Abril despedaçado: uma análise sob a ótica da defesa da honra e outros aspectos sociojurídicos

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5 A ausência do Estado e a vingança privada

O instituto da vingança privada também está presente em uma obra de William Shakespeare, em Hamlet. Toda a narrativa conta como o príncipe tenta vingar a morte do seu pai, o rei Hamlet, assassinado por um irmão que, logo em seguida, tomou o trono. Durante muito tempo, inexistiu um Estado suficientemente forte para frear os ímpetos individuais e resolver as desavenças por meio de um corpo de juízes[32]. Essa mesma problemática é visível no filme Abril Despedaçado. Na história, os Breves e os Ferreiras viveram nas primeiras décadas do século XX, no qual há uma nítida ausência do poder estatal na região. Em nenhum momento é verificada a existência de postos de polícia, vivendo os moradores em uma situação de total inexpressividade do poder público. Em razão disso, assim como ocorria no início das civilizações e ainda acontece em vários locais do país, os indivíduos agem diretamente para atingirem o seu interesse, sem a atuação de um terceiro imparcial. Desse modo, o instituto da autotutela é a regra na região, pois quem pretende determinada coisa deve adquiri-la por meio das suas próprias força e na medida dela.

O historiador Marco Antonio Villa[33] esclarece que “Nessas regiões, o Estado não estava presente. São áreas distantes, de difícil acesso. O poder estatal (colonial, imperial ou republicano) só aparece em momentos de crise. O poder central e suas instituições são vistos como algo externo aquelas comunidades”.

Como se sabe, cabe ao Judiciário o papel de analisar e julgar as lides, ou seja, os conflitos de interesses que surgem na sociedade buscando assim a máxima harmonização. Se as pessoas entram em conflito, o direito impõe que deve ser chamado o Estado-Juiz para resolver a controvérsia, sendo, em regra, proibida a autotutela como dispõe o Código Penal[34].

Exercício arbitrário das próprias razões

Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:

Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

É vedado ao particular satisfazer sua pretensão, legítima ou ilegítima, mediante violência, ameaça ou fraude. Isso ocorre pois é competência do Poder Judiciário dirimir os conflitos. De acordo com Rui Stocco e Tatiana de O. Stocco[35]:

O ser humano evoluiu e desenvolveu-se no sentido de buscar estruturar-se através de um grupo social do qual faça parte e, nele inserido, acatar as regras e o modus vivendi que o próprio estrato social estabeleceu. Um dos pressupostos da vida em sociedade e da inserção da pessoa nessa sociedade é - obrigatoriamente - a submissão às regras estabelecidas e à legislação posta. Se as divergências entre pessoas devem ser dirimidas pelo Poder Judiciário - porque assim se estabeleceu -, que tem no juiz o árbitro das querelas, nada justifica que alguém queira fazer justiça pelas próprias mãos. Essa a razão pela qual a reprovação da sociedade a esse comportamento fez com que a conduta fosse considerada grave e erigida à condição de crime. (...)

Contudo, torna-se perceptível, nas práticas cotidianas, que essa não é uma concepção majoritária entre os indivíduos, visto que, de acordo com o professor e sociólogo, Alberto Carlos Almeida[36]:

Ao contrário das punições previstas pela lei, sujeitas a uma justiça lenta e muitas vezes considerada ineficientes, as punições ilegais acabam sendo vistas como solução, ou pelo menos como um recurso que se trata de combater os crimes. As modalidades variam e uma enorme proporção de brasileiros concordam com ela: linchamentos, contratação de grupos de extermínio ou de pistoleiros, assassinato de bandidos que se entregam pacificamente, além do estupro para estupradores.

Toda a lógica de violência é mantida e incentivada no filme; os filhos já nascem conscientes que um dia devem cumprir a sua obrigação matando o rival. As pessoas vivem alienadas, em um movimento cíclico, almejando apenas defender o nome da família e dar continuidade aos assassinatos.  É o princípio de talião, o olho por olho dente por dente, que durante muito tempo serviu e ainda serve de base para regular as relações intersubjetivas em vários locais do mundo.  É observável a presença desse instituto no primeiro código de leis da história, organizado pelo Rei Hamurabi na Mesopotâmia do século XVIII a.c.

