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A crise da modernidade e a insegurança social

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05/11/2005 às 00:00
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6. AS INCIVILIDADES

Embora alguns considerem simples, a relação das incivilidades com o medo e a insegurança é um fato. Ao tomar por pressuposto que as incivilidades, ao gerar um clima de mal-estar social, favorecem a insegurança, torna-se necessário e urgente a implementação de ações para as reduzir. Mas qual o caminho a trilhar?

Certamente as crises econômicas favorecem o crescimento de frustrações, cujo exacerbação pode facilmente ocasionar incivilidades e, em conseqüência, furtos, roubos e agressões. Isso obriga a levar a sério as pequenas desordens. Mas o que se entende por incivilidades? Como se expressam no cotidiano?

As incivilidades não são roubos ou agressões; não são prejuízos materiais graves; nem tampouco agressões físicas. Trata-se de uma quebra das regras de convívio em harmonia. São fatos que transformam as aparências de normalidade. Por conseqüência, as reações das pessoas frente as incivilidades, sejam de retraimento ou de fuga, contribuem para a construção da insegurança.

As incivilidades caracterizam-se por comportamentos não lucrativos, desafiadores, pouco organizados e muito visíveis. São pouco reprovadas, raramente consideradas graves e condenáveis, e, são públicas. Assim, traduzem tensões sobre a ocupação dos espaços e sobre as relações entre indivíduos. Podem também incluir uma dimensão étnica, com origem na incompreensão de concepções e práticas diferenciadas conforme as origens. Cotidianamente se concretizam sob a forma de:

  • Pequenas degradações: arrombamento de caixas de correio, lâmpadas partidas, incêndios de caixotes de lixo, quebra de telefones públicos.

  • Sujeiras: dejetos e lançamento de objetos em espaços coletivos, pichações e incrições de obscenidades nas paredes.

  • Ausência ou rompimento das regras de boa educação: provocações, desafios, intimidações, insultos.

  • Confrontos em torno do uso do espaço, os ruídos, os cheiros.

Quanto ao aspecto quantitativo das incivilidades, o que se revela insuportável é a sua repetição cumulativa. Quando não são reprovadas ficam afastadas da noção de desvio e hoje em dia quase não são condenáveis. Que existe uma dificuldade em coibi-las é um fato, mas dada a sua quantidade, elas tornam-se insuportáveis.

Os autores das desordens desenvolvem uma visão individualista das coisas, enquanto a indiferença progride, alimentada pela tolerância. Se perante o cometimento de uma incivilidade ninguém contesta, não há antagonismo sobre uma regra social nem tampouco denúncia da infração à norma, mas apenas indiferença face às suas conseqüências negativas.

Questão que levanta fortes interrogações é a de saber se estamos ou não perante práticas que podem ser consideradas como delinqüentes e, sobretudo, no caso de não serem qualificadas como delitos, definir quem é competente para fazer o que face às incivilidades.

O sentimento de insegurança, alimenta-se das crises concretas do dia-a-dia, da delinqüência das ameaças difusas, de natureza econômica, política, social ou mesmo das incivilidades. A incerteza crescente e continuada disto resultante se instala no espírito dos homens e aos poucos se transforma em medo. Os sentimentos de insegurança, no entanto, são processos de leitura do mundo circundante, modos pessoais de interpretação, caracteristicamente subjetivos e muito dificilmente mensuráveis.

Para a formação do medo, tem muita importância aquilo que se designa por incivilidades, reunindo nesse termo as indelicadezas, gritarias, arruaças, exibicionismos ruidosos, vandalismos, comportamentos desbragados e atividades de bandos juvenis.

É fácil deslizar das incivilidades para os delitos. Veja-se o exemplo dos chamados grafitti – riscos, escritos, desenhos em paredes – que passam de expressões "artísticas" a manifestações de desenraizamento, de contestação cultural, de protesto, e logo ou simultaneamente ao dano material da propriedade alheia e mesmo à vandalização de obras de arte e monumentos históricos.

A noção de incivilidade, geralmente tomada como sinônimo de pequenas desordens, aparece cada vez mais como tendo uma influência propiciadora ao desenvolvimento de um processo em espiral que acaba por conduzir ao roubo e à agressão. Chegou-se, assim, à redescoberta da importância das relações sociais e das regras informais na vida urbana e do seu respectivo peso para realizar a prevenção da delinqüência.

