5.O Pluralismo em Nova Misericórdia.
As práticas de pluralismo jurídico detectadas devem ser consideradas de natureza comunitária, pois a ocupação trabalhada configura-se como uma verdadeira comunidade, que luta por sua sobrevivência e que organiza politicamente seus membros, possuindo seus espaços de decisão política. A organização de Nova Misericórdia é bastante tradicional, quando comparada aos movimentos de luta pela terra, e segue as orientações de pensamento político de esquerda, com vistas à transformação social. Não obstante o caráter reformista de seu objetivo principal, seu discurso e sua práxis constituem um processo pedagógico e emancipatório que engendra a necessidade de mudança social.
Nova Misericórdia tem como instâncias de decisão políticas: a assembléia, espaço político máximo e democrático, realizado em reuniões no último domingo de cada mês e outras extraordinárias, na qual a participação é aberta e as decisões, quando não há consenso, são deliberadas por maioria simples; uma coordenação, composta por três pessoas eleitas pela assembléia que exercem funções executivas; comissões, grupos de trabalho divididos em temáticas, como alimentação, segurança, educação, entre outros que desenvolvem ações necessárias à existência do acampamento, como preparação coletiva da alimentação ou organização da escala da segurança do acampamento; delegados de áreas, representantes das quatro áreas em que foi dividida a fazenda ocupada, que devem fiscalizar a utilização da terra e dividir e entregar os lotes aos novos ingressos. Notadamente, percebe-se nesta estrutura política uma cultura assembleista.
A convivência social, a diversidade e diferença invariavelmente provocam conflitos e disputas entre os membros de qualquer coletividade. Em Nova Misericórdia, os conflitos são apresentados em assembléia, quando as instâncias anteriores não conseguiram resolver tal conflito ou quando não ocorreu a própria autocomposição. Às vezes, uma conversa do coordenador ou delegado de área com o sujeito que provoca o conflito produz uma solução mais rápida. São exemplos ilustrativos de conflitos internos: violência contra mulher, resolvida através do diálogo do coordenador e ameaça de expulsão do acampamento; pequenos furtos, dificilmente solucionados, mas combatidos com discursos de solidariedade e respeito em reuniões; disputas por posses, decididas pelos delegados de área ou assembléia.
A produção normativa tem como paradigma o Regimento da CETA, e como norma fundamental o regimento interno, aprovado em assembléia e apresentado aos novos ingressos no movimento para declaração de respeito ao mesmo. Este simples documento dispõe sobre procedimentos e regras básicas, a exemplo da proibição de venda de posse ocupada ou utilização de drogas e respeito às decisões da assembléia. Não há outros documentos normativos escritos, uma vez que as decisões da assembléia sobre os conflitos internos são as verdadeiras normas do movimento, que são novamente utilizados, na qualidade de precedentes, quando ocorre novo conflito semelhante a outro já decido.
Dessa forma, o Direito em Nova Misericórdia não é abstrato, genérico e impessoal, pelo contrário, tem natureza concreta e especialmente dirigida aos envolvidos no conflito. Com tais inversões, consegue-se concretizar na decisão das assembléias uma Justiça Social, que representa inteiramente a vontade daquela comunidade. Este direito é bem mais eficaz e adequado à situação em que é aplicado, porque é justamente construído e moldado para exatamente esta situação.
É necessário discorrer, ainda que superficialmente, sobre a produção normativa em Nova Misericórdia, porque a realidade observada não corresponde com fidelidade a uma concepção ideal de legitimidade. As discussões na assembléia são democráticas, mas com pouca participação e intervenções restringidas a um pequeno número de pessoas, normalmente somente se referenda as proposições das lideranças. Então, pode-se questionar a decisão desta reunião? Não. Embora ocorra pouca participação da totalidade dos membros, os canais e instrumentos de participação existem e são bastante democráticos, conferindo elementos para assegurar-se a legitimidade das decisões. Talvez a questão resida na cultura individualista de não participação política, que aos poucos, está sendo desconstruída na ocupação.
No que tange à aplicação de tais decisões, encontrar-se-á as maiores dificuldades para a efetividade desta concepção de Direito. A coercibilidade de tal deliberação é garantida pela coesão e força de toda a comunidade, a qual deverá executar e, quando necessário, usar da coerção para efetivar suas decisões. Ocorre que, em alguns casos, principalmente nos momentos de dispersão e enfraquecimento, certas decisões não são cumpridas, sendo exemplar a deliberação da expulsão de membros que não é executada, em face da inexistência momentânea da capacidade de coerção da comunidade.