A seguir, será analisado alguns trechos presentes nessa codificação[37]:

196º - Se alguém arranca o olho a um outro, se lhe deverá arrancar o olho.

 197º - Se ele quebra o osso a um outro, se lhe deverá quebrar o osso.

200º - Se alguém parte os dentes de um outro, de igual condição, deverá ter partidos os seus dentes.

202º - Se alguém espancar outro mais elevado que ele, deverá ser espancado em público sessenta vezes, com o chicote de couro de boi.

 206º - Se alguém golpeia outro em uma rixa e lhe faz uma ferida, ele deverá jurar: “Eu não o golpeei de propósito”, e pagar o médico.

 209º - Se alguém atinge uma mulher livre e a faz abortar, deverá pagar dez siclos pelo feto.

210º - Se essa mulher morre, se deverá matar o filho dele.

Esse princípio também esteve presente em vários outros escritos, sobretudo o velho testamento da bíblia[38] “Mas, se houver dano grave, então, darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, golpe por golpe”. (Êx 21.23-25).

A China foi um país em que mais se imperou a vingança privada, pois conforme o sábio Confúcio[39] estabelecia que “Não vivas sob o mesmo céu com o assassino do teu pai; se o encontrares na feira ou na reunião, não percas tempo em voltar e buscar armas”.

A lei de talião indica uma certa proporcionalidade que deve haver entre o crime e a sua devida punição.  Apesar de já mencionado nos tópicos anteriores, vale a pena ressaltar o zelo pelo estrito cumprimento dessa equivalência, analisável no momento que o pai de Tonho diz que ele deve matar apenas aquele que assassinou o seu irmão. Esse cuidado também é preservado pelos Ferreiras, no momento em que avô diz ao neto que sua família deve cobrar unicamente o sangue perdido e não ultrapassar esse direito. É o olho de um, pelo olho de outro, como observa Pacu. O menino é o primeiro a notar a ilógica de um sistema de conflito que apenas causa a autodestruição, questionando assim em várias oportunidades a autoridade do pai e tentando mostrar ao seu irmão as mazelas resultantes da vingança privada. O garoto cita uma frase atribuída ao indiano Mahatma Gandhi “Olho por olho e o mundo ficará cego”[40] para demonstrar a fragilidade e o perigo desse método de resolução dos conflitos. A autotutela não garante necessariamente a justiça e sim apenas a prevalência o interesse do mais forte ou astuto sobre o mais fraco.

Thomas Hobbes, em O leviatã, realiza uma abordagem acerca do contrato social, mostrando as razões suficientemente necessárias para possibilitar a submissão dos homens a um Estado forte que garanta a coexistência pacífica. No trecho da obra a seguir[41] o autor fala na guerra de todos contra todos que existia no estado de natureza dos homens, ou seja, na ausência do poder estatal.

E dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é uma condição de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver.

Desse modo, não existia um controle social por parte do Estado no contexto do filme, facilitando assim o surgimento de normas costumeiras e a perpetuação dos conflitos. Isso ocorre principalmente em razão das dimensões geográficas do Brasil, pois um território de tamanho continental dificulta uma efetiva presença de agentes públicos que faça o interesse estatal prevalecer sobre o particular.

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Partiremos para analisar o poder patriarcal no contexto da honra.


6 O poder patriarcal

O patriarca da família Breves e dos Ferreiras demonstram como a figura masculina e, sobretudo, paterna, era símbolo de respeito na sociedade e no âmbito familiar. Na fazenda empobrecida, residência do jovem Tonho e do irmão Pacu, o trabalho na bolandeira evidencia o status social do pai na organização das famílias. Era o responsável por comandar todos os filhos e a mulher, instigando o trabalho e mantendo o controle das atividades. Durante as refeições, sentava-se a mesa em uma posição indicativa da autoridade que possuía perante os outros. A sua palavra era a lei, devendo ser estritamente seguida por todos que estavam sob o poder pátrio. Tinha legitimidade para decidir acerca da vida dos seus dependentes. Desse modo, atua como uma espécie de legislar e juiz de todos os demais membros.

