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A adoção de softwares livres pelas diversas esferas da administração pública.

Alguns aspectos jurídicos de um ambiente de disputas econômicas

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03/11/2005 às 00:00
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3. Da correta situação do negócio do software livre no âmbito da concretização dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil

Nas linhas imediatamente anteriores, percebeu-se o positivo e paulatino crescimento mundial da utilização de programas abertos pelas diversas esferas nacionais e estrangeiras da Administração Pública, o que gerou o atual fenômeno da efervescência legislativa sobre a matéria. Diferentemente de outros assuntos jurídicos, cuja propagação ou, por assim dizer, a tropicalização, demanda alguns anos ou algumas dezenas deles, os temas referentes à sociedade da informação desenvolvem-se em uma perspectiva globalizada e sincrônica, assumindo importância ímpar o papel do operador do direito. A notória falta de experiência legislativa dos Estados a respeito de determinados domínios jurídicos, decorrente desse assinalado progresso simultâneo vivenciado por todo o mundo, reclama cautelas redobradas do intérprete das normas.

A propósito, o alemão Karl Larenz, em sua conhecida obra intitulada "Metodologia da Ciência do Direito", leciona que:

" é, como tínhamos dito (cap. I, em 3a), . O texto da norma torna-se problemático para quem a aplica atendendo à aplicabilidade da norma precisamente a uma situação de facto dessa espécie. Que o significado preciso de um texto legislativo seja problemático depende, em primeira linha, do facto de a linguagem corrente, de que a lei se serve em grande medida, não utilizar, ao contrário de uma lógica axiomatizada e da linguagem das ciências, conceitos cujo âmbito esteja rigorosamente fixado, mas termos mais ou menos flexíveis, cujo significado possível oscila dentro de uma larga faixa e que pode ser diferente segundo as circunstâncias, a relação objectiva e o contexto do discurso, a colocação da frase e entoação de uma palavra. Mesmo quando se trata de conceitos em alguma medida fixos, estes contêm frequentemente notas distintivas que, por seu lado, carecem de uma delimitação rigorosa." [11]

Com a intenção de aclarar o conteúdo do que se entende sobre software livre, deve-se partir da Lei Federal nº 9.609/98, a qual "Dispõe sobre a proteção da propriedade intelectual de programa de computador, sua comercialização no País, e dá outra providências", e que, em seu art. 1º, estabelece:

"Art. 1º Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados."

Sob o prisma dessa disposição, softwares livres e proprietários são, na essência, a mesma coisa; ambos são programas de computadores, expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada.

Todavia, há distinções entre as espécies. De fato, a diferença específica entre as modalidades mencionadas reside num aspecto particular. Como anota o Guide de choix et d’usage de licences de logiciels libres pour les administrations, editado pela Agence pour les Technologies de l’information et de la Communication das l’AdministrationATICA, da França, in verbis:

"De um ponto de vista jurídico, um programa livre é antes de tudo um programa protegido pelo direito autoral e submetido a uma licença que regulamenta e delimita os respectivos direitos e obrigações. Freqüentemente oposto ao programa proprietário, que habitualmente não comporta nada além que o direito de uso, o programa livre dele se distingue pelos direitos mais importantes conferidos, pelo titular do programa, aos beneficiários da licença. Um programa livre é, portanto, sujeito ao direito do autor e ao código de propriedade intelectual. Sua licença permite, assim, a utilização de um programa, mas ela permite igualmente, ao beneficiário da licença, estudar o funcionamento do programa – o que é possível em certos casos e sob certas condições com o programa proprietário –, modificar o programa por sua própria conta e redistribuir as modificações por ele efetuadas – o que é geralmente vedado com os programas proprietários." [12]

Portanto, programas fechados e livres distinguem-se em razão direta dos direitos que conferem aos respectivos usuários, ou seja, cuida-se de negócios distintos, e não propriamente de tipos diversos de produtos ou de programas. Enquanto a licença do software proprietário autoriza apenas sua utilização pelo contratante, a do programa aberto permite, por meio do acesso ao correspondente código fonte, sua utilização, sua cópia, sua alteração e sua redistribuição. Essa tônica negocial nota-se, por exemplo, na lei do Estado do Rio Grande do Sul, questionada na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.059, in verbis:

"Art. 1º (...)

