Abril despedaçado: uma análise sob a ótica da defesa da honra e outros aspectos sociojurídicos

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7 A estagnação social dos personagens sob a ótica da dialética hegeliana

O menino Pacu inicia a narração do filme contando que está tentando lembrar de uma história, porém é uma tarefa complicada, pois existe outra que não sai da cabeça: a sua história, a da sua família e de uma camisa ao vento. No decorrer da trama algumas colocações são feitas e essas carregam muitos significados, sendo importante a sua compreensão para facilitar o entendimento da lógica do roteiro. Como visto, os personagens vivem sem nenhuma perspectiva de vida, sem sonhos, acesso à educação, ao lazer, ao bem-estar e outros direitos que são fundamentais para assegurar a dignidade humana. Nascem apenas destinados a garantir a honra da família, em detrimento de direitos subjetivos, tendo o direito de escolha cerceado pela tradição. Não há espaço para o novo, todos vivem na mesmice, razão essa que faz o menino comparar suas vidas ao movimento cíclico dos bois na bolandeira.

Existe a continuidade da violência, morte e autodestruição da própria identidade, pois os membros da família vivem indistintamente, apenas se caracterizando como pertencentes a determinado clã. A mesma trajetória de vida é seguida entre todos os Breves e Ferreiras, ou seja, o cumprimento da obrigação e a posterior morte precoce. Em vista disso, o ambiente é hostil para pensar, ascender socialmente e planejar uma vida diferente do costume local. Essa inércia impossibilita o questionamento da realidade que os oprime, no qual apenas Pacu consegue enxergar a ilógica em manter um sistema de violência, enquanto os demais vivem uma espécie de cegueira autoinduzida.

Após essa breve contextualização do filme, é possível realizar um paralelo da realidade social dos personagens com a filosofia da dialética hegeliana. De acordo com o teórico alemão, a história se desenvolve por causa de forças contraditórias que fazem com que as coisas se transformem constantemente. O livro denominado “Cadernos sobre a dialética de Hegel” dispõe da seguinte redação[48]:

Toda atividade e toda consciência sempre foram contraditórias, porque envolviam uma colisão com a natureza e conflitos entre grupos e classes sociais. Mas a consciência clara da contradição su punha condições complexas: nível ideológico elevado, vocabulário adequado, eliminação das formas nebulosas e emotivas do pensamento, tensão extrema das forças humanas, da ação sobre a natureza e do movimento da história. Esta consciência, portanto, só poderia se constituir lentamente - como Hegel o demonstrou, ela deveria experimentar múltiplas atitudes e posições limitadas e unilaterais. Ela emerge sob formas mágicas, místicas, morais: o Bem e o Mal, o Herói e o Destino, Deus e o Diabo, lutas recíprocas entre forças obscuras e contra o homem etc.

Hegel é considerado por vários estudiosos como o primeiro a sistematizar a dialética de uma maneira clara.  Afirmou, com base nas ideias do filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso, que a luta entre as ideias contraditórias proporciona o movimento das coisas, sendo assim, as mudanças de perspectivas. Como observado, a realidade é compreendida a partir de uma tríade dinâmica, ou seja, tese, antítese e síntese. Explicando de um modo superficial, pode-se afirmar que a tese consiste na conceituação acerca de determinado ser ou objeto, enquanto a antítese é o questionamento do que foi posto como verdadeiro. É a partir da dúvida em relação ao que foi exposto que é possível atingir um novo conhecimento e proporcionar as transformações históricas.

O cenário de Abril Despedaçado mostra a estagnação social resultante do não questionamento dos valores e direito costumeiro imposto. Aqueles sujeitos agiam simplesmente dando continuidade ao ciclo hereditário de vingança, nascendo e crescendo para viver em nome da honra da família. A falta de criticidade acerca da realidade que os oprime impossibilita o surgimento de uma história diferente da estabelecida pela guerra, sangue e dogmas sociais. Como afirma a dialética hegeliana, a ausência de uma antítese, ou seja, uma ideia contrária que possa desafiar os costumes, gera a mesmice e a estagnação social.  Apenas a partir do momento que Pacu começa a perceber as desvantagens daquele modo de vida, uma vez que essa apenas proporciona a autodestruição, toda a estrutura do sistema começa a se fragilizar. 

