Resumo: O presente trabalho tem o objetivo de discutir os limites do direito de se expressar livremente, sobretudo na internet - vista como uma plataforma digital que deva ser tratada semelhantemente a qualquer outro veículo de comunicação - quando relacionado à disseminação do discurso de ódio favorecida pela facilidade e velocidade de compartilhamento de opiniões no meio virtual, bem como enfatizar a imputação de responsabilidade aos propulsores do discurso de ódio perante a falsa ideia de liberdade de expressão.
Palavras-chave: Internet, Cyberbullying, Direitos Fundamentais, Dignidade da Pessoa Humana.
1. INTRODUÇÃO
A vida virtual da sociedade moderna torna-se cada vez mais intensa e mais social que a própria vida física, emergida na perspectiva global de comunicação instantânea que a Internet proporciona. Com essa interconexão mundial de ideias e sua facilidade de propagação, mensagens e opiniões percorrem longas distâncias, de minorias para maiorias, em alta velocidade e dentro de poucos instantes.
A difusão de ideologias de vários lugares do mundo está centralizada em um “ciberespaço”, e junto ao rol de todas as ideias, opiniões, informações e conhecimentos propagados, estão também as manifestações de ódio e discursos ofensivos, estes fantasiados pela falsa ideia de liberdade de expressão.
Os discursos que transmitem preconceito, discriminação, inferiorização, e impulsionam a violência, são típicas manifestações que fazem entrar em conflito diretamente a liberdade de expressão com os demais direitos fundamentais como, neste caso, a dignidade da pessoa humana. O cerceamento de um direito está atrelado ao uso abusivo e exorbitante de outro.
A deturpação da ideia de liberdade de expressão absoluta na mídia atual afeta negativamente o comportamento ético de bom senso e moralidade, ferindo os direitos fundamentais alheios.
É imprescindível saber distinguir quando o exercício regular de um direito se torna abusivo ou ofensivo e, de imediato, começa a prejudicar outras garantias e direitos fundamentais de outrem. Um direito fundamental não pode ser utilizado como resguardo para agredir outro direito.
Dessa forma, diante da temática dos possíveis limites referentes ao uso do direito de livre expressão, surge a necessidade de, primeiramente, explanar o conceito de liberdade de expressão e, logo em seguida, tentar definir o que caracteriza o discurso de ódio.
2. O DIREITO DE LIVRE EXPRESSÃO: CONCEITO
Liberdade de expressão é um direito fundamental do ser humano que garante a manifestação de ideologias, opiniões e pensamentos sem retaliação ou censura por parte de governos ou de outros indivíduos. No Brasil, a liberdade de expressão é assegurada pelo artigo 5º da Constituição Federal, incisos IV e IX.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Também é um direito estabelecido mundialmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU. A doutrina jurídica compreende o livre direito de expressão como um direito inalienável, irrenunciável e irrevogável.
O direito à livre expressão ocupa posição de direito inato à pessoa, sem dúvida, caracterizando-se como direito fundamental de primeira dimensão, conjuntamente a outros direitos ligados intimamente ao princípio da dignidade da pessoa humana. Todavia, seria este direito absoluto?
3. O LIMITE DO DIREITO À EXPRESSÃO: DISCURSO DE ÓDIO
É importante frisar que a própria Constituição, ao garantir o direito de expressão, dentre os seus variados dispositivos, preocupou-se em mencionar que o usufruto desta liberdade acontecerá “observando o disposto nesta Constituição”. Ou seja, nenhum direito fundamental poderá ser usado como escudo para transgredir outro direito.
O limite da liberdade de expressão está não em ultrapassar os demais direitos fundamentais de outros indivíduos. Ao praticar preconceito ou proferir discursos racistas ou misóginos, por exemplo, não se trata simplesmente de livre expressão, e sim de um atentado de ódio contra outra pessoa que tem os mesmos direitos assegurados e é considerada igual a todos os demais perante a lei. Se a liberdade de expressão de um fere a liberdade do outro, então torna-se opressão.
