1. Introdução à Misericórdia.
Agora nós vamos pra luta. 01
Já chega de tanto sofrer
Já chega de tanto esperar
A luta não é tão difícil
Na lei ou na marra nós vamos ganhar
Agora nós vamos para luta
A terra que é nossa ocupar
A terra é para quem trabalha
A história não falha, nós vamos ganhar
Quem gosta de nós somos nós
Aqueles que vem nos ajudar
Por isso confia em quem luta
A história não falha, nós vamos ganhar
Se a gente morrer nesta luta
O sangue será a semente
Justiça vamos conquistar
A história não falha, nós vamos ganhar.
Ao som deste cântico, mais de quarenta trabalhadores rurais aguardavam, na porta do Fórum da Comarca da Ilha de Itaparica, mais uma audiência. Foi a minha primeira audiência, na qual participei como observador, pois sequer possuía carteira de estagiário. Ainda assim, os trabalhadores da ocupação, denominada de Nova Misericórdia, sentiam-se felizes. Não estavam sós.
A audiência demorou, inexplicavelmente, a começar. Somente com a chegada de um aparato policial – duas viaturas e alguns policiais militares, ela teve início. Entramos por entre os policiais que estavam em guarda na porta da sala de audiência. A Juíza, aplicando a fria técnica processual, ratificou minha condição de observador. As testemunhas foram contraditórias e chegaram a afirmar a existência de posse velha de alguns réus. Não obstante tudo isto, pouco dias depois, a liminar de reintegração de posse já estava sendo cumprida, com grande contingente policial. Foi a primeira das três desocupações que sofreriam os trabalhadores rurais na Misericórdia.
Inicialmente, o acompanhamento jurídico da questão, no ano de 2000, levou-me à presença na ocupação por mais de três anos. Felizmente, em 2002, a Universidade Federal da Bahia aprovou um projeto de pesquisa/PIBIC, financiado pelo CNPq, que abordou a organização e resolução dos conflitos internos do acampamento, intitulado, pretensiosamente, de Pluralismo Jurídico e Emancipação Popular. Para além do resultado da pesquisa, é a convivência em Nova Misericórdia, à luz do marco teórico do pluralismo jurídico, o objeto do presente artigo.
Primeiramente, iremos tratar das informações gerais, do diagnóstico local e da história da ocupação, no sentido de situar a conjuntura e o contexto local, isto é, iremos viver a Misericórdia. Após isto, exporemos o referencial teórico que fundamenta a presente análise, qual seja: Crise do Direito e Pluralismo Jurídico. Prosseguiremos com a apresentação das práticas do pluralismo em Nova Misericórdia. Discorremos, também, sobre a metodologia utilizada, acrescida de um breve relato das atividades desenvolvidas. Ao final, concluiremos com algumas reflexões e indagações que nos restaram.
2. Vivendo a Misericórdia.
As políticas neoliberais aplicadas ao Brasil e ao Estado da Bahia agravaram intensamente as desigualdades sociais, retirando grande parte da população do sistema produtivo e social. O nosso país, classificado como 65º colocado no Índice de Desenvolvimento Humano, tem a sexta pior concentração de renda do mundo2.
Na Região Metropolitana de Salvador, não há muita diferença, pois temos, hoje, uma população de 3,13 milhões de pessoas3 e uma taxa de desemprego de 29,7% da população economicamente ativa: de 1.662 mil pessoas economicamente ativas são 496 mil sem emprego4.
Toda esta população compreendida nos índices supracitados encontra grandes dificuldades para assegurar sua existência, inclusive, habitualmente, são consideradas populações excluídas. São comumente chamadas de excluídas as populações que não possuem os meios de sobrevivência e tampouco conseguem vender sua força de trabalho no contexto do desemprego estrutural.
Esse contingente, que no Brasil soma mais de 44 milhões de pessoas5 vivendo em condições subumanas, é abrangido pelo Ordenamento Jurídico Estatal? Conseguem elas obter acesso à Justiça? São respeitados seus direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal? Como agir perante a negativa do próprio direito à identificação e, conseqüentemente, direito à defesa, quando as liminares de desocupações são dirigidas a pessoas indeterminadas, sem qualquer indicação dos nomes ou a qualificação dos réus, como exige o Código de Processo Civil?