Esses filhos começam a sonhar uma vida diferente da imposta pela realidade social, com novas histórias e objetivos. O garoto visualiza um mundo diferente, a partir do instante que recebe o livro, sonhando com o mar, os animais aquáticos e a sereia. Tonho sente arder o fogo da paixão ao conhecer Clara e decidi fugir em busca da moça do circo, conhecendo então um lugar e uma vida distinta da guerra, morte e animalização a que estava submetido. Aqueles irmãos passam a imaginar um novo caminho, novas ideias e propósitos, desafiando assim os valores familiares. Foi justamente em razão da crítica ao modelo social vigente que surgiram sonhos, tornando-se evidente a necessidade de haver ideias contrárias ao imposto para possibilitar a ocorrência de algum tipo de transformação social. Como percebido, um local em que existe apenas a mesma linha de raciocínio, é mais difícil acontecer mudanças. Desse modo, o cenário de Riacho das Almas passa a se transformar um pouco em razão da conduta critica adotada inicialmente por Pacu e em seguida por Tonho. Seguiremos para abordar a negação de direitos da personalidade.


8 A negação de direitos da personalidade

Embora já mencionado nos tópicos anterior, é relevante enfatizar que em Riacho das Almas não existe a preocupação com os sonhos e as características particulares de cada um, sendo identificáveis apenas como Breves ou Ferreiras. Não há a necessidade de gravar nomes e esses quase nem são mencionados, pois o filme pretende demonstrar que para aquelas famílias o importante é história da vingança, da honra e da tradição. Pacu inicialmente era chamado apenas por “menino”, recebendo em seguida um nome por Salustiano e Clara.

Atribuir um nome a alguém é dar uma relevância, identidade e dizer que cada um é um ser diferente possuindo suas individualidades. O conflito familiar aqui em análise não permitia que haja a distinção entre aqueles indivíduos, visto que esses nascem para serem totalmente iguais aos seus antepassados, seguindo assim o mesmo destino de vida. Esse fato é perceptível no momento em que o pai diz a Tonho que ele deve seguir os passos do irmão Inácio.

É necessário lembrar que essa também era a realidade de vários locais do país, como mostra a literatura regionalista do início do século XX. A obra “Vidas secas” de Graciliano Ramos, publicada em 1938, fala de uma família sertaneja obrigada a se locomover periodicamente em busca de áreas menos castigadas pela seca. Os filhos de Fabiano e Sinhá Vitória são a chamados apenas por “menino”', evidenciando assim a mesma situação vivenciada em Abril despedaçado, ou seja, a negligência a respeito de direitos da personalidade. Em um ponto da obra[49] é notada essa realidade:

Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo. Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esquecendo as rachaduras' que lhe estragavam os dedos e os calcanhares. Sinha Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.

Os direitos da personalidade são importantes, visto que tem como intuito preservar a integridade intelectual, física e moral de um indivíduo. Compreende-se como direitos da personalidade o nome, a imagem, a honra e a privacidade. O nome, nele compreendido o prenome e o sobrenome, possibilita a identificação de uma pessoa para a existência em grupo. Conforme ensina Jefferson Daiber[50] “O nome é a expressão mais característica da personalidade, o elemento inalienável e imprescritível da individualidade da pessoa”. Sendo assim, é a forma de externar a individualidade, apresentando-se como um valor fundamental, previsto no Código Civil de 2002[51]: “Art. 16. Toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.

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Nesse mesmo sentido diz Spencer Vampré[52].

Quando pronunciamos, ou ouvimos um nome, transmitimos ou recebemos, um conjunto de sons, que desperta nosso espírito, e no de outrem, a ideia da indicada, com seus atributos físicos, morais, jurídicos, econômicos, etc. Por isso, é lícito afirmar que constitui o nome a mais simples, a mais geral e a mais prática forma de identificação.

A luta pela sobrevivência no filme gera um processo de animalização dos personagens. É um cenário hostil, árido e de secas prolongadas, no qual o trabalho árduo ocupa boa parte do tempo. A personalidade é negligenciada, não se atribuindo nome aos indivíduos, pois é irrelevante particularidade, esses não devem ter uma vida diferente da vivida pelas gerações anteriores. Todos nascem com a mesma trajetória definida e a única identificação que devem possuir é o nome da família. Essa situação era e ainda continua sendo vivenciada em várias localidades do país, principalmente no sertão, em que o clima, a ausência do estado e as dificuldades de sobrevivência provoca o processo de animalização.


9 Conclusão

Este estudo tratou a respeito do filme Abril despedaçado, analisado sob a ótica dos conflitos de família, a defesa da honra e outros aspectos jurídicos e sociais. Sendo assim, é nítido como a disputa por terras e o anseio por preservar o nome de um grupo social gerava um ciclo de mortes.

