Introdução
Inicio neste trabalho um estudo sobre o Tribunal do Júri, mais especificamente a respeito do pensamento do jurado sobre a instituição e algumas de suas peculiaridades. Não, não pretendo revisitar a doutrina sobre a formação do Conselho de Sentença, muito menos comentar julgamentos de casos específicos. A ideia aqui é, em dois volumes – cuja leitura do primeiro se iniciou neste parágrafo –, apresentar o resultado de uma pesquisa empírica realizada com o juiz leigo, desnudando uma parte encoberta por uma espessa névoa de conhecimento acerca do que o jurado pensa.
Na consciência popular, o júri é palco quase exclusivo dos criminalistas habilidosos na oratória e promotores com amplo domínio do vernáculo, distribuídos elegantemente num cenário clássico, repleto de simbologia e espírito democrático. Os jurados, nesse contexto, revestem-se, mesmo que por algumas horas, de vestimenta própria dos juízes togados, alçando o povo ao Olimpo dos julgadores máximos do Estado. Há também quem imagine este tipo de julgamento como teatro; um espaço de cartas marcadas onde a melhor atuação é vitoriosa, aproveitando-se de uma suposta ingenuidade dos juízes leigos.
Entender a dinâmica desse complexo modelo de julgamento é, entretanto, atividade mais mundana do que a pompa do Tribunal Popular parece exigir. Todos que o compõem – sem exceção – são humanos, com conhecimentos teóricos e práticos terrestres, defeitos, tiques e pré-conceitos, trabalhando sob as mesmas regras jurídicas e sujeitos às mesmas influências externas. Logo, o júri pode – e deve – ser estudado cientificamente como construção humana, verificando hipóteses no campo prático.
Na elaboração da minha dissertação de mestrado, realizei, no mês de março de 2016, pesquisa entre os jurados das 5 (cinco) Varas do Júri existentes na Comarca de Fortaleza1. Contando com 27 (vinte e sete) itens, o questionário aborda, nos 10 (dez) primeiros, assuntos relacionados à definição do perfil do jurado na capital do Ceará, objeto daquele trabalho científico. Nos outros 17 (dezessete), trato da opinião dos jurados sobre temas diversos, pertinentes ao julgamento em si e às partes.
Foram perquiridos 93 (noventa e três) jurados2, após autorização dos Juízes Presidentes. Reforcei a importância da pesquisa empírica no direito e da relevância dos dados ali colhidos, evidenciando o sigilo das informações. As questões rasuradas ou não marcadas foram desconsideradas para efeito de estatística, constando nos gráficos apenas as respostas válidas.
Com essa explanação inicial aos jurados, busquei deixá-los à vontade para responder, visto a desconfiança natural – mesmo informados tratar-se de uma pesquisa acadêmica de mestrado – derivada de uma pesquisa com o juiz leigo, realizada por um advogado3, sobre seu perfil e opiniões acerca do júri, as partes e o julgamento. Afirmo, entretanto, a partir das respostas colhidas e compiladas, que o resultado foi positivo, com baixo índice de questões em branco/rasuradas.
Apresentarei neste e no próximo artigo os resultados deste questionário, trazendo uma análise sucinta dos dados colhidos, comparando, quando cabível, à lei e à prática alcançada com anos de experiência no Tribunal do Júri, na acusação e defesa. O objetivo é claro: entender como pensam os jurados4, através de estudo estatístico, além de fomentar os discursos das tribunas.
1. Quem são os jurados?
Antes de expor os resultados da pesquisa, é fundamental detalhar quem são os jurados: entender a que grupos sociais pertencem, grau escolar, gênero, enfim, a origem e características desse seleto grupo de pessoas maiores de 18 anos e de notória idoneidadev.
No Brasil, o regramento sobre o alistamento dos jurados encontra-se nos arts. 425 e 426 do Código de Processo Penal (CPP). Em suma, o juiz presidente (togado) deve acumular um número significativo de potenciais jurados, requisitando nomes às autoridades locais, associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino em geral, universidades, sindicatos, repartições públicas e outros núcleos comunitários (art. 425, § 2º, CPP), extraindo dessa lista os 25 (vinte e cinco) que comporão o Conselho de Sentença na reunião periódica ou extraordinária (art. 433, CPP).