A manifestação do pensamento no âmbito digital trilha as mesmas regras da liberdade de expressão em qualquer veículo de comunicação, da mesma forma que se aplica para a realidade do mundo físico, mantendo-se as mesmas garantias e limites. Assim como não se deve proferir discursos ou palavras racistas por ser um crime, também não faz uso da internet para promover o racismo, xenofobia, sexismo, homofobia, entre outras injúrias.
Com o escopo de delinear o discurso de ódio, as autoras Rosane Leal da Silva e Luiza Quadros da Silveira Bolzan (2012, on line) afirmam que:
[...]o discurso de ódio se configura como tal por ultrapassar o limite do direito à liberdade de expressão, incitando a violência, desqualificando a pessoa que não detém as mesmas características ou que não comunga das mesmas ideias, e ao eleger o destinatário como “inimigo comum” incita a violência e seu extermínio, o que fere frontalmente o valor que serve de sustentáculo para o Estado democrático de direito, qual seja, a dignidade da pessoa humana[...]
Não é tão dificultoso tentar definir o que caracteriza o discurso de ódio, bem como a problemática em saber se o ‘’hate speech’’ está protegido sob a égide da liberdade de expressão.
O discurso de ódio é, basicamente, o discurso proferido através de mensagens que buscam promover o ódio e incitação à discriminação, hostilidade e violência contra um grupo em virtude de raça, religião, nacionalidade, orientação sexual, gênero, condição física ou outra característica. Ele é utilizado a fim de insultar, perseguir e justificar a privação de direitos humanos alheios e, em casos extremos, para dar razão a homicídios. É dirigido a um grupo de pessoas, de forma que as mensagens de desprezo, aversão e hostilidade extrema não configuram um dano apenas a uma pessoa específica, mas a uma coletividade inteira, cujas características são comuns entre eles.
Dentre os mais variados termos ofensivos e de intensa toxicidade, o discurso de ódio diversifica-se em racismo, xenofobia, homofobia, sexismo, e todos os outros títulos que são resguardados pelo artigo 3º, inciso IV da Carta Magna.
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Faz-se importante ressaltar, segundo Perez (2012), o pensamento do filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, que através das suas teorias do agir comunicativo em suas obras, explica que em uma sociedade madura, o mais importante em uma discussão entre pessoas não é uma convencer a outra, e sim evoluírem juntas. O diálogo em si é mais importante do que vencer o outro. E analisando a sociedade contemporânea atual, sobretudo na internet, depara-se com pessoas que se preocupam apenas em vencer a discussão e terminar com razão, do que aprender e evoluir com ela.
Segundo Gomes (2015) a especialista em direito digital, advogada Patrícia Peck Pinheiro, em entrevista, esclareceu que “não se deve confundir liberdade de expressão nas redes sociais com irresponsabilidade, senão torna-se abuso de direito”.
Com o objetivo de ilustrar comparações com a legislação internacional neste tema, nota-se que pelo Conselho da Europa, o discurso do ódio pode ser definido como “qualquer expressão que espalha, incita, promove ou justifica ódio racial, xenofobia, anti-semitismo ou qualquer outra forma de intolerância, incluindo a intolerância causada por nacionalismo agressivo e etnocentrismo, discriminação e hostilidade contra minorias, migrantes e pessoas de origem estrangeira”. O artigo 10 da Convenção Europeia garante sim a liberdade de expressão, mas não como direito absoluto, e sim relativo às situações eventualmente aplicadas.
A fim de exemplificar um caso nacional e mais específico em relação ao tema presente, seguem trechos de uma reportagem de Carvalho (2012) que relata a prisão de incitadores de discursos de ódio na internet.
Pregação da violência contra homossexuais, mulheres, negros, nordestinos e judeus, além da incitação para extermínio destes grupos, levaram dois homens para a prisão nesta quinta-feira (22). Emerson Eduardo Rodrigues e Marcelo Valle Silveira Mello foram presos em Curitiba pela Polícia Federal (PF) e são suspeitos de alimentarem um site na internet com estas informações.