Como visto, a terra, causa inicial do conflito, possui um relevante valor econômico e político, principalmente no início do século XX, contexto do coronelismo. Até os dias de hoje, vários são os crimes cometidos em razão da posse dessas propriedades rurais, dando ênfase a região Norte e Nordeste do país. É importante ressaltar que, apesar da motivação inicial consistir na disputa por terras, a defesa da honra familiar foi o argumento utilizado para dar continuidade aos sucessivos assassinatos. Isso também ocorre em várias cidades do país, na qual existe a concepção de que apenas se pode readquirir a respeitabilidade social, violada com um ato de desonra, mediante a derramada de sangue do inimigo.

Além disso, muitos delitos cometidos de forma momentânea e individual, sem consistir em uma briga de família em si, também utilizam a tese da legitima defesa da honra, sendo vários réus absolvidos com base nesse argumento. Isso apenas evidencia como a problemática do filme não é algo restrito aquela época, visto que esse fato lamentavelmente se repete na sociedade brasileira.

Na ausência do Estado com o seu poder coercitivo, surgiu uma espécie de direito local, embasado nos costumes e no código de honra. Os personagens buscam atingir suas pretensões pelo uso das próprias forças, obedecendo apenas as normas de caráter consuetudinário, os valores e a tradição, sendo essas estabelecidas pelos antepassados da família.  Ninguém podia questionar os destinos já preestabelecidos, apesar disso, causar violência e autodestruição.

O patriarca era o responsável por garantir o estrito cumprimento do código de honra, incentivando e obrigando os filhos a matar o oponente e defender os valores da família. A palavra do pai era a lei, qualquer ato de desrespeito a essa autoridade deveria ser severamente castigado.

A estagnação social em que viviam os personagens pode ser averiguada pela perspectiva da dialética hegeliana, dado que, por inexistir discordância em relação ao costume imposto, não havia espaço para a transformação social. Esse cenário começa a mudar no momento em que Pacu desafia a lógica da tradição e, por fim, se entrega ao inimigo em um ato de amor pelo irmão Tonho, quebrando assim o ciclo de mortes.

Como também foi exposto durante o artigo, os direitos da personalidade, como por exemplo o nome, eram negligenciados. Não havia preocupação em criar identidades próprias e conhecer as particularidades de cada personagem, todos deveriam ser indistintamente os breves, pois a história que importa, é a do conflito e a preservação da honra da família.

Destarte, o filme aqui discutido é passível de diversas análises, desde aspectos sociais aos jurídicos. Aquele cenário, o conflito, a camisa ao vento e as colocações do menino Pacu, servem para fomentar uma reflexão acerca de como o desejo de vingança e a luta desmedida pela defesa da honra podem resultar na própria aniquilação dos envolvidos. Sendo assim, a crítica apresentada pelo filme a respeito daquele ciclo de mortes tem como um dos principais objetivos evitar que outras famílias sofram as mazelas de um sistema autodestrutivo.

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Sobre os autores
Leonardo Barreto Ferraz Gominho

Graduado em Direito pela Faculdade de Alagoas (2007); Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina (2010); Especialista e Mestre em Psicanálise Aplicada à Educação e a Saúde pela UNIDERC/Anchieta (2013); Mestre em Ciências da Educação pela Universidad de Desarrollo Sustentable (2017); Foi Assessor de Juiz da Vara Cível / Sucessões da Comarca de Maceió/AL - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Foi Assessor do Juiz da Vara Agrária de Alagoas - Tribunal de Justiça de Alagoas, por sete anos, de 2009 até janeiro de 2015; Conciliador do Tribunal de Justiça de Alagoas. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito das Obrigações, das Famílias, das Sucessões, além de dominar Conciliações e Mediações. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Professor e Orientador do Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF -, desde agosto de 2014. Responsável pelo quadro de estagiários vinculados ao Núcleo de Prática Jurídica da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF - CCMA/FACESF, em Floresta/PE, nos anos de 2015 e 2016. Responsável pelo Projeto de Extensão Cine Jurídico da Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco - FACESF, desde 2015. Chefe da Assessoria Jurídica do Município de Floresta/PE. Coautor do livro "Direito das Sucessões e Conciliação: teoria e prática da sucessão hereditária a partir do princípio da pluralidade das famílias". Maceió: EDUFAL, 2010. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico I: discutindo o direito por meio do cinema”. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821832; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito civil e direito processual civil”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821749; Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 01. São Paulo: Editora Lexia, 2017. ISBN: 9788581821856. Coordenador e Coautor do livro “Coletânea de artigos relevantes ao estudo jurídico: direito das famílias e direito das sucessões”. Volume 02. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558019. Coordenador e Coautor do livro “Cine Jurídico II: discutindo o direito por meio do cinema”. Belém do São Francisco: Editora FACESF, 2018. ISBN: 9788545558002.

Ana Carolina Torres Carvalho

Acadêmica de Direito na FACESF.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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