A exclusão social significa também exclusão ou não-inclusão no sistema jurídico brasileiro, restando a estes grupos sociais desenvolverem regras ou normas internas para garantia de sua convivência. Precisam estas comunidades, nos seus ambientes – favelas, invasões, ocupações, praças públicas e embaixo dos viadutos – organizar-se para continuar a permanecer nestes locais, e, principalmente, resolver seus conflitos.
Numa brevíssima contextualização histórica, a Ilha de Itaparica, que é uma ilha marítima e área de patrimônio da União Federal, sempre teve ações de grilagem de terras realizadas por fazendeiros que, além do poder econômico e político, abusavam da desinformação da população nativa, para, como ocorrido em alguns casos, vender lotes e logo após tomá-los a força. A beleza natural da Ilha de Itaparica e seu potencial turístico trouxeram-lhe ainda mais disputas possessórias, principalmente causadas pela especulação imobiliária promovida por algumas empresas. Entretanto, atualmente, não há uma política pública estadual turística, gerando um verdadeiro colapso sócio-econômico em Itaparica, que possui 18.945 habitantes e sofre os índices da Região Metropolitana de Salvador, com somente 1110 pessoas ocupadas.6
Com a chegada a Itaparica de ex-lideranças e militantes de movimentos urbanos e agrários provenientes de Salvador e sua Região Metropolitana, os trabalhadores rurais começariam a tentar mudar esta história. Realizaram reuniões, discussões, mobilizações e, fundamentalmente, com a participação de muitas pessoas vindas da periferia de Salvador, constituíram um movimento de trabalhadores em luta pela terra, filiado a Coordenação Estadual dos Trabalhadores Acampados e Assentados – CETA. Agora, os trabalhadores estavam organizados para além de resistir a grilagem de posses e iniciar a ocupação de terras improdutivas.
Logo depois de levantado o primeiro acampamento nas margens da área improdutiva, sofreram a primeira medida liminar da Justiça Local, decorrente de uma ação de interdito proibitório que proibia a entrada dos acampados na terra. Desmancharam as barracas em poucas horas, levantando o acampamento em outro local, mas na mesma área que logo seria ocupada. Assim, prosseguiram por mais duas vezes: cumprindo a determinação judicial de desocupação, para logo em seguida ocupar novamente outra área na mesma fazenda, seguindo uma inteligente tática política-jurídica dos movimentos de luta pela terra.
Em junho de 2003, cansados de dormir em barracas de lona às margens da Rodovia, os trabalhadores de Nova Misericórdia decidiram ocupar o barracão da fazenda, que estava abandonado. Limparam, consertaram e arrumaram o local, que anteriormente servia aos antigos empregados. Depois de conquistado o barracão, resolveram ocupar a, também abandonada, sede da fazenda, simbolizando uma vitória – ainda que provisória, em sua luta. Até a presente data, não há nenhuma medida liminar de reintegração de posse. Intui-se que outro cântico tradicional dos movimentos de luta pela terra irar-se cumprir: "O nosso Direito vem, o nosso Direito vem, se não vir nosso Direito o Brasil perde também."
A pesquisa realizada trabalhou nesta ocupação na Ilha de Itaparica, mais precisamente na entrada do povoado denominado de Misericórdia, situado no Km 4 da Rodovia Estadual Itaparica-Vera Cruz. A comunidade que vive nesta ocupação, chamada de Nova Misericórdia, não deixa de refletir a situação socioeconômica do país, ressalvado naturalmente suas dimensões. Indubitavelmente, podemos considerá-la como composta de pessoas excluídas socialmente, a partir dos dados obtidos em um questionário aplicado nesta comunidade e um diagnóstico local7.