Ao mesmo tempo, difundiu-se a idéia de que é preciso agir de forma mais rígida, o que implica responder a todos os delitos, de modo a afirmar a responsabilidade individual de quem os cometa. Nessa linha estaria a política repressiva, de matriz anglo-saxônica, denominada "tolerância zero", Tais noções desenvolveram-se e foram difundidas inicialmente nos Estados Unidos da América, sobretudo a partir de 1982, com a publicação de Broken Windows, artigo de autoria de James Q. Wilson e Georges Kelling, que seria traduzido para o francês em 1994 com o título de Vitres Cassés. O desenvolvimento das idéias nele defendidas viria a dar lugar à chamada teoria do vidro partido (ROCHÉ, 2002).


7. OS VIDROS PARTIDOS

Wilson e Kelling atribuem grande importância à manutenção das regras informais de comportamento nas situações de vizinhança. Aceitando que as desordens ou incivilidades se ligam à delinqüência, colocam em evidência o seguinte fato: se uma vidraça partida num prédio não for reparada, o resto dos vidros será rapidamente quebrado.

A partir daí, desenvolve-se uma espiral: quando todos os vidros estiverem partidos começam os furtos, os roubos e as agressões. Os vidros partidos são tomados como indicadores de um lugar sem lei. Mas, em vez de vidros partidos, a situação pode desenrolar-se de um simples problema de ruído para uma algazarra, que perturbaria toda a vizinhança.

Para compreender a importância desta análise, há que ter presente o efeito de demonstração de força sobre a comunidade de vizinhança, pois os vidros partidos dizem muito, informando acerca do estado de coisas na zona: degradações, insultos por parte de jovens, famílias que se desfazem, conflitos pela ocupação de passeios, acumulação de detritos. As pessoas pacíficas habituam-se a atravessar a rua para não cruzarem com grupos de jovens. Aos poucos, a zona de residência de uma comunidade pode transformar-se numa selva inóspita.

O enfraquecimento dos laços de solidariedade corresponde a um abrir de portas à delinqüência. Pretende-se confiar à polícia o papel essencial de reforçar os mecanismos informais de vigilância da própria comunidade. Isto significa complementar o controle social informal da comunidade.

Ora, as patrulhas policiais motorizadas não permitem estabelecer laços fortes com a população. Além disso, os agentes policiais não conhecem os jovens e estes consideram os policiais como uma força estranha, que se pode menosprezar com impunidade e mesmo escarnecer abertamente. Este policiamento é considerado como uma forma de caça ao delinqüente, correspondendo a uma visão individualista da lei. Nesse caso, o policial é visto como um estranho preocupado em perseguir os transgressores das normas e não procurando garantir as regras sociais de vizinhança que podem estar ameaçadas por incivilidades. Ao contrário o patrulhamento a pé e de proximidade pode contribuir para a manutenção das regras informais da comunidade, reforçando com vivência coletiva pacífica, sem quebrar os laços da polícia com a população.

Os autores insistem sobre a dimensão coletiva da vida em sociedade e, portanto, naquilo que une as pessoas ou, pelo contrário, cria medo, repulsa, desvio. A teoria do vidro partido acentua a importância dos laços sociais de proximidade. Nesse modelo, a polícia deve reforçar o processo de controle social informal da comunidade, dedicando tempo a escutar e a compreender os habitantes, interessando-se pelas pequenas desordens e intervindo para fazer cessá-las em vez de considerar tais intervenções como profissionalmente menores. Está-se, pois, longe da tolerância zero, prática realizada através de repressão sistemática de todas as infrações.

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A teoria defende a reparação do vidro partido como forma de obstar à erupção de incivilidades e, assim, de evitar o desenvolvimento de espirais de desqualificação, de insegurança e de violência. Mas Kelling veio a sublinhar que a teoria da reparação do vidro partido rejeita explicitamente a idéia de fazer da polícia o elemento central de atuação. Para ele, forte coesão da vizinhança, leva os próprios habitantes a se comportarem como vigilantes naturais da zona, rareando as incivilidades. A polícia pode contribuir para baixar o nível de delitos mas não consegue substituir o papel dos habitantes.

Os meios de comunicação social, por sua vez, veiculam muito mais a idéia de tolerância zero do que da conveniência de reparar os vidros partidos. Acontece que ambas as expressões apontam para a análise do impacto das incivilidades, mas há que distinguir: a teoria do vidro partido aponta para a importância da dinâmica social global. A tolerância zero centra-se nas respostas repressivas.


