Juiz parcial e a nulidade do processo desde a primeira intervenção do magistrado.

Ética na magistratura

15/06/2019 às 12:04
Leia nesta página:

Processos conduzidos por juízes suspeitos devem ser anulados desde a primeira intervenção do magistrado.

O que é Parcial: Parcial é aquilo que corresponde a parte de um total, ou seja, que pertence a um todo. Um juízo parcial é considerado injusto e incorreto, pois apenas analisa parte de uma situação, ignorando o ponto de vista geral desta.

O papel de acusar, conforme o sistema acusatório, incumbe ao ministério público, e não ao magistrado.

Uma ferramenta para coibir tais situações é a gravação da audiência pelo advogado. A legislação não proíbe, porém, por questão de bom senso, seria apropriado informar o juiz sobre a gravação.

Havendo atuação desproporcional contra os direitos do acusado, havendo flagrante parcialidade no caso concreto, se faz mister o pedido de nulidade processual. Eis a importância da gravação da audiência pelo advogado.

A imparcialidade do juiz é pressuposto de validade do processo, devendo o juiz colocar-se entre as partes e acima delas, sendo esta a primeira condição para que possa o magistrado exercer sua função jurisdicional.

Cesare de Beccaria, em seu clássico “Dos Delitos e Das Penas”, em 1764 já asseverava que:

O juiz torna-se inimigo do réu, desse homem acorrentado, à mercê dos tormentos, da desolação, e do mais terrível porvir; não busca a verdade do fato, mas busca no prisioneiro o delito, e o insidia, e se considera perdedor se não consegue, e crê estar falhando naquela infalibilidade que o homem se arroga em todas as coisas. Os indícios para a captura estão em poder do juiz; para que alguém seja provado inocente deve antes ser considerado culpado; chama-se isso processo ofensivo, e são esses quase por toda parte da Europa ilustrada do século dezoito, os procedimentos criminais.

 O Pacto de São José da Costa Rica, em seu art. 8º, I, dispõe:

Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ele, ou para determinarem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (grifamos).

O eminente processualista Geraldo Prado observa que a Corte de Estrasburgo assinala que a confiança do cidadão nos Tribunais de Justiça está, em grande parte, baseada no princípio da imparcialidade. Em igual sentido tem se pronunciado a Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH), para qual a parcialidade, sem embargo de observada apenas objetivamente, invalida por completo o processo penal.

Com toda lucidez, o processualista e professor titular da UFPR Jacinto Coutinho afirma que:

democracia  a começar a processual  exige que os sujeitos se assumam ideologicamente. Por esta razão é que não se exige que o legislador, e de consequência o juiz, seja tomado completamente por neutro, mas que procure, à vista dos resultados práticos do direito, assumir um compromisso efetivo com as reais aspirações das bases sociais. Exige-se não mais a neutralidade, mas a clara assunção de  uma  postura  ideológica,  isto é, que  sejam  retiradas as máscaras hipócritas dos discursos neutrais, o que começa pelo domínio da dogmática, apreendida e construída na base da transdisciplinariedade.

O caráter de imparcialidade é inseparável do órgão da jurisdição. A primeira condição para que o juiz possa exercer sua função dentro do processo é a de que ele coloque-se entre as partes e acima dela. A imparcialidade do juiz é pressuposto para que a relação processual seja válida. É assim que os doutrinadores dizem que o órgão jurisdicional deve ser subjetivamente capaz. 

A capacidade subjetiva é a qualidade de que o juiz possa agir de acordo com o princípio da imparcialidade. A incapacidade subjetiva do juiz, ao contrário, origina-se da suspeita de imparcialidade e afeta profundamente a relação processual. Para assegurar a imparcialidade do juiz, a Constituição Federal de 1988 estipula garantias (Art. 95, CF) e prescreve vedações aos magistrados (Art. 95, § único, CF). 