O objetivo de tudo isso é selecionar um grupo de julgadores o mais heterogêneo e representativo possível. A ideia é buscar a imparcialidade do julgamento pela diversidade dos jurados, alcançando o espírito de um julgamento efetivamente popular6.
Bonito, interessante, mas irreal. A prática revela uma realidade completamente distinta quase em todo o Brasil. Em Fortaleza, a práxis demonstra-se mais desconectada ainda do texto legal. A deturpada seleção7 gera um corpo de jurados com perfil definido, distante da composição social da comunidade. O questionário (2016) revelou que há desequilíbrio na representação social dentro dos conselhos de sentença. Apenas um segmento bem definido ocupa a maioria dos assentos, estabelecendo o seguinte perfil: servidor público, graduado ou especialista, casado, mais de 40 (quarenta) anos de idade, com renda entre 4 (quatro) e 10 (dez) salários-mínimos, experiente na função de juiz leigo.
Essas considerações são importantes para interpretar as respostas dadas aos questionamentos sobre o julgamento e os atores. Ainda assim, as informações são fundamentais para compreender os processos decisórios no júri brasileiro, já que a realidade de Fortaleza é, infelizmente, regra nos Tribunais do Júri no Brasil, especialmente nas capitais.
2. Tempo de “casa”: a perpetuação na função de jurado
A Lei 11.689/08 alterou grande parte do rito do júri. Uma das mudanças, para melhor, atacou uma verdadeira anomalia: o juiz leigo profissional. Os benefícios estipulados em lei favorecem a participação de servidores públicos, não podendo sofrer desconto algum nos vencimentos quando na função (art. 441, CPP).
Como a maioria das Varas do Júri seleciona jurados através de inscrição, este grupo específico encontrou espaço para se perpetuar como jurado. Assim, era comum nos corredores do Fórum encontrar jurado com 15 (quinze), 18 (dezoito) anos na função. Este sequer era reconhecido na “repartição” onde trabalhava.
O cenário alterou-se a partir de 2008. Além do obstáculo legal à continuidade, ano após ano, na função, os jurados encontraram outros desestímulos à inscrição. Os órgãos públicos provedores de jurados (estaduais e, especialmente, municipais), criaram restrições à ausência do servidor: o jurado poderia faltar ao trabalho nos dias de júri (para alguns órgãos, caso o servidor não fosse sorteado, voltaria ao trabalho no mesmo dia), devendo comparecer normalmente ao serviço nos dias sem julgamento.
Mesmo assim, motivados pelo modo peculiar de seleção na capital cearense, os servidores públicos predominam entre os jurados:
O tempo de participação, entretanto, teve impacto substancial com a Lei 11.689/08:
Agora, uma minoria (10%) possui mais de 4 anos de experiência na função, e mais de 70% dos jurados estão apenas no 1º ou 2º ano como juiz leigo. É um exemplo claro de como a resposta legal pode ser eficaz, quando elaborada consciente do problema e aplicada na prática. Hoje, a figura do jurado profissional está praticamente banida dos corredores forenses.
A mudança prática aplicada pelos órgãos públicos também obteve sucesso. O “ano sabático”, como era conhecida a reunião periódica (na capital, 1 ano), deixou de existir. Quase a totalidade dos jurados trabalhava durante o exercício da função:
A perpetuação do jurado na função deixou, felizmente, de ser um problema em Fortaleza. O jurado “viciado”, acostumado com as partes e o modo de exposição das (mesmas) teses é incompatível com seu caráter leigo (juridicamente falando), circunstância principal que define o julgamento popular.
Se este ou aquele é o melhor meio de julgamento, é uma outra questão.
3. A imersão no júri dá ao jurado conhecimento técnico? E isso importa?
Dizer que o jurado é leigo não exclui, logicamente, o background de vida que a pessoa carrega. Na verdade, o Estado conta com a experiência do julgador e sua vivência em comunidade para, dentro de um caso concreto, aferir se a conduta do réu merece repreensão ou não. O que não se exige, logo, é o conhecimento técnico em direito, já que, em tese, é desnecessário (em profundidade) na avaliação de mérito da ação/omissão humana no caso concreto.
Ainda sobre a formação do jurado em Fortaleza, verifica-se um nível escolar elevado, mesmo que não em direito:
Como se percebe, 63% dos jurados são pós-graduados (em diversas áreas, como letras, engenharia, pedagogia, etc.), ou seja, possuem nível social e acadêmico diferenciado, em comparação à média local. Por vezes, em diversos cursos, os estudantes têm contato com a área jurídica (disciplinas como direito administrativo, análise econômica do direito, medicina legal, etc), levando-os a uma mínima familiaridade com a linguagem jurídica.
Entretanto, é na participação constante dos jurados nos julgamentos (ficam, de regra, por 1 ano à disposição do juízo) que aqueles adquirem maior conhecimento da lei penal e processual penal. Não raro (pra não falar sempre) a apresentação das teses acusatória e defensiva são permeadas de explicações jurídicas, lastreadas na lei e na Constituição. Cedo, os juízes leigos aprendem o mínimo sobre legítima defesa, violenta emoção e feminicídio, por exemplo. Perguntados sobre o conhecimento técnico-jurídico:
Pouco mais da metade dos jurados alega possuir algum tipo de conhecimento jurídico, seja doutrinário ou legal, ou mesmo os dois. Não se pode deixar de comparar com os números referentes ao tempo de “casa”: metade dos jurados estão no segundo ano ou mais de júri. Por certo, a atividade laborativa da grande maioria (servidor público) indica que, em algum momento da vida, os juízes leigos estudaram alguma matéria jurídica. Entretanto, a praxis no júri, sem dúvida, conferiu confiança ao jurado para responder positivamente a este questionário nesta pergunta.
Mas, a final de contas, o conhecimento jurídico é necessário ao juiz leigo?
Para a maioria dos jurados (53%), é necessário algum tipo de conhecimento técnico do direito. Na verdade, a percentagem equivale aos juízes leigos que afirmam possuir algum tipo de conhecimento legal/doutrinário. Aparentemente, a julgar pela natureza humana, o jurado acha importante aquilo que possui, enquanto desconsidera aquilo que não tem. Isso, entretanto, de maneira alguma, os faz pensar que são inaptos a julgar.
Ambos os lados (os que possuem conhecimento jurídico e os que não) apostam na correção de suas decisões: para os jurados, a credibilidade no veredicto independe do conhecimento técnico, como se verá a seguir.
4. O júri como instrumento de justiça: a confiança no sistema
Os jurados, especialmente nas capitais, passam quase 1 ano imersos no júri. Isso lhes dá conhecimento profundo do funcionamento da máquina, além de oportunizar uma análise real de como o direito é abordado na prática por acusação e defesa. Esta ciência do procedimento, na sua fase principal, confere àqueles confiança no modelo de julgamento, posto que, na maioria, julgam os casos com responsabilidade e atenção.
Não surpreende, logo, que a maioria dos jurados acredite ser os veredictos justos:
O senso de justiça vai ao encontro da percepção do jurado na avaliação da prova (o resultado do júri) em comparação ao seu voto. Todos os júris, invariavelmente, são decididos pela maioria. Natural que a maioria os repute justos.
E por julgarem casos importantes, por vezes midiáticos, compreendem sua importância para o sistema. O papel exercido é, portanto, bem conhecido:
A maioria absoluta compreende a responsabilidade da função que julgam importante, assim como sua participação. Numa cidade violenta como Fortaleza, com altos índices de homicídio, esse papel ganha mais destaque:
Os jurados testemunham os momentos derradeiros do procedimento: a fase final do júri, passados instrução preliminar e, possivelmente, recursos (em sentido estrito, por exemplo). A sentença é proferida no momento seguinte à votação: não há delay. Na percepção do jurado, então, aquele é o último ato do processo, a grande chance de se “fazer justiça”. Ele sabe que tem papel importante. E, convém lembrá-lo sempre, para garantir a atenção até o fim8.