No momento em que Tonho e Pacu fogem para assistir ao espetáculo do circo, o pai percebe a ausência e em seguida os castiga por violarem a sua autoridade e os valores dos seus ancestrais. Isso significa que um ato de desafio a posição social ocupada por esse indivíduo é duramente reprimida, como ocorreu quando o menino apanha ao dizer ao irmão não deveria assassinar o oponente.

Destarte, a figura paterna simboliza um pilar e sua honra deve ser preservada no meio social. O patriarcalismo tem como definição a supremacia do homem nas relações sociais.  Esse termo foi utilizado pela primeira vez pela comunidade judaica. A lógica desse sistema impõe que o homem tenha autoridade sobre seus familiares, empregados ou outros sujeitos no ambiente de convívio[42].

Na história da formação brasileira da sociedade brasileira, esse modelo de família ocupou um papel de destaque, apesar de nas últimas décadas ocorrerem mudanças na organização social. Desde os primeiros anos de colonização, em razão da herança cultural portuguesa e ibérica, o patriarcalismo foi se constituindo como forma de organização dos laços familiares. A colonização brasileira ocorreu sob a égide do latifúndio, da escravidão e de uma economia agroexportadora, sendo esse núcleo de organização familiar um resultado do tripé apresentado acima. Gilberto Freyre[43], em sua obra Casa-grande e senzala, descreve a imagem paterna com um papel extremamente influente na família, não apenas em relação aos filhos e esposa, como também a todos os dependentes, como por exemplo, os escravos. Esse indivíduo age como ser supremo nas relações interpessoais, definindo o destino dos subordinados:

O patriarca tinha sob seu poder a mulher, os filhos, os escravos e os vassalos, além do direito de vida e morte sobre todos eles. A autoridade do pater familiae sobre os filhos prevalecia até mesmo sobre a autoridade do Estado e duraria até a morte do patriarca, que poderia, inclusive, transformar seu filho em escravo para vender.

Em outras obras, como “Memórias Póstumas de Brás Cuba” de Machado de Assis[44] e “Senhora”' de José de Alencar[45], é fácil constatar o patriarcalismo como modelo de organização social. O primeiro livro conta a história de Brás Cuba que foi criado por uma família completamente conservadora em que o pai atuava com chefe da casa e mandava na vida dos seus familiares. O personagem começar a se envolver com uma meretriz, todavia o pai descobre o romance e impõe que o filho vá estudar na Europa, sendo nítido o poder pátrio existente na relação. A seguir trecho relata essa ocorrência na obra literária[46]:

Com efeito, olhando para a porta, vi na calçada três dos correeiros, um de batina, outro de libré, outro à paisana, os quais todos três entraram no corredor, tomaram-me pelos braços, meteram-me numa sege, meu pai à direita, meu tio cônego à esquerda, o da libré na boléia, e lá me levaram à casa do intendente de polícia, donde fui transportado a uma galera que devia seguir para Lisboa. Imaginem se resisti; mas toda a resistência era inútil.

A obra “Senhora” narra a vida do casal Aurélia e Seixas que se distanciam após o rapaz receber um dote para casar com Adelaide. Aurélia embora queira ser independente, mostra preocupação em conseguir se enquadrar no perfil da sociedade patriarcal. Isso pode ser notado no texto abaixo[47]:

Aurélia era órfã; e tinha em sua companhia uma velha parenta, viúva, D. Firmina Mascarenhas, que sempre a acompanhava na sociedade. Mas essa parenta não passava de mãe de encomenda, para condescender com os escrúpulos da sociedade brasileira, que naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina. Guardando com a viúva as deferências devidas à idade, a moça não declinava um instante do firme propósito de governar sua casa e dirigir suas ações como entendesse.

Após teceremos comentários sobre a estagnação social e o seu papel na ótica de Hegel.

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Sobre os autores
Leonardo Barreto Ferraz Gominho

Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

Ana Carolina Torres Carvalho

Acadêmica de Direito na FACESF.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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