O diagnóstico permite-nos visualizar algumas conclusões importantes através de uma generalização, uma vez que tal atividade teve a participação de apenas uma parte dos acampados. A Nova Misericórdia é constituída por trabalhadores vindos tanto da zona rural como da zona urbana, que estão desempregados e não possuem residência própria, em mais da metade da situação observada. Possuem baixa escolaridade (54,4% com apenas primeiro grau incompleto). Observa-se que, mesmo os trabalhadores de origem urbana, já exerceram atividades rurais, isto é, já tiveram ou têm vínculo com a cultura agrária. Vejamos os principais dados do questionário:
QUESTÃO |
SIM |
NÃO |
||||||
Se já trabalhou em alguma atividade rural? |
76% |
24% |
||||||
Se reside no acampamento todo o tempo? |
76% |
24% |
||||||
Se possui casa própria? |
45% |
55% |
||||||
Analfabeto |
Até o 1º grau |
Superior ao 1º grau |
||||||
Escolaridade |
16,6% |
54,4% |
29% |
|||||
Desempregados |
Empregados |
Aposentados |
||||||
Emprego |
60% |
24% |
16% |
Em tais circunstâncias, há uma clarividência de que o acesso a terra é a possibilidade de sobrevivência mais plausível para estes trabalhadores, uma vez que não mais conseguem sair da condição de exclusão social, face aos indicadores apresentados. Por isso estes trabalhadores se consideram "confiantes em uma reforma agrária", "lutando pela terra em busca de uma vida melhor" e "pessoas dignas e necessitadas"8. Almejam "dias melhores", "plantando e comendo o algo que plantam" em um "assentamento digno com projetos agrícolas e residências"9.
Apesar deste projeto comum de luta pela terra, verificou-se que menos de um terço dos membros residem e trabalham todo o tempo na área ocupada, enquanto os outros - a grande maioria, freqüentam, em média, duas vezes por semana, a ocupação, oportunidade em que cultivam suas áreas de terra e participam das reuniões. Esta ausência, justificada pela busca de renda em algum trabalho informal em Salvador, termina enfraquecendo o movimento, porque efetivamente vivem quarenta pessoas no acampamento, aproximadamente oitenta pessoas participam das reuniões, embora tenham cento e vinte famílias cadastradas em Nova Misericórdia. Por outro lado, nota-se a ausência de membros da faixa de dois ou três anos de permanência no movimento. Somente se encontra uma geração mais velha (mais de três anos) e gerações mais novas (menos de dois anos). Isto ocorre, talvez, porque esta geração de dois a três anos de ocupação sofreu as três desocupações judiciais e não participou de momentos em que vislumbrassem a possibilidade de êxito na luta pela terra, e, portanto, tenha desistido de continuar na ocupação.
3. Crise do Estado e do Direito.
Nesta sociedade globalizada, principalmente nesta vertente da expansão da exclusão social, observam-se inúmeras transformações de ordem política, econômica, social e cultural em relação ao período que engendrou o modelo atual do Estado e do Direito. Não nos cabe aqui adentrar nestas transformações, devendo-se apenas registrar algumas importantes, como o processo de globalização, o neoliberalismo, o desemprego estrutural, o intenso desenvolvimento tecnológico alocado como modo de produção, o enfraquecimento das organizações sindicais e partidos tradicionais de esquerda, surgimento de novos movimentos sociais e organizações não governamentais, entre outros. Gohn assim assevera:
"O desenvolvimento explorador e espoliativo do capitalismo, a massificação das relações sociais, o descompasso entre o alto desenvolvimento tecnológico e a miséria social de milhões de pessoas, as frustrações com os resultados do consumo insaciável de bens e produtos, o desrespeito à dignidade humana de categorias sociais tratadas como peças ou engrenagens de uma máquina, o desencanto com a destruição gerada pela febre de lucro capitalista etc. são todos elementos de um cenário que cria um novo ator histórico enquanto agente de mobilização e pressão por mudanças sociais: os movimentos sociais." (GOHN, 2001; 16)
Souza Santos considera tais transformações tão importantes que defende que elas indicam a transição para um novo paradigma sócio-cultural, chamado de pós-modernidade, posto que sinalizam a crise na sociedade, embora dentro do modo de produção capitalista. Evidentemente, detecta-se sérias repercussões no Direito. Precisamente, implicam numa crise na concepção e função do Direito na sociedade contemporânea.