Os dois colocaram ofensas contra a presidente da República, Dilma Rousseff e outras autoridades de alto escalão. Ameçaram de morte publicamente o deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ). Além disto tudo, há postagens no site sobre como matar uma pessoa, sendo de maneira lenta ou rápida. Ou ainda como abordar crianças para um posterior abuso sexual. Havia também citações de que lésbicas deveriam sofrer um “estupro corretivo”, de acordo com a PF, que deflagrou a Operação Intolerância, na qual os dois foram presos. Os policiais federais ainda cumpriram três mandados de busca e apreensão, sendo dois no Paraná e um em Brasília.
Sem embargos, toda e qualquer manifestação de ódio semelhante deve ser controlada e responsabilizada, a fim de evitar que os infratores, imaginariamente, acreditando estar protegidos legalmente pelo direito de expressão, pratiquem, na verdade, uma agressão aos princípios fundamentais da pessoa humana.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Brasil ainda percorre os primeiros passos para a consolidação de uma responsabilização dos propulsores dos discursos de ódio. Não há, em consequência disso, legislações firmes e concretas que tipifiquem sanções específicas para esses casos.
Todavia, pode ser observado analogicamente que a Magna Carta, ao assegurar em seu artigo 5º, incisos XLI e XLII, que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdade fundamentais” fornece instrumentos normativos para restringir os discursos de ódio.
Se as mídias sociais, sendo uma plataforma digital, também podem servir de meio para propagação de manifestações de ódio e infrações de direitos, requer também que existam meios legais para punir esses comportamentos.
O compromisso constitucional de promover a luta contra o preconceito - um dos principais efeitos do discurso de ódio - sustenta-se em um dos objetivos fundamentais da República, nos termos do artigo 3º, inciso IV da Constituição Federal, ressaltando o dever de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Dessa forma entendemos que devem ser realizadas propostas de lei, bem como iniciar um processo de realização de debates e palestras para a conscientização das pessoas, com investimento em políticas públicas para acolhimento da vítima e proteção de seu direito no âmbito digital, o mais cedo possível.
Ressalta-se que o Direito e suas normas devem acompanhar a evolução social, e a recíproca não é verdadeira. A lei deve se adequar aos anseios sociais, e não o contrário.
Segundo Gomes (2015), em entrevista, Patrícia Peck Pinheiro reitera que a falta de educação e a impunidade contribuem para os excessos na internet. "Sem educação em ética e leis, corremos o risco de a liberdade de expressão e o anonimato digital se tornarem verdadeiros entraves na evolução da sociedade digital, pois torna o ambiente da internet selvagem e inseguro". Seguindo esta linha de raciocínio, conclui-se que as ofensas digitais, pela facilidade de sua disseminação, causam um dano contínuo visto que o conteúdo se perpetua nas redes sociais. “Quem é vítima deste tipo de crime está condenado a conviver com a exposição o resto da vida, o que é uma pena muito maior do que a aplicada ao infrator", observa a especialista, uma vez que em casos de injúria, difamação e calúnia, recebe pena de prisão de um mês a dois anos, muitas vezes convertida em penas restritivas de direito e ajuda à comunidade, como o pagamento de cestas básicas.
Portanto, o agravamento das penas e aumento das indenizações às vítimas são também medidas essenciais para a consolidação de um Estado Democrático de Direito que tem por escopo construir uma sociedade digital mais justa e livre, arquitetada sob a égide dos princípios fundamentais da Constituição.
Imprescindível que sejam considerados todos os mecanismos, sejam eles internacionais ou dispostos na Constituição brasileira, para que se possa restringir a atuação e disseminação do discurso de ódio, da intolerância e polarização na sociedade, seja em âmbito virtual ou físico. Isto, entrelaçado aos parâmetros de ofensividade e severidade das imputações, de acordo com o caso em questão, uma vez que o objetivo é buscar não apenas uma punição aos infratores, mas a possibilidade de que todos sejam livres e portem-se harmoniosamente na sociedade.
5. REFERÊNCIAS
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GOMES, Karina, Quando a liberdade de expressão na internet vira crime. Made For Minds, Notícias.Brasil,2015. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/quando-a-liberdade-de-expressão-na-internet-vira-crime/a-18817509 Acesso em jun 2019.
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