6.Metodologia e Ações
A pesquisa que identificou as práticas pluralistas supracitadas foi realizada à luz de metodologias participativas e coletivas, baseada na interação e participação entre pesquisador e participantes, rompendo com a clássica dicotomia sujeito-objeto, configurando-se uma pesquisa-ação. Thiollent sugere a seguinte definição:
"A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução do conflito coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo"(THIOLLENT, 1994;14).
A proposta desta metodologia, inicialmente, supera as metodologias tradicionais que se contentam em apenas observar e registrar a realidade. Aqui pretende-se, após a observação, a participação em ações conjuntas entre pesquisador e participantes – nunca objetos de pesquisa – com a finalidade de superar os conflitos existentes, isto é, existe um intento transformador. É importante frisar que a pesquisa-ação significa a observação, problematização, participação e proposição de soluções, sem implicar em imposição do pesquisador na situação pesquisada. Por outro lado, a associação entre pesquisa e objetivos políticos (ações), não obsta o preenchimento dos requisitos de cientificidade/validade, pelo contrário, recoloca os saberes (a ciência) a serviço da sociedade.
O objetivo da pesquisa, para além da investigação da existência de uma concepção de Direito, sempre foi calcado na contribuição do pesquisador na luta cotidiana da comunidade trabalhada. As ações desenvolvidas configuraram-se de fato numa Assessoria Jurídica Popular [12], haja vista que a participação do pesquisador englobou o acompanhamento jurídico e político da ocupação.
Foram realizadas com os membros da ocupação quatro atividades coletivas que objetivaram a autoverificação do pluralismo jurídico. Isto é, através dos referencias da Educação Popular [13], os participantes da pesquisa dramatizaram sua realidade local e suas práticas pluralistas, verificando a existência de um Direito próprio de Nova Misericórdia. Além destas atividades coletivas, a presença habitual nas assembléias ordinárias da ocupação possibilitou verificações de ordem qualitativa sobre a organização política interna, que subsidiaram a elaboração de algumas conclusões aqui apresentadas.
No que se refere à Assessoria Jurídica Popular, deu-se o acompanhamento aos trabalhadores de Nova Misericórdia nos freqüentes depoimentos na Delegacia de Itaparica, acompanhamento das ações possessórias contra a ocupação, a assistência jurídica na ação penal contra os líderes do movimento por descumprimento de ordem judicial (liminar de reintegração de posse), acompanhamento político das ações, petições e visitas a órgãos como a Superintendência de Patrimônio da União-SPU, a Advocacia Geral da União-AGU, Ministério Público Federal-MPF, Instituto Médico Legal, entre outros. Revelou-se, assim, uma colaboração na luta da situação pesquisada, especialmente na fundação e no registro da Associação dos Trabalhadores Rurais da Ilha de Itaparica Unidos Venceremos.
Na abordagem da contribuição desta pesquisa à Universidade, é mister registrar a sua apresentação na I Semana de Iniciação Cientifica da Faculdade de Direito da UFBA, a elaboração, a partir do estudo sobre o marco teórico do pluralismo jurídico, da oficina Acesso à Justiça e Pluralismo Jurídico, para a capacitação inicial do Serviço de Apoio Jurídico da Faculdade de Direito da UFBA. Obteve-se, também, a elaboração de um parecer analisando a situação jurídica da área ocupada, com vistas a utilizar a técnica jurídica para a defesa dos interesses de Nova Misericórdia.
7.Conclusão.
Notadamente, as práticas em Nova Misericórdia são exemplos de um pluralismo jurídico comunitário. Particularmente, a concepção de Wolkmer é a mais aproximada da situação pesquisada, pois se encontra nela todos os elementos constitutivos do pluralismo jurídico. Então, apresenta-se como diagnóstico final à identificação de juridicidades não estatais produzidas na ocupação trabalhada. Delinea-se um direito em Nova Misericórdia, normalmente conflitivo com o Direito Estatal, que regula as relações interindividuais nesta comunidade.
A análise das causas desta produção de normatividades não-estatais indica alguns fundamentos para a ocorrência do pluralismo jurídico: a ineficácia e injustiça do Direito Estatal, que não consegue oferecer um acesso à Justiça célere, justo e barato para as populações mais pobres, obrigando-as a buscar outros meios de soluções dos litígios; A ilegitimidade do ordenamento jurídico, construído para o homem médio – "cidadão burguês", que não regula as situações cotidianas das populações mais pobres, a exemplo da inexistência de norma que disponha sobre o "direito de laje"; a situação de ilegalidade de determinados sujeitos sociais associada à exclusão social (não inclusão no sistema jurídico), como ocorre em Nova Misericórdia, que lhes impede de buscar o Direito Estatal, forjando a produção de um Direito próprio, mais simples, célere, legitimo, eficaz e, por conseguinte, mais justo.