O paradigma moderno jus-filosófico de natureza formal-positivista, individualista e patrimonialista é ainda o pensamento hegemônico na sociedade atual. Considera-se este direito moderno como aquele constituído por "proposições legais abstratas, impessoais e coercitivas, formuladas pelo monopólio de um poder público centralizado (o Estado), interpretadas e aplicadas por órgãos (Judiciário) e por funcionários estatais (os juízes)" (WOLKMER,1999; 61). Assim, é este paradigma que promove a identificação do Direito somente à Lei positiva, conseqüentemente, só é Direito aquilo que é produzido pelos espaços legislativos do Estado, isto é, Direito é totalmente proveniente do Estado. A defesa desta concepção legalista correspondia aos interesses/anseios da classe político-social recém chegada ao poder. O prof. Wolkmer considera esta ideologia jurídica como resultado da associação do projeto filosófico da modernidade com o modo de produção capitalista. Vejamos:
"A cultura jurídica produzida ao longo dos séculos XVII e XVIII, na Europa Ocidental, resultou de um específico complexo de condições engendradas pela formação social burguesa, pelo desenvolvimento econômico capitalista, pela justificação do interesse liberal-individualista e por uma estrutura estatal centralizada. Certamente que este entendimento não só compartilha da idéia de que subsiste em cada período histórico uma prática jurídica dominante, como sobretudo, confirma a concepção de que o Direito é sempre produto da vida organizada enquanto manifestação de relações sociais provenientes das necessidades humanas." (WOLKMER, 2000; 1)
Dessa forma, a única fonte de produção jurídica restringe-se ao Estado, que centraliza toda a produção normativa. Instaura-se o monismo jurídico.
A sociedade contemporânea, notadamente nos seus momentos de crise e grave instabilidade social, reflete a crise deste modelo de monismo jurídico. É que justamente esta concepção de Direito não consegue mais regular ou oferecer parâmetros de resolução dos conflitos nesta nova realidade atual. Estas instabilidades ou crises sociais provocam também crises no Direito ou, nos termos de Wolkmer (1997; 62), "o esgotamento do modelo jurídico tradicional". É preciso perceber que o Estado, notadamente o seu modelo atual centralizador e burocrático, não consegue mais produzir normatividades capazes de corresponder à nova organização social.
Nesse sentido, torna-se imperioso um novo olhar jurídico para esta realidade. Urge um olhar que reconheça na realidade viva a existência de normas sociais produzidas por outros atores e circunstâncias bem distintos do Estado. É preciso compreender também como Direito a produção normativa da sociedade que efetivamente regula os conflitos no cotidiano. É nesse novo olhar jurídico que encontramos a noção de pluralismo jurídico.
Diante das inúmeras definições de natureza filosófica, política, sociológica e histórica para o pluralismo jurídico, percebemos que o "principal núcleo para o qual converge o pluralismo jurídico é a negação de que o Estado seja o centro único do poder político e a fonte exclusiva de toda a produção do Direito."(WOLKMER, 1999; XI). O professor catarinense conceitua como pluralismo jurídico a "multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais" (WOLKMER, 1999, XII).
Já Souza Santos entende que "existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou não) mais de uma ordem jurídica"(SOUTO, 2002, p. 87). Filiamo-nos à posição de Wolkmer, quando exige das ordens jurídicas existentes uma fundamentação nas necessidades humanas e numa valoração ética, o que impele ao reconhecimento da situação de pluralismo somente quando correlacionada com a emancipação social.
4. Pluralismo Jurídico.
O Pluralismo jurídico sempre existiu nas sociedades. A dinâmica social sempre produziu, até hoje, normas ou procedimentos para a regulação social, independentemente da elaboração das leis ou normas estatais. Embora, com a modernidade 10 e modo de produção capitalista, sintetizados no Estado centralizador e burocrático, ocorresse a exclusiva validação do monismo jurídico.
O Império Romano, com o Direito Romano e o Direito dos povos conquistados, a Idade Média, com o Direito do Rei, o Direito da Igreja Católica, o Direito dos Senhores Feudais e o Direito dos Comerciantes, indicam que, nesses momentos históricos, era latente a existência, conflitiva ou paralela, de uma pluralidade de ordenamentos vigentes no mesmo espaço político-social.
Com a ascensão da burguesia ao Poder, associada à filosofia positivista, houve a necessidade da centralização, organização e uniformização pelo aparelho estatal da produção jurídica. Conseqüentemente, assegurava-se uma ordem e estabilização social que representasse os interesses da elite política. Dessa forma, não convinha à burguesia uma cultura jurídica plural, mas, sobretudo, desejava-se um discurso de ordem e regulação, talvez simbolizado na retórica da segurança jurídica, notadamente na proteção da propriedade privada.
A defesa da idéia da pluralidade de ordenamentos a partir do século XX teve como jusfilósofos o alemão Otto Von Gierke, os italianos Santi Romano, Giogio Del Vecchio, Cesarini Sforza, nos franceses Maurice Harriou e Georges Renard, ainda que alguns destes autores afirmassem a supremacia do Direito Positivo. Registre-se que, apesar de uma matriz eclética, podemos encontrar concepções de pluralismo jurídico em Henry Levy-Bruhl, Jean Carbonier, Jacques Vanderlinden, Jean-Guy Belley e Masaji Chiba, segundo Wolkmer (1997; 181/182)
Com a devida atenção, é mister ressaltar as concepções de Eugen Erlich e Georges Gurvitch. Erlich compreende que o direito além das prescrições estatais é aquele direito vivo, advindo das relações concretas e cotidianas da vida das pessoas, das associações e organismos sociais. Segundo Erlich, "para conhecer o estado real do direito, temos de investigar o que a sociedade humana produz" (SOUTO, 1999; 114). Enfim, este sociólogo do Direito considera que "uma pequena parcela do Direito (Direito Estatal) é que emana do Estado" (apud WOLKMER, 1999; 179).
No mesmo sentido, Georges Gurvitch desenvolve uma concepção complexa de pluralismo jurídico. Sustenta Wolkmer (1999; 179) que Gurvitch:
"Entende que a legislação estatal não é a única nem a principal fonte do mundo jurídico, existindo outros numerosos grupos sociais ou sociedades globais, independentes do Estado e capazes de produzir formas jurídicas. Cada grupo possui uma estrutura que engendra sua própria ordem jurídica autônoma reguladora de sua vida interior"
Após a Segunda Guerra Mundial, pode-se identificar também concepções pluralistas em Leopold Pospisil, Sally Falk More, baseados em análise de natureza antropológica. Apesar da existência destas produções, somente com What is Legal Pluralism, de Jonh Griffiths, ocorreu uma genuína ruptura com o centralismo jurídico (WOLKMER, 1999; 185). Para Griffiths, existe um pluralismo legal, aquele permitido e tolerado pelo Estado, e o verdadeiro pluralismo, este gestado na sociedade e fora do controle do Estado.
O sociólogo português Souza Santos, em pesquisa, conhecida internacionalmente, para sua tese de Doutorado 11, propõe a definição de pluralismo jurídico como a multiplicidade de ordenamentos jurídicos no mesmo espaço geopolítico, de forma oficial ou não. Para este autor, somente a existência no mesmo espaço político-social de mais de uma normatividade configura o pluralismo jurídico.
No Brasil, mesmo sem uma consistência clara, encontramos idéias atinentes à concepção de pluralidade de ordens jurídicas em Oliveira Viana (Instituições Políticas Brasileiras), José de Mesquita (Direito Disciplinar do Trabalho), Evaristo de Morais Filho, André Franco Montoro (Introdução à Ciência do Direito), Miranda Rosa, José Joaquim Falcão (Justiça Social e Justiça Legal: conflitos de propriedade no Recife), entre outros.
