaria suas condutas. Excluída está a ilicitude! O que não se justifica é a ação de acusação do demônio.
O cangaceiro, tudo indicava, seria condenado, não seria possível encontrar excludente para tantos crimes contra a vida. Afinal, quantas almas ele mesmo mandou diretamente para o promotor, digo, para o “Impronunciável”? Mas, pensando melhor... será que ele sabia o que fazia quando agia de maneira tão cruel?
Para responder a essa questão é necessário saber quem era o cangaceiro, por quem foi criado, com quem brincou na infância, enfim. Já que não se pode justificar de chofre, vamos ver se podemos reprovar seus atos.
Em fração insignificante de tempo, logo após ser apregoado e sem que o “Bafo de Enxofre” falasse uma palavra de acusação, o juiz se antecipa e absolve sumariamente o cangaceiro, excluindo sua culpabilidade. Afinal, a vida de violência foi a única que lhe foi apresentada. Presenciou a morte dos pais – mortos pela “Volante” (polícia), aliás, na dramatização para o telespectador –, conheceu privações indescritíveis etc. A vida o levou a isso, conclui-se, foi “vítima da sociedade”. Se não é louco (inimputável), ao menos há que se reconhecer uma inexigibilidade de conduta diversa, mesmo que supralegal, tendo-se como referência o Código Celestial.
E o protagonista?
“Este eu levo!”, precipita-se o “Inimigo”.
Como salvar João Grilo, mestre dos mais acurados estelionatos?
Mas espere! Ele também não vai cumprir pena. Embora não se possa justificar ou exculpar a conduta, pois ele sabia e até mesmo encontrava diversão no que fazia, todos têm direito a uma segunda chance!
Mas como fundamentar essa decisão, se não está na lei?
Ora, que lei? A lei serve para nada! Decida-se apenas com esse argumento metajurídico: “todos têm direito a uma segunda chance”, clemência!
Fundamento curto, é verdade, e que, sejamos francos, soa muito bem aos ouvidos adestrados para o politicamente correto.
João Grilo voltará à vida. Ressuscitará, sem saber explicar o que aconteceu a quem presenciar o milagre de sua ressureição.
Sátiras de Suassuna?
De indiscutível, identifica-se na alegoria uma estratégia que favorece a defesa, malgrado possa não ser somente por ela engendrada. Em nome do propósito de impedir que qualquer um cumpra pena, a estratégia foi satanizar quem tinha o dever legal de preservar a ordem, de promover justiça, ou seja, a polícia e o promotor (quais culpas carregarão o pobre do sacristão e o animal canino?). No mesmo fôlego, santifica-se a defesa e vitimiza-se o acusado.
Assumindo os riscos de errar, ou mesmo de ser rotulado dentro de uma ideologia repressora, prefiro acreditar, levando em conta a grandeza do escritor, que Suassuna foi crítico, debochando da seriedade de algumas características do processo penal brasileiro.
Nesse sentido, faço coro, mas não poderia concordar com a satanização do Ministério Público, nem com a beatificação da defesa. A estratégia desrespeitou instituições paritárias, colocando-as em ridículas situações que não são compatíveis com a grandeza de suas atuações.
O escárnio acentua-se ainda mais com a vitimização, o “coitadismo”, do réu, buscando a simpatia de órgãos julgadores, especialmente os que contam com o voto de leigos, caso dos Tribunais do Júri e dos Conselhos de Justiça das Justiças Militares, ambos de essência popular, na precisa construção de Jocleber Rocha Vasconcelos4.
Não discuto, ressalto, o relevante papel do juiz, mas não há equivalência com a vida do Nazareno. Afinal, ao comprovar o injusto típico, culpável e punível, o juiz não pode apenas aconselhar o ofendido a dar a outra face. No máximo pode aplicar a pena mínima, uma outra alternativa, suspender a execução da pena etc.
Já tem o texto algumas linhas, e ainda não citei a vítima (a real, não a da sociedade). Mas, também, quem não se esquece da vítima? No julgamento de João Grilo, não me recordo de nenhuma construção sobre ela. Em alguns casos de nosso processo penal, o verdadeiro ofendido é deixado de lado.
Retomando, deve-se reconhecer o relevante papel da defesa, mas não a enxergo como Cireneu a carregar a cruz da sociedade, como quis Carnelutti5, e muito menos como Nossa Senhora. Ora, em simples e coloquial argumento, se ela é a mãe de todos, não o é também da vítima? Que mãe se importa apenas com um dos filhos, colocando o mais perverso sob sua proteção e deixando o mais inocente, aviltado justamente pela conduta do perverso, à sua própria sorte?
O promotor não é a personificação do mal, a querer arrebatar pais de suas casas, para jogá-los em cárceres insalubres. É promotor de justiça e não de condenação, com a possibilidade de “desdizer” o que disse na peça acusatória e, em consequência, promover a absolvição após apreciar as provas no curso do processo, possibilidade que não assiste à defesa, a quem é vedado mudar sua tese de absolvição para a de acusação.
Pelos exageros, reafirmo, sob os riscos já apontados, que Suassuna foi irônico. Expôs que, muitas vezes, a pretexto de uma equivocada visão religiosa de perdão indistinto, salva-se o lobo que, no mínimo, já cravou os dentes nas ovelhas.
Obrigado, “Mestre Ariano”!
REFERÊNCIAS:
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Servanda, 2016.
SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
VASCONCELOS, Jocleber Rocha. O processo decisório nas deliberações dos Conselhos de Justiça Militar: um estudo analítico à luz do dever de motivação das decisões judiciais. Perspectivas da Justiça Militar contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 25 – 63.
Promotor de Justiça Militar. Mestre e doutorando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. E-mail: [email protected].︎
SUASSUNA, Ariano. O auto da compadecida. Rio de Janeiro: Agir, 2005, p. 128.︎
Tomei conhecimento de tal trecho em evento na Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, em 2002, por ocasião da comemoração de dez anos da Lei de Improbidade Administrativa. Um membro do Parquet Paulista, cuja memória não me favorece lembrar, destacou-o de forma muito perspicaz e, desde então, passou a me intrigar.︎
VASCONCELOS, Jocleber Rocha. O processo decisório nas deliberações dos Conselhos de Justiça Militar: um estudo analítico à luz do dever de motivação das decisões judiciais. Perspectivas da Justiça Militar contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 29 – 32.︎
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. Campinas: Servanda, 2016, p. 39.︎