8. CONSIDERAÇÕES FINAIS: DA TEORIA À PRÁTICA

A teoria do vidro partido mostra-se muito interessante atendendo ao fato de propor soluções para os problemas das desordens, uma vez que se estas forem enfrentadas pode-se conseguir baixar o número de delitos numa dada área. Além disso, consigna um lugar e uma missão à polícia.

Wilson e Kelling atribuíram uma dimensão política à degradação do ambiente nas vizinhanças, ocasionando a associação das desordens a atentados contra a qualidade de vida. O que acabou por inspirar as políticas de luta contra a delinqüência. E, precisamente em torno da noção de incivilidades, foi reformulada a atuação da polícia de Nova Iorque, com resultados retumbantes e com eco em todo o mundo. Kelling veio para a ribalta contando em pormenor o seu papel na política de reparação dos vidros partidos, entre 1994 e 1996, e também o prefeito Giuliani e o chefe da polícia William Brantton se celebrizaram pela ação desempenhada neste âmbito.

A segurança, a par com a justiça e o bem-estar, continua a ser um dos fins últimos do Estado. A delinqüência em geral é vista como geradora de insegurança, donde é natural que se tomem medidas contra ela e, numa perspectiva de prevenção que se procurem identificar os fatores que contribuem para a sua aceleração. Os gestores da segurança pública almejam tomar iniciativas que sejam realizáveis com os recursos disponíveis e que possam alcançar sucesso num prazo razoável. Porém, o normal mesmo seria que procurassem respostas para conseguir resultados imediatos. Entendendo que necessitam de identificar o que fazer de concreto para em pouco tempo começar a resolver um problema, há quem defenda que podem de imediato atacar os sintomas daquilo que eventualmente sejam causas profundas e complexas da insegurança. O tratamento credível do conjunto das supostas causas da delinqüência e da insegurança é moroso e, por isso, não facilita a tomada de medidas a curto e a médio prazo.

Se uma política de segurança baseada em medidas de prevenção e repressão da delinqüência, em termos clássicos, não substitui uma política social, então é possível que a análise da insegurança a partir das pequenas desordens ou incivilidades ponha em evidência alguns fatores sobre os quais se pode agir rapidamente, de modo a fazer baixar a delinqüência.

Estas teorias podem ser úteis mesmo para aqueles que atuam através da repressão institucional, mostrando as tendências que se desenham e apontando o que fazer. Para as polícias, não se trata tanto de explicar porque são impotentes face a determinadas situações, mas, antes, sugerir como podem ser mais eficazes.


REFERÊNCIAS

  • BRETON, David Le. La sociologie du risque. Paris: PUF, 1995.

  • COHEN, Philippe. Protéger ou Disparaitre. Paris: Gallimard, 1999.

  • ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, v. II, 1993.

  • FENECH, Georges. Tolerância Zero. Lisboa: Editorial Inquérito, 2001.

  • FERREIRA, Eduardo Viegas. Crime e insegurança. Oeiras: Celta Editora, 1998.

  • MANNONI, Piere. La peur. Paris: PUF, 1982.

  • MATHIEU, Jean-Luc. L’Insécurité. Paris: PUF, 1995.

  • ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.

  • ROBERT, Phillipe. O cidadão, o crime e o Estado: Lisboa: Editorial Notícias, 2002.

  • ROCHÉ, Sebastian. Insécurité et libertés. Paris: Editions du Seuil, 1994.

  • ROCHÉ, Sebastian. Sociologie politique de l’inségurité. Paris: PUF, 1998.

  • ROCHÉ, Sebastian. Tolérance Zéro? Incivilités et insécurité. Paris: Odile Jacob, 2002.

  • SANTOS, Antônio Pedro Ribeiro dos. O Estado e a Ordem Pública. Lisboa: Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, 1999.

  • KEPEL, Gilles. A revanche de Deus. São Paulo: Siciliano, 1991.

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Sobre o autor
Francis Albert Cotta

professor na Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina (UFMG), doutor em História Social da Cultura pela UFMG, especialista em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COTTA, Francis Albert. A crise da modernidade e a insegurança social. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 857, 5 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7461. Acesso em: 27 abr. 2024.

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