As garantias atribuídas aos magistrados assumem importantíssimo papel na questão da imparcialidade, pois permitem que o Poder Judiciário decida livremente sobre os conflitos que lhe são apresentados, sem se abalar com pressões externas. De acordo com a artigo 95 da Constituição pátria, os juízes gozam das seguintes garantias: 

- Vitaliciedade: A vitaliciedade ignifica dizer que o magistrado somente perderá o cargo, uma vez vitaliciado, por sentença judicial transitada em julgado, sendo-lhe asseguradas todas as garantias inerentes ao processo judicial. A vitaliciedade, em primeiro grau de jurisdição, só será adquirida após dois anos de efetivo exercício do cargo. Nos dois primeiros anos, ou seja, durante o chamado estágio probatório, o juiz, que ingressou na carreira através de concurso de provas e títulos, ocupando o cargo de juiz substituto, só poderá perder o cargo através de deliberação do tribunal a que estiver vinculado. 
- Inamovibilidade: Por meio da regra da inamovibilidade, garante-se ao juiz a impossibilidade de remoção, sem seu consentimento, de um local para outro, de uma comarca para outra, ou mesmo sede, cargo, tribunal, câmara, grau de jurisdição. A inamovibilidade é a regra. Contudo, ela não é absoluta, pois o magistrado poderá ser removido, além de colocado em disponibilidade e aposentado, por interesse público, fundando-se tal decisão por voto da maioria absoluta do respectivo tribunal, assegurada ampla defesa. 
- Irredutibilidade de subsídio: O subsídio dos magistrados, ou seja, a sua remuneração, não poderá ser reduzido, garantindo-se, assim, o livre exercício das atribuições jurisdicionais. O STF já se pronunciou no sentido de tratar-se de garantia nominal e não real, ou seja, os magistrados não estão livres da corrosão de seus subsídios pela inflação e nem mesmo dos efeitos da tributação. 
Aos magistrados foram impostas algumas vedações, delimitadas nos incisos do parágrafo único do art. 95 da CF. Trata-se de rol taxativo, exaustivo, por restringir direitos. Assim, aos juízes é vedado:- Exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo 
uma de magistério. 
- receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo. 
- dedicar-se à atividade político-partidária. 
- receber, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de pessoas físicas, entidades públicas ou privadas, ressalvadas as exceções previstas em lei.
- exercer a advocacia no juízo ou tribunal do qual se afastou, antes de decorridos três anos do afastamento do cargo por aposentadoria ou exoneração. 
A imparcialidade do juiz é uma garantia de justiça para as partes. Por isso, elas têm o direito de exigir um juiz Imparcial e o Estado, que detêm o exercício da função jurisdicional, tem o dever de agir com imparcialidade na solução das conflitos que lhe são apresentados. 
Valendo-se do direito comparado, nota-se que esta preocupação faz-se presente em grande parte dos ordenamentos jurídicos. A jurisdição deve configurar-se como uma justiça que dê a cada um o que é seu. Apenas por meio de um juiz imparcial o processo pode representar um instrumento não apenas técnico, mas também ético, para a solução dos conflitos interindividuais. Assim, independentente do reconhecimento de cada Estado, o direito internacional público coloca entre as  garantias primordiais do homem o direito ao juiz imparcial. 
A Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1948 estabelece que toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para o exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal.

CPP, Art. 254. O juiz dar-se-á por suspeito, e, se não o fizer, poderá ser recusado por qualquer das partes:

I - se for amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer deles;

II - se ele, seu cônjuge, ascendente ou descendente, estiver respondendo a processo por fato análogo, sobre cujo caráter criminoso haja controvérsia;

III - se ele, seu cônjuge, ou parente, consanguíneo, ou afim, até o terceiro grau, inclusive, sustentar demanda ou responder a processo que tenha de ser julgado por qualquer das partes;

IV - se tiver aconselhado qualquer das partes;

V - se for credor ou devedor, tutor ou curador, de qualquer das partes;

VI - se for sócio, acionista ou administrador de sociedade interessada no processo.

Dever da imparcialidade

Ao analisar os artigos 252 e 254 do CPP sobre suspeição e impedimento, Nestor Távora defende que os processos jurídicos devem sempre ser embasados pelo princípio legal da imparcialidade.

O advogado informa que em situações que o juiz é parcial, o seu ato gera nulidade, conforme está previsto no artigo 564 do CPP. O princípio consiste em um vício ou defeito do ato processual, podendo a nulidade ser declarada absoluta ou relativa.

A nulidade é decorrente da inobservância da norma legal ou de sua aplicação incorreta. Por esse conceito, um processo poderá ser considerado inválido e sem efeitos legais. Távora avalia que não é muito comum o juiz ser considerado suspeito ou impedido, uma vez que o magistrado usa o bom senso de se afastar do caso antes para evitar nulidade. Ele argumenta que o rito dos processos na justiça é demorado, o custo é alto para a sociedade e que se tenta ao máximo reduzir riscos de anulação.