Em Souza Junior, podemos identificar também a noção de pluralismo: "A visão dialética alarga a compreensão do fenômeno jurídico, deslocando-o para mais além que os restritos limites do direito meramente positivado até alcançar a realidade de ordenamentos plurais e conflitantes" (SOUZA JR, 1984; 18). Reconhece, assim, que a concepção de Direito deve estar relacionada com a realidade social e não apenas com as leis positivas.
"O que a pluralidade de ordenamentos suscita está na formulação do ubi societas, ibi jus [aonde há sociedade há Direito], resultado do reconhecimento antropológico de que o direito antecede e sucede as formas de paralisação de positividades, no que concerne ao controle de comportamentos sociais." (SOUZA JR, 1984; 59)
Para Lyra Filho, o fundamento da pluralidade de ordenamentos é a pluralidade de segmentos sociais, isto é, a sociedade classista e em luta (apud SOUZA JR, 1984; 58). Dessa forma, os direitos positivos são as normatividades impostas ou reconhecidas pela classe dominante a partir da produção normativa das classes sociais.
Neste manancial de proposições sobre o pluralismo jurídico, adotamos a esboçada pelo professor catarinense, Antônio Carlos Wolkmer, posto que é a mais adequada em termos políticos e conceituais à pesquisa realizada, porque baseada antidogmaticamente na prevalência dos fundamentos éticos-sociológicos sobre os tecnoformais. Wolkmer considera como pluralismo "multiplicidade de práticas existentes num mesmo espaço sócio-político, interagidas por conflitos ou consensos, podendo ser ou não oficiais e tendo sua razão de ser nas necessidades existenciais, materiais e culturais" (WOLKMER, 1999, p. XII).
Observa-se, a partir da análise de Wolkmer (1999), que esta concepção agrega novos elementos que compõem o conceito de pluralismo jurídico. Além da pluralidade de normatividades no mesmo espaço sócio-político, o pluralismo defendido por Wolkmer é produzido por novos sujeitos sociais, caracterizados pela cultura da descentralização, democracia, participação política e ação direta, movidos por necessidades fundamentais de natureza existencial, material e cultural, à luz de uma ética da alteridade.
Estes atores são considerados novos em virtude de romperem com a forma clássica de participação política (independência dos partidos políticos), constituindo movimentos autônomos, participativos e com uma nova dinâmica de organização e ação política. São caracterizados pela organização interna descentralizada, democrática, sem hierarquias e, normalmente, pautando seus movimentos políticos em ações diretas.
As ações destes sujeitos são baseadas na luta pela satisfação das suas necessidades fundamentais. Tais necessidades estão situadas no plano existencial, material e cultural, em razão de abrangerem desde o respeito e resgate da subjetividade destes atores, passando pela obtenção de condições dignas de sobrevivência, até a defesa e preservação de sua cultura específica ou diversidade cultural. Não se restringem a uma reivindicação da efetividade dos direitos positivos, vão muito além, exigem o reconhecimento e garantia de novos direitos.
No plano axiológico, estes novos sujeitos e suas ações são norteados por valores totalmente antagônicos com os atualmente predominantes, ou seja, são conflitantes com o individualismo, a desumanização, perda da identidade cultural, irracionalismo, entre outros. Wolkmer propõe uma ética concreta da alteridade, expressada na emancipação individual e social, autonomia, solidariedade e justiça, realizada e inspirada na práxis destes novos sujeitos e situada na cultura latino-americana:
"A ética da alteridade é uma ética antropológica da solidariedade que parte das necessidades dos segmentos humanos marginalizados e se propõe a gerar uma prática pedagógica libertadora, capaz de emancipar os sujeitos históricos oprimidos, injustiçados, expropriados e excluídos." (WOLKMER, 1999; 241)
Com a exigência destes elementos propostos por Wolkmer, a concepção de pluralismo jurídico efetivamente assume um paradigma emancipatório. Assim, não se pode aceitar como exemplos de pluralismo jurídico a atual situação de "estado paralelo" do narcotráfico no Rio de Janeiro, tampouco a ação dos grupos de extermínio nas favelas e invasões, a exemplo do que ocorre cotidianamente em Salvador, pois lhes carecem o referencial da ética da alteridade e uma justificativa nas necessidades fundamentais.