Nesse contexto, confiante na sua capacidade de avaliação das provas, independente de conhecimento técnico, conhecedores das engrenagens do processo decisório no júri, boa parte dos jurados escolheria – se possível – este modelo de julgamento para ser processado, caso cometessem algum crime:
A confiança no sistema – que, sem dúvida, perpassa pela confiança neles mesmos – é evidente. Representam a sociedade, acreditam ser as sentenças justas e, assim, combatem a violência na cidade. Para significativa parte dos jurados, a competência poderia até ser ampliada:
Os dados informam uma boa percepção do júri e do julgamento pelos jurados. Possuem estima pela função, conhecem suas virtudes e confiam nas decisões do Conselho dos Sete. Resta saber se compreendem o que significa, num julgamento, as garantias individuais (como o direito ao silêncio); como avaliam a produção de prova (interrogatório, jurisprudências, testemunhas, etc.), e, principalmente, como veem as partes em (no) jogo. Será que há equilíbrio entre acusação e defesa no júri?
Um ponto, ao menos, fica claro: quem (leigo) conhece o júri compreende suas virtudes. Veremos no volume 2 deste estudo como a parte técnica se sai na avaliação dos jurados e como driblar as dificuldades daí surgidas.
Notas
1Até 2011, Fortaleza possuía 6 (seis) varas do Júri, perdendo a última (substituída pela 9ª Vara da Fazenda Pública) por conta da alteração do Código de Divisão e Organização Judiciária do Estado do Ceará (Lei 12.342/94) pelo art. 2º da Lei 14.258/08, funcionando hoje 5 (cinco) varas na capital.
2 17 (dezessete) jurados na 1ª Vara do Júri, 19 (dezenove) na 2ª Vara do Júri, 17 (dezessete) na 3ª Vara do Júri, 21 (vinte e um) na 4ª Vara do Júri e 19 (dezenove) na 5ª Vara do Júri, totalizando 93 (noventa e três) participantes.
3 Por mais que destaquemos o caráter científico da pesquisa, compreendemos o receio natural dos jurados em responder qualquer questionário, visto, entre outras razões, a baixa ou nenhuma ocorrência deste tipo de abordagem, como já destacado anteriormente.
4Dito de outra forma, a ideia é fornecer elementos que permitam um melhor desempenho dos jogadores. Para mais informações, ver Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos, de Alexandre Morais da Rosa.
5Art. 436 do Código de Processo Penal.
6Essa busca por imparcialidade a partir da formação do Conselho de Sentença é constante no sistema judicial americano. Em Glasser v. United States (315 U.S. 60,1942), a Suprema Corte americana sustentou que a exclusão de mulheres da lista de jurados violava a Cláusula de Imparcialidade, expressa na Sexta Emenda, concluindo que o jury pool dos julgamentos federais deve representar uma amostra justa dos principais segmentos da sociedade, citando, pela primeira vez num voto vencedor, o termo fair cross-section of the community. Sobre a igualdade de condições na participação da mulher em júris, em contraposição a dos homens, assim se manifestou Justice William O. Douglas, no caso Ballard v. United States (329 U.S. 187 1946), “the thought is that the factors which tend to influence the action of women are the same as those which influence the action of men – personality, back ground, economic status – and not sex. Yet it is not enough to say that women when sitting as jurors neither act nor tend to act as a class. Men likewise do not act as a class. But, if the shoe were on the other foot, who would claim that a jury was truly representative of the community if all men were intentionally and systematically excluded from the panel?”.
7Para mais informações, ver BROCHADO NETO, Djalma Alvarez. Representatividade no Tribunal do Júri brasileiro : críticas à seleção dos jurados e propostas à luz do modelo americano. 2016. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, Ceará.
8Aqui cabe um parêntesis: a “justiça” ainda está muito atrelada a imagem de condenação e, principalmente, prisão, resquício forte do sistema inquisitorial que insiste em permear o judiciário (e além). Convém, logo, lembrar a todo momento que fazer justiça é ter um resultado compatível com a prova colhida no processo.