Embora realizando estas práticas de pluralismo jurídico, os trabalhadores de Nova Misericórdia não conseguiram, ainda, superar o medo da Lei Estatal, o que nos sugere a idéia de um mito da legalidade. Mesmo considerando legais suas ações – juízo este fundado na pretensão pela Justiça e não na Lei positiva, estes trabalhadores almejam conformar suas ações externas numa formatação legal. Ou seja, embora produzam um direito próprio interno, demonstram externamente uma adequação ao sistema jurídico estatal, comprovada na fundação de uma associação local de trabalhadores, e registrada em cartório da Ilha de Itaparica. Entretanto, não percebem que, apesar da existência de uma adequação meramente formal à Lei, as decisões desta Associação, em determinados momentos, são conflitivas com o Direito Estatal, a exemplo da ocupação da terra, considerada, numa hermenêutica conservadora, como ato ilícito de invasão à propriedade privada.
Não obstante estas contradições e dificuldades vividas por este Direito de Nova Misericórdia, pensamos que tais práticas possam indicar soluções e caminhos para a saída da crise do Direito na sociedade atual. Talvez, utopicamente, deva-se repensar o Direito, associando-o a pretensões emancipatórias, e não apenas à mera regulação/conservação social. Neste repensar do Direito, a poética da vida também contribui: "Não, não tenho caminho novo. O que tenho de novo é o jeito de caminhar. Aprendi (o caminho me ensinou) a caminhar cantando como convém a mim e aos que vão comigo. Pois já não vou mais sozinho" (MELLO, 2001; 99).
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Notas
1 Cântico tradicional dos movimentos de trabalhadores em luta pela terra, que sempre é cantado nas reuniões do acampamento Nova Misericórdia, como mística e meio de incentivo à luta local.
2 Relatório do Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Lisboa/2003.
3Censo Demográfico 2000, IBGE - SEI/Bahia
4 Pesquisa de Emprego e Desemprego na Região Metropolitana de Salvador (PEA), DIEESE - junho 2003
5 Dependendo das fontes e de metodologias diferenciadas, este valor varia entre 25,5 e 70 milhões de pessoas. Veja artigo: Novo Presidente do IBGE pretende definir índice oficial de pobreza, de Pedro Soares, Folha de São Paulo, 26/02/2003.
6 IBGE, 2003.
7 Além da aplicação de um questionário socioeconômico na ocupação, a pesquisa realizou uma atividade de diagnóstico local. O diagnóstico consistiu em uma atividade de campo coletiva em que a própria comunidade construía seu diagnóstico ao responder, dramatizando e encenando sua história, a perguntas como quem são vocês? De onde vieram? O que vocês querem? Para onde vão?.
8 Respostas obtidas à pergunta: Quem são vocês?
9 Respostas obtidas à pergunta: O que vocês querem?
10 Considerada como paradigma sócio-cultural por Souza Santos (1999; 76-77) assentada em dois pilares básicos – regulação e emancipação, que tem seu projeto esgotado quando ocorre a colonização do pilar emancipatório pelo regulatório. "O paradigma cultural da modernidade constitui-se antes do modo de produção capitalista se ter tornado dominante e extinguir-se-á antes deste último deixar de ser dominante."(SOUZA SANTOS, 1999; 76)
11 Law against Law: Legal Reasoning in Pasargada Law, resultado da pesquisa de campo realizada no ano de 1973 em uma favela do Rio de Janeiro.
12 A Assessoria Jurídica Popular compreende uma intervenção não só judiciária, mas também de orientação, organização e ação política-jurídica, pois entende que a esfera jurídica engloba, além da prestação jurisdicional do Estado, todo o processo constitutivo e organizativo dos movimentos sociais. Depreende-se desta afirmação que, nesta proposta de assessoria jurídica, o elemento político será sempre relacionado com o jurídico, ou seja, não se quer uma mera atuação técnica de um assessor jurídico, vez que esta por si só não corresponde às necessidades destes assistidos, mas uma intervenção que alie fundamentos políticos e jurídicos (OLIVEIRA, 2003; 57).
13 Considera com prática político-educativa, compreendendo que o conhecimento deve ser construído dialogicamente entre o educador e educando, partindo da realidade concreta de opressão para a reflexão-teorização para reconstruir (transformar) a realidade em libertação (OLIVEIRA, 2003; 74). Nas atividades de campo, os participantes encenaram situações cotidianas que se referem desde a história da ocupação, passando relação da comunidade com o Direito e a Lei, até sua forma de organização e resolução dos conflitos.