§ 1º Entende-se por programa aberto aquele cuja licença de propriedade industrial ou intelectual não restrinja sob nenhum aspecto da cessão, distribuição, utilização ou alteração de suas características originais, assegurando ao usuário acesso irrestrito e sem custos adicionais ao seu código fonte, permitindo a alteração parcial ou total do programa para seu aperfeiçoamento ou adequação."

No entanto, quando a entidade estatal elege o software livre como meio negocial para consecução do interesse público, as distinções em face do programa fechado fazem-se ainda mais nítidas. Ocorre que a forma particular de negócio, inerente aos programas abertos, dá densidade aos fundamentos do Estado brasileiro (à soberania, à cidadania e à dignidade da pessoa humana), bem como aproveita aos seus objetivos de "construir uma sociedade livre, justa e solidária" e "garantir o desenvolvimento nacional". É que a relativização do direito de propriedade autoral consubstanciada no compartilhamento social do código fonte dos programas de computadores, subjacente à noção de software livre, ao fim e ao cabo, exprime o melhor e mais ostensivo atendimento ao princípio constitucional da função social da propriedade.

Aliás, de acordo com o que já se mencionou, o Estado tem um papel relevante na formação do ambiente de desenvolvimento dos softwares abertos. Ao elegê-los como instrumento de suporte à sua atuação, a entidade estatal vale-se de seu poder de compra para o incremento do correspondente mercado consumidor, o que, claramente, insere-se no âmbito do planejamento econômico. Mais precisamente, trata-se de uma intervenção do ente público no domínio econômico para fomentar determinada sorte de atividade.

Finalmente, reduzir o debate da adoção do software aberto pelo setor público aos estreitos limites da licitação como pretendem os opositores – ainda que, no campo léxico, as sistemáticas normativas a ela se refira – significa desprezar a real dimensão do tema, consistente na democrática atuação da Administração Pública. Renegar essa perspectiva maior traduziria um desrespeito aos valores fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, que apenas têm a ganhar concretude e densidade, em razão da preferência estabelecida por algumas normas estatais – como, por exemplo, a Lei nº 11.871, de 19 de dezembro de 2002, do Estado do Rio Grande do Sul. Não fosse o bastante, tal redução significaria uma interdição sobre a faculdade que tem o Governo de ditar suas políticas econômicas.


4. Da prescindibilidade de lei da União para que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possam disciplinar a adoção de free softwares

Situado o negócio do software livre no contexto de realização dos princípios e objetivos da República Federativa do Brasil, cabe analisar o argumento normalmente suscitado pelos seus adversários, no sentido de que eventuais normas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios afrontariam o disposto no art. 22, XXVII, da Carta Política ("Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXVII – normas gerais de licitação e contratação, em todas as modalidades, para as administrações públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, obedecido o disposto no art. 37, XXI, e para as empresas públicas e sociedades de economia mista, nos termos do art. 173, § 1º, III;"), isso é, elas careceriam da prévia existência de lei federal sobre a matéria.

De início, note-se que a Administração Pública sequer necessita de lei para optar preferencialmente pela adoção dos programas livres. Basta que, nos editais licitatórios, oriente-se pela forma de negócio de tais softwares.

De qualquer forma, eventual legislação dos Estados, dos Distrito Federal e dos Municípios não deve ser apreciada sob a perspectiva única das normas constitucionais da licitação, mas sim sob o enfoque de se tratar de diploma que revela a escolha estatal de perseguir os interesses públicos primários e secundários, bem como, consoante já assinalado – pedindo-se vênia ao leitor para insistir –, a atribuição de concretude aos princípios e aos objetivos da República.

Consoante destacado, a eleição de uma ou outra forma de negócio, programas livres ou proprietários, constitui opção única do Estado, que revela seu planejamento econômico. Insista-se: ao estabelecer a prioridade legal pelos softwares livres, o ente público emprega o seu poder aquisitivo para criar e fomentar o mercado consumidor desses programas. Cuida-se de típica matéria de intervenção do Estado na seara econômica, ou seja, de Direito Econômico (art. 174 e 24, I, ambos da Constituição da República), cuja legislação compete concorrentemente à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, acarretando, no ambiente da questão em exame, a prescindibilidade de prévia edição de lei federal.

Entretanto, caso se opte por examinar a controvérsia sob aquele aspecto limitado, deve-se salientar, desde logo, que não existe a inconstitucionalidade sugerida pelos opositores dos free softwares.

A preferência pelos direitos emergentes do software livre há de ser orientada pelo interesse local, ou seja, não se exige nem se pode exigir que ela conste de norma geral editada pela União. A adoção de programas abertos pela Administração Pública norteia-se por uma série de fatores contingenciais e muito particulares, como, por exemplo, a existência e os limites de disponibilidades financeiras, o tempo, os recursos humanos, a proximidade do suporte tecnológico, tudo apontando para predominância do interesse local, o que força concluir que compete ao Estado, ao Distrito Federal e aos Municípios disciplinarem a matéria, independentemente de prévia legislação da União.

Ratificando esse entendimento, vale a lembrança de que parte significativa dos projetos relacionados ao emprego de softwares livres pelo setor público e que se encontram em tramitação no Congresso Nacional não se referem aos Estados nem ao Distrito Federal, tampouco aos Municípios, mas apenas à União. Para ilustrar, mencionem-se o Projeto de Lei nº 3.051/2000, que "Determina a preferência a sistemas e programas abertos na aquisição e uso de programas de computadores pelos órgãos da Administração Pública Federal", de autoria do Deputado Werner Wanderer; o Projeto de Lei nº 4.275/2001, que "Dispõe sobre a adoção de sistemas e programas de computador abertos pelos órgãos da Administração Pública Federal", elaborado pelo Deputado Luiz Bittencourt; e o Projeto de Lei nº 2.152/2003, "Determina a adoção de software livre em todos os órgãos e entidades públicas federais", apresentado pelo Deputado Coronel Alves.

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Aliás, leis estaduais, distritais ou municipais, nos estritos limites das respectivas competências apenas viriam a dar densidade ao princípio da padronização das compras, estatuído pelo art. 15, I, da Lei nº 8.666/93.

Dessa maneira, resta patente que quaisquer normas estaduais, distritais ou municipais que venham a fixar a preferência, nos correlatos âmbitos administrativos, pelo negócio do software aberto, não carece de prévia legislação da União sobre o tema, sendo, portanto, plenamente conforme a Carta da República.


5. Da não violação ao princípio da isonomia dos licitantes

Ao lado de outras argumentações, os adversários da adoção do software livre pela Administração, suscitam que eventuais preferências legais não respeitariam o princípio da isonomia entre os licitantes, previsto no art. 37, XXI, da Constituição da República, o que também não procede.

Jorge Miranda, de Portugal, ao abordar o princípio da igualdade, leciona:

"Existe uma tensão insuprimível entre liberdade e igualdade (conforme, de resto, já salientámos): assim como a liberdade radical de certo individualismo, levada às últimas conseqüências, ignora a igualdade (pelo menos, a igualdade de exercício de direitos), a igualdade igualitária conduz à destruição da liberdade (pelo menos, da liberdade política). E torna-se recorrente nas sociedades pluralistas contemporâneas a procura de um equilíbrio tanto entre igualdade e aquilo a que se vem chamando direito à diferença como entre bens e interesses de grupo." [13]

É esse direito à diferença, decorrente necessário do princípio da isonomia, que aproveita à compreensão do caso dos autos. No infinito universo da tecnologia informática, diferem-se radicalmente e, portanto, ostentam direito a tratamentos distintos os negócios de softwares livres e os de proprietários.

Com efeito, no ambiente normativo peculiar da licitação, no qual se prega a igualdade de condições entre os concorrentes, não viola a isonomia norma que estipula preferência por uma determinada forma negocial. Como já referido, a distinção levada a efeito por eventual norma de semelhante conteúdo não se direciona a um produto ou a um tipo de produto específico, mas sim a uma forma de contratação, revelando a vontade estatal de atribuir densidade a certos valores constitucionais.

Celso Antônio Bandeira de Mello, em sua clássica monografia sobre o "Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade", arrola critérios para que uma discriminação feita por lei não infrinja o princípio constitucional da isonomia, valendo a pena transcrever excerto de suas lições, in verbis:

"Para que um discrímen legal seja convivente com a isonomia, consoante visto até agora, impende que concorram quatro elementos:

a)que a desequiparação não atinja de modo atual e absoluto, um só indivíduo;

b)que as situações ou pessoas desequiparadas pela regra de direito sejam efetivamente distintas entre si, vale dizer, possuam características, traços, nelas residentes, diferençados;

c)que exista, em abstrato, uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regime jurídico em função deles, estabelecida pela norma jurídica;

d)que, in concreto, o vínculo de correlação supra-referido seja pertinente em função dos interesses constitucionalmente protegidos, isto é, resulte em diferenciação de tratamento jurídico fundada em razão valiosa – ao lume do texto constitucional – para o bem público." [14]

Partindo desses parâmetros, primeiramente, cumpre apontar que a adoção preferencial dos programas abertos pela Administração Pública, não restringe as possibilidades de concorrência, nas respectivas licitações, a um único produto ou a um fornecedor singular. Para se ter uma idéia da diversidade de softwares livres existentes no mercado e, portanto, da variedade de produtos aptos a participarem dos certames, mencione-se o ranking apresentado na matéria "O fenômeno do Software Livre", da Revista Info, relativo aos principais programas de códigos abertos utilizados pelas grandes empresas, quais sejam, LINUX, APACHE, TOMCAT, BIBLIOTECAS JAVA, PERL/PHP, JBOSS, APACHE STRUTS, MYSQL, ECLIPSE e outros. [15] Ademais, é importante, neste particular, perceber que a distinção se trava entre as formas de negócios e não propriamente entre os programas. A rigor, ambos os programas negociados em regra distintamente, seja o proprietário, seja o não proprietário, são idôneos a concorrerem perante a Administração Pública, bastando para tanto que o titular daquele primeiro revele o seu código fonte e admita a respectiva reprodução, modificação e distribuição. Isso é, em termos práticos, todo e qualquer software pode ser negociado sob a forma livre, inclusive os conhecidos como proprietários.

Na seqüência dos parâmetros arrolados por Celso Antônio Bandeira de Mello, cabe perceber que as modalidades de programas em evidência são totalmente diferentes, não enquanto programas, mas com respeito à forma negocial que são disponibilizados aos usuários, ou seja, a diferença enquadra-se no plano da realidade objetiva, perceptível por qualquer pessoa.

Quanto à correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção de regimes, no caso, licitatórios, ela existe na hipótese em exame. O tratamento diferenciado justifica-se por tudo quanto já se expôs neste trabalho.

Por fim, a diferenciação traçada pela lei impugnada atende à concretização dos princípios e dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme também já se demonstrou.

A propósito, não se pode olvidar que o debate do software livre também já chegou ao Tribunal de Contas da União, o qual entendeu possível a preferência ora em questão, desde que devidamente fundamentada (TC-004.193/01-1, In: Boletim de licitações e contratos, n. 2, fevereiro de 2004, p. 124 e ss.).

Dessa forma eventuais normas que atribuam prioridade à contratação de softwares livres pelo Estado não incidem em infringência ao princípio da isonomia entre os licitantes.

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Sobre o autor
Marcelo Andrade Féres

professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), doutorando e mestre em Direito pela UFMG, diretor do gabinete do Advogado-Geral da União, procurador federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉRES, Marcelo Andrade. A adoção de softwares livres pelas diversas esferas da administração pública.: Alguns aspectos jurídicos de um ambiente de disputas econômicas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 853, 3 nov. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7533. Acesso em: 18 abr. 2024.

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