A imparcialidade é um valor e um princípio caro ao sistema jurisdicional democrático de modo que as hipóteses de suspeição devem ser consideradas além daquelas enunciadas nos códigos de processo civil e processo penal para abarcar condutas que constituem graves violações da imparcialidade. Evitar-se-ia, com isso, a debilitação inculcada ao princípio do juiz imparcial por obra de um legislador nada inovador nesse terreno, por obra de uma jurisprudência excessivamente atrelada aos enunciados leis e por obra da pouca receptividade à dimensão supranacional dos tratados de direitos humanos internacionais que regulam o processo judicial.

No que diz respeito à imparcialidade o artigo 8º do Código de Ética define o magistrado imparcial como aquele que busca nas provas a verdade dos fatos, com objetividade e fundamento e mantém ao longo de todo o processo uma distância equivalente das partes e evita todo o tipo de comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito. Cabe ao magistrado, segundo o art. 9º do Código de Ética, no desempenho de sua atividade, dispensar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de injustificada discriminação.

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

A suspeição produz a incompetência do magistrado para conhecer e julgar daquela ação e nulifica o processo a contar do primeiro ato em que houve intervenção do juiz suspeito. Assim, processos conduzidos por juízes suspeitos devem ser anulados desde a primeira intervenção do magistrado.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Fábio Roque; TÁVORA, Nestor. Direito Processual Penal. 2ed. Niterói: Impetus, 2013.

Assembleia Geral da ONU. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos (217 [III] A). Paris.

Assembleia Geral da ONU. (1966). Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (2.200 [XXI] A). Nova York.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. VADE MECUM compacto de Direito: edição federal, São Paulo: Rideel, 11.ed., 2016.

BRASIL. Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989. VADE MECUM compacto de Direito: edição federal, São Paulo: Rideel, 11.ed., 2016.

BRASIL. Projeto de Lei N. 8045, de 2010 (do Congresso Nacional) PLS N. 156/09. Dispõe sobre a reforma do Código de Processo Penal e determina outras providências. Diário do Congresso Nacional, Brasília, 7 dez. 2010.

FEITOSA, Denilson. Direito Processual Penal Teoria, Crítica e Práxis. 5 ed. Niterói: Impetus, 2008.

FONSECA, Adriana de Castro. 2013. Manual para elaboração de trabalhos acadêmicos e científicos da Faculdade Metodista Granbery. Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil : s.n., 2013.

JARDIM, Afrânio Silva. Sistema processual acusatório, imparcialidade dos juízes e estado de direito. Jornal GGN. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/noticia/sistema-processual-acusatorio-imparcialidade-dos-juizes-e-estado-de-direito-reflexoes-por-afranio-silva-jardim> Acesso em: 05 out.2018.

LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 4 ed. Salvador: JusPodvim, 2016.

LOPES Jr., Aury. Breves considerações sobre a polimorfologia do sistema cautelar no PLS 156/2009 (e mais algumas preocupações). Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 18, n. 213, edição especial CPP, ago. 2010.

LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. São Paulo : Editora Saraiva, 2018.

LOPES JR., Aury. Fundamentos do Processo Penal Introdução Crítica. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

MAGNO, Levy Emanuel. Processo Penal. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2006.

MAYA, André Machado. Imparcialidade e Processo Penal Da prevenção da competência ao Juiz das Garantias. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

OLIVEIRA, Daniel Kessler de. A atuação do julgador no Processo Constitucional: O juiz das garantias como um redutor de danos da fase de investigação preliminar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

Organização dos Estados Americanos. (1969). Convenção Americana sobre Direitos Humanos, San Jose de Costa Rica.

PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

PRADO, Geraldo. Sistema Acusatório A Conformidade Constitucional das Leis Processuais Penais. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 23.ed. São Paulo: Atlas, 2015.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 10 ed. Salvador: JusPodivum, 2015.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Benigno Núñez Novo

Pós-doutor em direitos humanos, sociais e difusos pela Universidad de Salamanca, Espanha, doutor em direito internacional pela Universidad Autónoma de Asunción, com o título de doutorado reconhecido pela Universidade de Marília (SP), mestre em ciências da educação pela Universidad Autónoma de Asunción, especialista em educação: área de concentração: ensino pela Faculdade Piauiense, especialista em direitos humanos, especialista em tutoria em educação a distância, especialista em auditoria governamental pelo EDUCAMUNDO e bacharel em direito pela Universidade Estadual da Paraíba. Assessor de gabinete de conselheira no Tribunal de Contas do Estado do Piauí.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos